quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Carta a Stalingrado - Drummond de Andrade



BATALHA  DE  STALINGRADO  1942-43

Carta a Stalingrado

Carlos Drummond de Andrade

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.
Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
[*] Extraído do livro A Rosa do Povo (poemas escritos entre 1943 e 1945). Rio de Janeiro: Record, 1987


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 by LdeM

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

sobre Livro de Papel - de Adriana Versiani dos Anjos




SobreLivro de Papel(BH, 2009)
da poeta Adriana Versiani dos Anjos


Entre a prosa poética e o poema-em-prosa


Mesmo que ainda não tenhamos uma definição positivista para o termopoesia, temos uma definição quase-positivista do termoprosa. Desde Bakhtin, e outros formalistas, temos mil e umas definições de Prosaico. (Como se definir demais fosse definir em definitivo!) Prosa para diferenciar de Poesia, e dePoema em Prosa(imortalizados pelos textos clássicos de Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, etc) nos momentos de transição (recriando o Romantismo nas sutilezas do Simbolismo, em contraponto ao neoclassicismo dos sonetos parnasianos)

No Brasil, lembramos agora de Raul Pompeia (o autor deO Ateneu) com suascanções sem metro, onde não versos em estrofes, mas também não propriamente narrativa, mas um fluxo de confidências líricas. Também encontramos textos que no Modernismo transitavam na fronteira entre 'poesia' e 'prosa' (um exemplo clássico é oMemórias Sentimentais de João Miramar(1924), de Oswald de Andrade) em textos ambíguos, em retalhos de fragmentos, em formato prosaico, mas em fluxo lírico, pulsando além das amarras da prosa. (1)

Amarras da Prosa? Sim. Visto que a escrita prosaica, mais racional e formalista, considera algumas normas precisas (início, meio e fim; argumentação; lógica; síntese e conclusão; uso de conectivos, conjunções, etc;) mesmo que não acompanhe as 'amarras' da Poesia (tais como ritmo, versos, silabas métricas, rimas, aliterações, assonâncias, etc) No mais, a Prosa objetiva explicar algo, explicitar, narrar, coordenar fatos na descrição, convencer o interlocutor, influenciar uma conclusão (para futura concordância), enquanto a Poesia espera atenção e projeta emoção, sem precisar deter-se em explicações e argumentações.

A concluir, o que distingue a Poesia não é apenas o formato (versos, estrofes, métrica, rimas, assonâncias, etc) mas sobretudo que a Poesia é espanto é ritmo é re-inventar o olhar gerando novas emoções. O suporte principal da Poesia é a linguagem, a fala, que pode ser escrita, copiada, impressa, divulgada. (Ainda que muitos defendam uma 'poesia visual', à la Concretismo, mas seria mais um exemplo de Artes Plásticas do que de Poesia - que sabemos surgiu dos cânticos, das elegias, das baladas, etc)

São questões que pululam em nossa mente quando diante da obraLivro de Papel, nos dois sentidos do termo 'obra': o objeto livro e o texto. Quase artesanal, em multicores, ofertando o prazer de ser folheado, manipulado, o objeto seduz. Depois, encontramos o texto. Seria Prosa? Seria Poesia? De fato, um livro difícil de classificar, ainda mais por sua pluralidade de personas e estilosaté porque é uma 'obra 2 em 1', contendoBiografias de Vocês que não ExistemeMadrágora.


Biografia de inexistentes

É uma poesia que 'narra' algo, precisa contar uma história, a equilibrar-se na fronteira entre o lírico e a narrativa, ora no fluxo poético ora na contenção prosaica. Portanto, essa 'indefinição': é poema em prosa ou conto escrito em versos? uma ausência de versos e estrofes, mas um ritmo, uma fluência, que encontramos nos poèmes em prose de Baudelaire e Rimbaud, nas 'canções sem metro' de Pompeia. (2)

Objeto que fala sem palavras:

O que é que não tem língua e fala, que fala e não tem palavras? O que
é que está guardando além do que está guardado? O que é que nos faz
querer estar com coisas e pessoas? O que é que não me deixa abandonar
essa caixa?

O segredo.

(p.11)

realmente um segredo aqui. Antes, um mistério. A cativar o Leitor para testemunhar confidências de outrem, como bons voyeurs que somos. Sempre 'dando uma espiadinha' nas biografias de vizinhos e celebridades. Mas aqui trata-se de uma biografia de inexistentesfragmentos de inexistênciasde 'possíveis personas' que somente existem enquanto 'seres-textuais'.

Ou seja, biografias de Ninguéns. Numa poesia que não fala do existente, mas uma fala poética que inventa a realidade, que pretende tecer um corpo textual para o inexistente (igualzinho aos 'contos de fadas'...), mas poesia não é simplesmente 'mentira' (como muitos dizem queLiteratura é ficção, é mistificação, se assim fosse, o Paulo Coelho seria o nosso guru...)

Eu, esquecida delirante, pastora da igreja invisível, tenho andado em
estado alterado de consciência.
Vivo entre papéis, trouxas, retalhos, restos deixados por meu irmão aqui
no quartinho dos fundos onde ele tocava blues.

Sim, eu os percebo. Eles estão comigo.

(p.17)

A voz lírica não sendo única, una e onisciente, é mais uma 'legião' de personas dispersas, habitando desde o mundo interior até longínquas paragens do possível (ou do impossível, onde somente a imaginação pode ir...) Mil imagens de seres oníricos, fadas, feéricas criaturas feitas de brisas, ou bruxas demasiadamente siamesas (ou o contrário), ou então, vidas bem prosaicas, cotidianas, como testemunham as confissões de esposas traídas (que vivem do que compartilham com o marido), conversas francas entre amigas, visões místico-ecológicas, os duelos entre os homens e as mulheres (estas prolixas, estes reticentesaté serem devorados), ou seja, a pluralidade é a única unanimidade aqui.


mandrágora: poema-veneno

A mandrágora é uma planta cercada de lendas mágicas, esotéricas, envoltas em poções de amor, venenos, encantamentos, alucinações... Ou então a abir os olhos da persona para uma 'realidade outra', abrindo as 'portas da percepção', afastando os veús,

move o véu e o que por trás das palavras(p.79)

Uma coletânea de imagens fortes, rubras, inflamadas, de palavras em folhas laranja-chama, pois é paixão ardente que move a Voz lírica,Como você sabe, sou movida a paixões, e assim este leitmotiv leva ao próprio ato da escrita, a vontade de gritar, desabafar o cataclisma íntimo nos ouvidos de alguém (ainda bem que inventaram o psicanalista...)

Aconteceu de um dia de ele lamber minha orelha, assim do nada, em público
e foi dramático cheio d'água e saliva e enzima digestiva. Não entenderam.
Tudo gratuito, desnecessário. Talvez não pareça uma passagem importante,
não mereça nem relato, mas senti que dez metros são diferentes de dois
centímetros. Foi um segundo, previ tudo, comecei a adoecer.

(p.53)

Não é tão-somente uma 'voz feminina'reduzir ao gênero é diminuir a multiplicidade da fala poética, assim como parcializar em cor, etnia, classe social, etcque adoeceu com 'uma língua no ouvido', e pois sente saudades da mesmíssima 'língua no ouvido', como a desejar e temer o que deseja, mas a apresentação da contradição humanaoscilando entre a repressão e a libertinagem, entre o desejo e a culpa.

Encharcada de suor gelado desmaiei e levantei e fiquei ereta e olhei em volta e
cuspi e aqui estou eu acordando animada, nessa manhã fria de outono,
morrendo de saudade da sua língua em meu ouvido.

(p.57)

Destacam-se os poemas da Ana (Uns dos Muitos Sonhos de Ana, Telhado Azuisas cartas de Ana e Girassóis Douradosa última morada de Ana) dotados de uma beleza ímpar : levam a 'carga prosaica' ao ápice na tentativa de fazer desabrochar o 'poema', mas as contenções da própria prosa (frases longas, conectivos, etc) diminuem a 'força poética' que precisa ser concentrada (o próprio Edgar A Poe, autor de The Raven, dizia que 'mesmo o poema longo é feito de vários poemas curtos') Sendo 'prosa' e não conjunto de 'poemas', o tom lírico se perde.

Os sonhos de Ana são dignos da atenção psicanalítica, com suas infindas imagens, relembranças, referências, citações, num cubismo lírico, que quase 'corporifica' a persona Ana, apenas um nome a concentrar um ser esfumaçado, feito de linhas escritas num papel Offset 240 g/m2, color orange.


Se quiséssemos, poderíamos virar pedra.
Não esculturas de sal ou granito como se tivéssemos cometido algum pecado
ou, se sem espelho, olhássemos no fundo da pupíla da bruxa.
Não, era se quiséssemos.

E eram ágatas de superfície lisa e colorida onde refletia uma nesga de luz.

(p.81)


As cartas de Ana possuem um odor de 'romance epistolar', daqueles que os Românticos adoravam (quem ainda não leuSofrimentos do Jovem Werther,Ligações Perigosas,Frankenstein, ouDrácula? Todos arquitetados na forma de correspondência...) Nas cartas líricas encontramos várias vozes femininas, as várias personas de Ana, desmembrada na comunicação com vários remetentes, as projeções de Ana, nos mais variados lugares, numa mescla dos desejos turísticos e das idealizações literáriasainda que Leningrado não se chamasse assim em 1807, mas é a São Petersburgo de Púshkin, Gógol, Dostoiévski, Blok, Bélyem datas díspares, numa coletânea de possíveis existências, ou (esotericamente falando) vidas passadas.

Vou contar-lhe um segredo:
-peguei esquizofrenia da flor de lírio branco, agora sou dona da minha
dor.

(p.89)

e

Querida, nosso mistério me assombra.

Não se preocupe com os outros, eles não sabem que existimos.
Afinal de contas, somos de papel.

(p.93)


Portanto, daí referir-se a uma 'multidão' de Anas possíveis, cada uma a retratar uma época, um espírito de época (Zeitgeist), um delírio, um desejo de transmutação alquímica (voltamos ao esotérico...), para ousar uma superação da condição humana, confinada ao imperativos prosaicos de uma vida rotineira, quando exercendo 'funções sociais' a pessoa humana esquece de si-mesma.

Na consciência de ser um corpo, de despertar desejos e acalentar desejos, sendo um sujeito num mundo de 'objetos' (inclusive as outras pessoas...), os conflitos do amar e ser amada, mais que um idílio neo-romântico vem gerar uma realidade de entrechoques, de mal-entendidos, que desloca o ser de si-mesmo (ele precisa aceitar as 'máscaras'), como evidencia o 'testamento' de Ana:


Anna estou a luz que cega inteira e que fere as retinas possíveis.
Nada preenche tempo e espaço, vácuo, Anna sou o que é dado.
Anna longe de Anna, sonho que se desmancha sobre o telhado.

(p.99)


Mas não é novidade para Ana (ou quem quer que seja a Voz lírica), pois antes sua mão escrevera sobre o papel da carta, num lampejo visionário da realidade humana (no e fora do papel), num grito mudo de fatalidade, o que deveria ser a frase final desta obra ambíguaLivro de Papel,Lu, a tragédia humana não tem fim.


Jan/10

revsd: dez/12


Leonardo de Magalhaens



mais poemas / textos de Adriana Versiani






Notas

(1)Hoje em dia, temos o romance em 'prosa poética', com imensos fluxos de consciência, como são exemplosUlisses, de J. Joyce,As Ondas, de V. Woof, e os contos de Clarice Lispector, mas com narrativas densas, personagens em duelo, como mostram as obras ímpares de Raduan Nassar, os inclassificáveisLavoura Arcaica(1975) eUm copo de cólera(1978), com uma prosa-fluxo, transpondo fronteiras líricas e prosaicas.

(2)A prosa poética de Baudelaire e Rimbaud são célebres, estão na mídia. Mas poucos conhecem as 'canções sem metro' do nosso Pompeia (parece que a gente gosta mesmo é de estrangeiros...) Então eis uma pequena amostra.

Vibrações

Comme des longs échos qui de loin se confondent
Dans
une ténébreuse et profonde unité,
Vaste
comme la nuit et comme la clarté,
Les
parfums, les couleurs et les sons se repondent.
C.
BAUDELAIRE

Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos.
A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões. Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura vibração das elegias.
Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
Daí o simbolismo popular das cores.