quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

outras cidades das CIDADES INVISÍVEIS de Italo Calvino


As Cidades Invisíveis
Le Città Invisibili

Italo Calvino


trad. livre – LdeM


Le città e gli occhi. 2
As cidades e os olhos. 2


É o humor de quem a olha que dá à cidade de Zemrude a sua forma. Se passa assobiando em nariz arrebitado em assobio, a conhece de baixo a cima: parapeitos, tendas que tremulam, esguichos. Se caminha com o queixo sobre o peito, com as unhas fincadas nas palmas, os teus olhares se emaranhando rente a terra, nos regatos, nos fossos, nas redes de pesca, nos papéis dispersos. Não pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro que outro, porém da Zemrude de cima se fala sobretudo de quem a recorda afundando na Zemrude de baixo, percorrendo todos os dias os mesmos trechos da estrada e reencontrando de manhã o mau-humor do dia anterior incrustado ao pé dos muros. Portanto, vem cedo ou tarde o dia no qual abaixamos o olhar ao longo dos tubos das goteiras e não conseguimos mais distingui-las dos calçamentos. O caso inverso não é excluído, mas é mais raro: por isso continuamos a girar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam sob todas as adegas, sob todos os alicerces, até os poços.”



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As Cidades Invisíveis
Le Città Invisibili

Italo Calvino


trad. livre – LdeM


Le città e il cielo. 1
As cidades e o céu


Em Eudossia, que se estende para cima e pra baixo, com becos tortuosos, escadas, vielas, casebres, se conserva um tapete no qual pode-se contemplar a verdadeira forma da cidade. A primeira vista, nada parece assemelhar-se menos a Eudossia do que o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os seus motivos ao longo de linhas retas e circulares, entrelaçado de agulhadas de cores esplêndidas, alternando-se, em cujas tramas pode seguir ao longo de todo o urdido. Mas se te deixe a observá-lo com atenção, te persuade que a cada lugar do tapete corresponde a um lugar da cidade e que todas as coisas contidas na cidade são incluídas no desenho, dispostas segundo os seus verdadeiros relatos, os quais fogem ao teu olhos distraído do vaivém do burburinho da multidão. Toda a confusão de Eudossia, os zurros das mulas, as manchas de fuligem, os odores dos peixes, é quanto aparece na perspectiva parcial que tu recolhe; mas o tapete prova que há um ponto do qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito em todos os seus mínimos detalhes.

Perder-se em Eudossia é fácil: mas quando te concentra a fixar o tapete reconheces a rua que procurava num fio carmesim ou anil ou rubro que atravessa um longo giro que te faz entrar num recinto cor púrpura que é o teu verdadeiro ponto de chegada. Todo habitante de Eudossia compara à ordem imóvel do tapete uma imagem sua da cidade, uma angústia sua, e qualquer um pode encontrar oculta entre os arabescos uma resposta, o relato de sua vida, as reviravoltas do destino.

Sobre a relação misteriosa de dois objetos tão diversos como o tapete e a cidade foi interrogado um oráculo. Um dos dois objetos, - foi a resposta, - tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às órbitas sobre as quais rodam os mundos; o outro lá é um reflexo aproximativo, como toda obra humana.

Os profetas desde há tempos tinham certeza que o harmônico desenho do tapete fosse de feitio divino; neste sentido foi interpretado o oráculo, sem dar lugar a controvérsias. Mas ao modo próprio tu podes extrair a conclusão oposta: que o verdadeiro mapa do universo seja a cidade de Eudossia assim como é, uma mancha que dilata sem forma, com ruas todas em ziguezague, casas que desabam sobre outras na poeira, incêndios, berro no escuro.”


trad. livre - LdeM



Italo Calvino



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