quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

sobre o livro "A Alma dos Bairros" - de Vinícius Fernadnes Cardoso




Sobre “A Alma dos Bairros” (2007)
(2ª reimpressão: 2011)
do escritor Vinícius Fernandes Cardoso
(Contagem/MG)

(Nos 5 anos de “A Alma dos Bairros” de VFC)


A Necessidade de um Pensamento Reflexivo sobre nossa Época

Parte 1


O assunto 'nossa geração' foi abordado em ensaio anterior – sobre o livro do poeta Guto Amaral – é importante repetir um trecho aqui, pois é certo que surgiu uma mente refletindo sobre a nossa geração, mas geograficamente pensada, mais especificamente concentrada na periferia da Grande Belo Horizonte, nas bordas da Capital, sob as fuligens da Cidade Industrial, na outrora rural Contagem.

O que foi dito sobre a 'nossa geração'? “A ideia de época, de 'estilo de época', de geração de autores (vide geração expressionista, 'geração perdida', geração modernista, geração de 45, geração beatnik, geração Oulipo, a nouvelle vague, o nouveau roman, etc) pressupõe primeiramente um tempo, uma cronologia, um recorte temporal, limitado, onde se encaixam alguns autores por afinidades ou interesses ou estilos comuns ou assemelhados. Em segundo lugar, que estes autores tenham algum contato, algum diálogo interno, até se possível um manifesto.

Também que a geração não só esteja na época, como seja uma marca, um corte, a criar um 'antes e depois de', ou seja, antes e depois dos modernistas, antes e depois dos surrealistas, etc. Afinal, não se pode apenas escolher autores e agregá-los apenas por que viveram na mesma época. Não basta. Algo mais devia, portanto, reuni-los num conjunto. Escolhia-se algo em comum, que fosse um estilo, um interesse, uma editora, uma vizinhança, um grupo de amigos, uma facção política (ou apolítica), uma cena cultural de eventos e/ou oficinas, etc, que pudesse facilitar o 'fechamento' do conjunto, e a criação do rótulo ('olhe aí os expressionistas', 'viram os surrealistas?').

Mas como falar em geração numa época como a nossa? Época em que cada um é sua própria escola e e estilo de época! Em que os artistas não aceitam vanguardas e não aderem aos movimentos coletivos de criação em comum. Quando aderem aos grupos e grupelhos é apenas por autopromoção. Não criação coletiva, cada um cuidando do próprio umbigo, centro do mundo.

Se é que podemos falar em 'nossa geração', tanto no sentido de época quanto grupo de pessoas, no caso, os criadores, os autores, para designar um momento pós-Queda do Muro de Berlim, isto é, os anos 1990, vamos, no entanto, usar tal expressão aqui, por simplificação, para falar daquele jovens autores (entre os quais eu, LdeM, me incluo) que viveram suas juventudes na referida época.

Depois da Queda do Muro tivemos a 'Era dos Extremos', o 'Fim da História', Trainspotting, Fight Club / Clube da Luta, o brit-pop, o grunge rock, Matrix e seus efeitos especiais; tivemos mais dois romances de Umberto Eco, a ascensão e a queda do pop cult, séries norte-americanas com vampiros e novelas brasileiras com mutantes, além de reality shows banais e infindáveis. Tivemos até um atentado megalomaníaco divulgado ao vivo em escala global, o 11 de setembro de 2001, com a imagens das torres do WTC em Nova York quando desabavam em grotescas nuvens de fumaça e detritos.

Nossa geração, digamos, vivenciou tudo isso, e tentou digerir tudo isso. É muita coisa. Basta acessar um site de buscas, uma enciclopédia cooperativa, uma rede social que a informação jorra na tela, inunda nossas vidas. Não temos um pendrive implantado no cérebro para guardar tanta informação. Estamos, assim, nauseados. Não de tédio, ou 'vazio da época', mas por excesso e mais excessos.

Imersos em dados e cifras, em estatística, nós, desta geração pós-1990, estamos sobrevivendo em busca de um sentido, de uma crença, uma vez que as ideologias foram por água abaixo, uma pior que a outra. Estamos órfãos de grandes líderes e gurus, e o artista pop da vez já serve para ser o novo ídolo … pelo menos por um ano e meio. Assim, não temos por costume por partido, ou agir coletivamente, mas sempre pensando no 'quanto eu lucro com isso?' a cada hesitação diante de uma decisão.” (LdeM)



A partir desta reflexão – repito: na intro do ensaio sobre o livro do Guto Amaral – vamos prosseguir no olhar sobre nós mesmos enquanto literatos e produtores de informações, malabaristas das palavras, autodidatas do asfalto e acadêmicos da lida cotidiana.

Leitor de vastas leituras, autor de profundas escrituras, pesquisador obsessivo do mundo ao redor, eis a imagem que evoca o poeta, literato e sociólogo Vinícius Fernandes Cardoso (VFC), formado em Ciências Sociais na FAFICH / UFMG, quando adentramos seu mundo de leituras e andanças, de pesquisas e escritas. Várias correntes de pensamento, vasta rede de ideologias são objetos de interesse da sua pesquisa. Às vezes o autor exagera na vontade de classificar o mundo, dividi-lo em departamentos (como se isso fosse possível...) em sua ânsia de tudo entender e explicar (como se tudo fosse entendível e explicável...) para interpretar o que denomina 'vazio da época'.

O autor divide a própria obra em departamentos. Ensaios, crônicas, poemas, comentários, pesquisas. Tudo em sua gaveta para melhor orientar o leitor (ou para re-ordenar a realidade), o que é um contraponto ao estilo (pós)moderno de tudo misturar, tudo 'bater no liquidificador' e desfazer as fronteiras entre disciplinas e gêneros literários.

Didaticamente podemos utilizar a divisão instaurada pelo autor, ao seguirmos em nossa leitura atenta.

Ensaios e Artigos

Aqui conhecemos as influências do autor, desde o espontaneísmo surreal dos Beatnik até os formalismos matemático-lúdicos dos autores da Oulipo. Uma mente ávida não pode deixar passar nada do que aconteceu nos últimos cem anos – e assim VFC lê o mundo do século vinte: como uma teia de pluralidades onde alguns sobrevivem, geram lucro, e outros desaparecem na selva do Mercado.

Os Beatniks procuravam algo na estrada além da estrada, buscam se purificar do mundo consumismo do mundo ocidental, buscam uma mística oriental, como uma negação do Ocidente, querem o surrealismo pois identificam Capitalismo com Iluminismo, ao confundirem Razão com Razão Instrumental. Os poeta do Beat buscavam na Mística a 'viagem' que não encontravam na Lógica.

No ensaio “As Ideias são Beats”, o autor se indaga sobre a questão da turna (o que seria uma parcela da 'geração'?) e baliza contextos. “Onde está a turma afinal de contas? A última geração, enquanto turma, foi junto com o Kurt Cobain? Quando passamos pela [avenida] João César ali na altura do Big Shopping, encontramos uma pequena turma de camisas pretas, renascentes dos loucos anos 90.” (p. 08) Aqui o autor faz referência aos estilos musicais (e comportamentais) do Grunge rock, ao pop cult dos anos 1990 (vide Radiohead, Verve, Belle and Sebastian) na euforia do Brit Pop. Ritmos e melodias que poderiam dar sentido a uma geração, mas que levou a novos hits do momento e mais lucros para gravadoras. O sentido se perdeu no show business...

Parece que para o jovem VFC a História é um pesadelo assim como era para o jovem Stephen Dedalus (no “Ulisses” de James Joyce), “A História é um pesadelo do qual eu quero despertar.” Um História em forma de muralha que ameaça desabar sobre o incauto recém-chegado ao pesadelo. Nossa geração pode dizer o quê? Pode ser original? Tudo já foi dito e escrito? Ou enfrentamos uma indigestão colossal com mil informações e mil novas informações sendo processadas? Então o vazio (ideológico) da época é fruto do excesso (informacional) da época?

Interpretamos nossos sonhos, as formas de governo, a História, os problemas sociais, como foram resolvidos ou não, afinal, temos vinte e um séculos de memória. Bendito e maldito legado! Por outro lado, ninguém aguenta mais tanto conhecimento, tanto aprimoramento tecnológico, tanta informação. Chega um feriado, vamos para o mato, mas voltamos entediados, idolatrando nossa cidade poluída e confusa.” (p. 08)


Dentro do tópico 'nossa cidade' que o autor vai encontrar a 'amostragem' para realizar a pesquisa. Quem são hoje as vozes literárias da cidade? Onde estão? A que gênero literário se dedicam? Eis o que interessa ao sociólogo VFC. Assim ele começa a pesquisa de campo ao reconhecer, cadastrar, catalogar os autores contagenses. Os estilos variam (ou nem têm estilos) assim como os gêneros (tanto literário quanto sexual) numa cidade que ingressa no mundo industrial, no mundo cibernético, no mundo on-line.

Nem todos os autores e autoras são importantes. Servem mais como uma 'amostragem' do que há de belo e de maldito em Contagem. Do que há de importante e do que há de insignificante. Afinal, muitos escrevem, mas pouco (pouquíssimos) são escritores - nas duas acepções do termo 'writer': 1/quem escreve artisticamente e 2/quem vive de vender a produção literária. Com suas regras e exceções, pois nem sempre quem tem estilo e qualidade tem retorno financeiro.

Ao lado de um Lecy Pereira Sousa (poeta, contista, performancer, autor do primor lírico-iconoclastaPoemaremos sem fim”) encontramos literatos totalmente banais e dispensáveis (o critério aqui é artístico, claro) que só justificam a entrada nesta obra como uma 'amostragem' mesmo. O joio vem junto com o trigo quando o pesquisador recolhe a colheita de dados. Importa que existam escritores em Contagem? ou o importante é : existem BONS escritores em Contagem? Afinal, sabemos bem, quantidade não representa qualidade.


Vamos para as crônicas.


Crônicas

Aqui o olhar do autor se fixa em detalhes da vida cotidiana que podem passar como obviedades para o senso comum. Uma vida em sociedade não é apenas um amontoado de coisas, casas, lojas, avenidas, carros ruidosos. Há aquilo mais que o escritor memoralista Pedro Nava chamava de 'geografia sentimental', pois há mesmo uma 'alma' em cada bairro. É esta 'alma' de cada distrito, de cada região que o olhar do poeta andejo tenta encontrar, resgatar e revelar.

Como vivemos num presente sem passado a ansiar pelo futuro (mil prestações para pagar e prometidas férias...) não atentamos para o contexto histórico da realidade: o bairro tem uma história, tem um vida, tem prédios antigos, tem pracinhas com nomes de heróis e políticos, artistas ou militares, tem recordações para os moradores, ou seja, o bairro tem uma dimensão não visível : a quarta dimensão: o tempo.

Ao estudar a sociologia de um bairro de periferia, o autor mostras que a memória coletiva pouco se conserva, exceto para uns poucos mais curiosos ou com tempo livre (entenda-se comerciantes, aposentados, velhos moradores...) e que as novas gerações (inclusive a nossa...) nada sabem sobre o que significa (e significou) o bairro. Por que a avenida chama-se assim? Por que a praça tem nome assado? Por que o bairro Eldorado é cheio de becos? Por que a maioria das ruas tem o sobrenome X ? Por que a avenida João César chama-se João César? Aliás, quem foi João César de Oliveira?

Em busca de respostas o autor fez suas pesquisas, adentrou arquivos, vasculhou repartições públicas, navegou na internet. Estas crônicas são o produto e o testemunho de suas labutas em busca do óbvio que esquecemos. Somos peixes que nada sabem sobre a água. Rua Tiradentes? Rua Rio Mantiqueira? Praça da Glória? Mercado Central de Contagem? Como estes lugares se encaixam em nosso imaginário? Em nossa 'geografia sentimental'? Ou nos identificamos mais com a Praça da Sé? Ou com a Trafalgar Square? Ou com a Ponte do Brooklyn? Ou com a Times Square? Não vivemos o nosso bairro, mas as cenas de TV? Os cenários de filmes ?


Qual a relação do morador com seu próprio bairro? Ele sabe quem são os vereadores? Quem são os comandantes de polícia? Os juízes da comarca? Parece que o morador quer esquecer o bairro : saber no máximo o nome do padeiro, do jornaleiro e da diretora da escola. (Saber quem é o novo atacante do time A ou B parece ser mais importante...)

O resgate da 'alma dos bairros' não é fácil. Pois o óbvio é o mais secreto dos saberes. Andamos pela rua Tiradentes. É comum e prosaico. Mas por que se chama Tiradentes? Quem foi Tiradentes? Personagem histórico ou lenda? O que ele fez que merecesse ter o nome numa rua de periferia? E quem nomeia as ruas? E quem merece ter o nome numa rua? São questões que estão debaixo dos nossos narizes e não percebemos.

Pagamos os senhores vereadores apenas para nomearem ruas? Pagamos as nossa autoridades apenas para continuarem seus jogos políticos? Vivemos no bairro X apenas por que não ficamos ricos o bastante para morarmos no bairro Y ? Amamos os nossos bairros ou apenas toleramos? Qual o nosso sentimento de pertença? Ou somos turistas em nossos bairros? Só quem tem olhos de ver pode ver a cidade? Assim, só mesmo o autor muito curioso para ver o óbvio e nos dizer, por exemplo, sobre a Rua Tiradentes, no bairro Industrial,

Há, na cidade em potencial, uma rua em potencial. Uma passarela sem samba, um cartão-postal por fazer, um cabaré sem boêmia, uma entrada sem portal de boas-vindas, talvez pior, a rota de fuga de um lugar inóspito, talvez melhor, a via amiga de uma cidade futura, talvez o que é por ainda mais tempo, uma rua em potencial numa cidade em potencial.” (“Uma Rua com Porte de Avenida”, p. 24,)

ou sobre a Rua Rio Mantiqueira no bairro Novo Riacho, deveras simpática,

Se cada bairro de Contagem possui uma alma, como escreveu Ignácio Agero Hernandez, talvez a alma do Novo Riacho seja uma das mais robustas de Contagem. Bairro de artistas, escritores, poetas, idealistas, a alma do Novo Riacho é apaixonada [quase passional], boêmia, alegremente melancólica. Cada bar é um cantinho reservado do mundo, cada criatura um companheiro de viagem. […]

Certa mentalidade velhaca ameaça sua ingenuidade acolhedora? Possivelmente, mas, a rua, acima das modas, altiva e humilde, permanece.” (“Rua Rio Mantiqueira”, p. 26)

Na região metropolitana de Belo Horizonte, Contagem é uma cidade que de rural tornou-se urbana em menos de cem anos e sofre com o trânsito, com o transporte urbano, com a falta de saneamento básico, a falta de points de lazer para todos, com oportunidades para todos - para os tantos que deixaram o campo para viver nas orlas da Cidade Industrial, promessa de infindos empregos. A cidade inchou e cresceu e expandiu, mas sem abraçar a todos, sem oferecer recursos para todos. Meia dúzia de famílias poderosas, dos tempos feudais, ainda dominam e são protagonistas dos jogos políticos. Pois os moradores ainda não assumiram inteiramente suas possibilidades enquanto os novos protagonistas. (O que é uma visão otimista do autor.)

A cidade é um parque arqueológico vivo no qual é possível encontrar esqueletos das fases históricas anteriores, inclusive, da fase industrial, cujo esgotamento [com a passagem de capitalismo industrial para capitalismo de serviços], ao menos relativo, não pode ser totalmente ignorado.”

Por isso, os fatos apontam para uma radicalização desse processo de tomada de consciência da cidade em relação a si mesma. Portanto, muito provavelmente, a Contagem centenária será, pela primeira vez, graças as forças conscientes/modernizantes atualmente atuantes na municipalidade, uma cidade despertada para si mesma, não mais se considerando um imenso bairro de Belo horizonte a quem deva recorrer como uma criança recorre a um adulto, ou uma cidade-dormitório na qual os cidadãos estejam presentes apenas de corpo, mas não de espírito [cidade para dormir e morar, mas não cidade para pensar, sentir, viver]. Não. A Contagem centenária será uma cidade amadurecida, consciente de si mesma.

(“A Caminho do Centenário”, pp. 35 e 36)


Na cidade para viver e pensar pode então surgir uma superestrutura específica: a Arte. Não mais apenas obreiros, operários, professores, empresários habitam a cidade. Mas também aparecem os músicos, os literatos, os poetas, os escultores, os artistas plásticos, os formadores de opinião. Assim o autor pode descobrir os autores, e trocar informações, e congregar interesses, até a formação, em 2002, de uma Academia Contagense de Letras (ACL), ao molde de tantas academias de literatos nas cidades provincianas de todo o Brasil. Literatos que precisam da aprovação de outros literatos, que descobrem ser preciso uma atuação coletiva em prol dos interesses da leitura e da escrita.


continua...

fev/2012


por Leonardo de Magalhaens





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