segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Em busca da expressão autêntica do Eu

 

 


 

 

 

Sobre Ansiedades [2021] poemas de André Galvão



Em busca da expressão autêntica do Eu



Poesia é expressão. É uma voz de testemunho. Recursos são usados para a expressão poética. Recursos de som, repetição, paralelismos, oxímoros, grafismo – ainda mais depois do pós-estruturalismo. Mas alguns poetas operam pela sinceridade do sentimento expressando o mundo subjetivo, mais do que por recursos estilísticos.


Simplicidade e autenticidade são modos de expressão valorizados por poetas como Henriqueta Lisboa, Cora Coralina, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Mário Quintana, e mais próximos, espacial e temporalmente, Adélia Prado, Rogério Salgado, Bilah Bernardes, Olga Valeska, Regina Mello. Poetas que expressam a sinceridade da voz lírica como forma de cativar e emocionar o/a leitor/a.


Mas onde ficou o ‘poeta é um fingidor’ de Fernando Pessoa? Um poeta não é um artífice da Palavra? Onde fica o ‘o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia’ do Drummond? Acontece que no pacto da sinceridade ou da autenticidade há um Eu lírico que não é fingidor, antes quer declarar e confessar.


Aqui nos prenderemos aos eixos temáticos mais do que formalismos e experimentalismos. Os temas são a ansiedade, o ‘mal-estar na civilização’, a saudade, o remorso, a inconstância do Eu, a tristeza. Sentir-se deslocado, oprimido, reprimido, manipulado, vítima de uma conspiração. Sintomas de um mal moderno que afeta jovens e idosos, conservadores e progressistas, reacionários e democratas, gregos e troianos.


O poeta André Galvão, em seu Ansiedades, sabe sobre o que escreve – ainda que não domine – quem domina nossa condição humana? - na consciência de sua transitoriedade e de sua linguagem inexata e efêmera.


A procura do próprio Eu – ou Identidade – é o grande desafio – em busca do Eu perdido,


Perdi as contas

de quantas vezes

tentei me encontrar

e não consegui

(Álgebra não-linear, p. 14)



Esse ainda sou eu


Mesmo estranho neste

embrutecido mundo

sem espelhos,

mas repleto de muros


[…]


Esse ainda sou eu.

E eu ainda

não desisti.


(Esse ainda sou eu, p. 24-25)



O Eu lírico olha para si mesmo, se contempla e se questiona, quem ele É? E faz de pronto um autorretrato, um “Autorretrato bordado à mão” (p. 19), onde se vê como “um deslocado”, ou “um derrotado”, ou “um deslumbrado”, tal qual um “gauche na vida”, como dizia o poeta Drummond, com um profundo sentimento de não-pertença, de não sou deste mundo. (Questões que nos povoam! De que mundo somos? De que planeta ou mundo astral você veio?)


Ao ponto de o poeta querer ser Outro – fugir de sua auto-imagem de ‘gauche na vida’ - mudar sua condição, como revela o poema Desaviso (pp. 17-18), “Eu só não queria ser assim / Queria ser diferente, / Blindado, / Escoltado”, e continua, “Queria ser diferente, / Impassível, / Incrédulo”, e insiste, “Queria ser diferente, / Fechado, / Indevassável”. Como o Eu poderia se tornar um Outro? Como poderia aceitar tal mudança?


A mudança do Eu só é percebida pela memória. Pois se as lembranças de ontem não são acessadas como dizer que aquele Eu de vinte anos atrás é ainda o mesmo Eu? Nem o corpo é igual? E quem é o Eu? O Eu de agora? O Eu de ontem? A memória de agora do ser de outrora? São as questões muito debatidas pelo existencialismo de Jean-Paul Sartre e de Albert Camus.


Mas o eu não seria justamente em Devir – como dizia o pré-socrático grego Heráclito e o iconoclasta alemão Nietzsche – até ao ponto de um Eterno Retorno. E tal constância da mudança angustia o eu consciente. Será que ALGO ou ALGUÉM – Quem? - se perde?


Não sei bem

quando foi

que me perdi de mim.


(Não é mais uma sigla, p. 28)


A angústia advém da perda possível da Identidade? Mas o que vem a ser IDENTIDADE? Não seria uma narrativa que contamos a nós mesmos? Ou que eles, os outros, contam sobre nós? Temos controle sobre as nossas mudanças á deriva das circunstâncias?


Estou cansado de ser títere

De ideias e tensões absurdas

Enquanto a vida, fluida,

Derrama-se por entre as mãos


(Caminho trôpego, p. 37)


A Linguagem é o que temos para expressar o que SOMOS e SENTIMOS – mas o Eu lírico sabe que suas ferramentas são imprecisas, mas é esperançoso,


Ainda vou encontrar as palavras

perdidas entre luzes e sombras

e talvez eu condiga saber o que digo.


(Sombras, p. 53)


Mas quem sou eu

para designar o que sinto

se nesse retrato torto

a imagem que sobressai

É a face abstrata da imprecisão?


(Retrato Torto, p. 48)


É um pouco perturbador questionar a linguagem numa época de muita metalinguagem, onde todos ressaltam, colocam em evidência, o uso e os abusos da linguagem, quando poemas inteiros falam sobre… fazer poemas! Mas o que leva o poeta a continuar em sua busca? Mesmo com imprecisão? Sua necessidade de desabafar: “Antes de desabar, / Preciso desabafar.” (Limite, p. 30)


Sendo a linguagem imperfeita e ineficiente o Poeta se debate com a Escrita, com os poemas que não se concluem, são abortados, ou ‘lançados ao vento’, que são perdidos, e confessa que “aborreço-me com os poemas perdidos / que nunca foram escritos” (Sombras, p. 52) sempre insatisfeito com “tantas palavras e ideias soltas”. Conceitos, definições, racionalizações que limitam a expressão. Queremos dizer algo e acabamos expressando o oposto.


É preciso fazer escolhas – palavras, emoções, afetos – e até esta escolha gera angústia – um verdadeiro ‘condenados à liberdade’, como dizia Sartre – pois não sabemos o que resultará de nossas escolhas, e se realmente temos alguma escolha (seja intuitiva ou racional). É uma “angústia de ter tantos medos a escolher” (p. 45) que só se agrava com a “persistência do medo”, que “ressignifica tudo” e que “nunca desiste” (pp. 38-39).

Ansiedade, medo, tristeza, sofrimento – tantos sentimentos negativos! - o padecimento do Eu vem do desejo de não sofrer,


Parece sonho ou pesadelo

e é apenas uma ideia

esse motor maligno

que empurra potente esse sofrer

mundo louco afora.


(Apenas uma ideia, p. 35)


A única solução é o Eu desistir de si-mesmo, do apego ao Eu, com a mensagem de Sidarta Gautama, o Buda, o Iluminado, que pregava que “a dor vem do desejo de não sentir dor” e que para se livrar de um círculo vicioso de sofrimento o único modo é o Caminho do Meio, de sobriedade e de desapego, de meditação e de iluminação – superar as ilusões com a consciência de que são ilusões.


A passagem do Tempo – a impermanência – oprime e gera mais ansiedade. O tempo é visto como ‘maldito’ (em Tempo Maldito, p. 45-46), e o Eu sendo mais um refém das ‘filhas de Cronos’ - Cronos a personificação do Tempo entre os gregos clássicos - “Eu, que desafiava o medo, / hoje sou seu refém.” (p. 58). Tempo que é assim terrível – não só metaforicamente – mas evidenciado numa época de pandemia agravada por um desgoverno, no pesadelo de um genocídio,


Vai embora, pandemia,

carrega contigo essa apneia

que sufoca nosso ar e nossa fé (pp. 45-16)



Mas o Poeta vê uma luz no fim do túnel, tem esperança, apesar de tudo, “Vou escancarar as janelas / para arejar a angústia / de ter tantos medos a escolher” (p. 45) pois seu objetivo é “repor a luz em nosso caminho” (p. 46), é necessário seguir adiante, sem se perder nos labirintos da escuridão (metáfora para depressão, quadro clínico mesmo).


Contemplando a luz da consciência desperta e assumindo a responsabilidade sem má-fé, na beleza de um poema simples como um floco de neve, o poeta André Galvão poderia fechar sua obra Ansiedades com uma autêntica Resolução, “Cansei / De tentar / Explicar / Pra mim mesmo / Que eu / Sou / O motivo / Daquilo / Que me faz / Esquecer / O que é / Viver / Em paz.” (p. 56)



jan/22


Leonardo de Magalhaens


poeta, crítico literário

bacharel em Letras FALE / UFMG





Sobre o autor


André Galvão é Doutor em Ciências da Educação [Universidade do Minho]. Autor dos livros de poemas A Travessia das Eras [Ed. Penalux, 2018]

e Depois do Sonho [Ed. Penalux, 2020] e do livro O Coronelismo na

Literatura Espaços de Poder [Ed. da UFRB, 2018].


Coautor do livro Redescobrir-se: poesias de fim de século [Selo Editotrial

Letras da Bahia, 1998]. Membro da Associação Nacional de Escritores,

da Academia independente de Letras e da Academia Internacional de Literatura Brasileira.







Referências



ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 2005.


FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização. Penguin, 2015.


GALVÃO, André. Ansiedades. Belo Horizonte: Selo Starling, 2021.


NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L&PM, 1997.


SARTRE, Jean-Paul. O Ser o Nada. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2015.






Links da internet


Budismo. In Wikipedia. (Acesso em 24.01.2022)

https://pt.wikipedia.org/wiki/Budismo