segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Dog / Cão - poema de Ferlinghetti











Lawrence Ferlinghetti


Dog / Cão

O cão passeia na rua
livremente
e vê a realidade
e as coisas que ele vê
são maiores do que ele
e as coisas que ele vê
são sua realidade
Bêbados nas portarias
Luas nas árvores
O cão passeia na rua
livremente
e as coisas que ele vê
são menores do que ele
Peixe no papel de jornal
Formigas nos buracos
Galinhas nas janelas
de Chinatown
suas cabeças
no meio do caminho
O cão passeia na rua
livremente
e as coisas que ele
cheira cheiram
iguais a ele
O cão passeia na rua
livremente
passa por poças
e pequenas
gatos e bitucas
sinucas e policiais
Ele não detesta
os tiras
Ele meramente
não tem utilidade
para eles
e ele passa
por eles
e passa ao longo
das vacas mortas
dependuradas
diante do Mercado
de Carne de
São Francisco
Ele preferiria
comer uma vaca
bem macia
do que um tira
durão
mesmo assim
tampouco faria
e ele passa a
Fábrica de Ravioli Romeo
e passa a Torre de Coit
e passa o congressista Doyle
Ele tem é medo
da Torre de Coit
mas ele não tem medo
do congressista Doyle
apesar do que ele ouve
ser bem desanimador
bem depressivo
bem absurdo
para um jovem cão
como ele é
para um cão sério
como ele é
Ele tem seu próprio
mundo livre
para viver
As próprias pulgas
para comer
ele não será
amordaçado
O congressista Doyle
é apenas mais um
hidrante
para ele
O cão passeia na rua
livremente
Ele tem sua própria
vida de cão para viver
e para pensar sobre
e para refletir sobre
tocando e degustando
e experimentando tudo
investigando tudo
sem benefício de perjúrio
um realista de verdade
com uma história
de verdade pra contar
e um rabo de verdade
para ajudar a contar
a vida de verdade
uivando
cão democrático
engajado no real
livre iniciativa
com algo a dizer
sobre ontologia
algo a dizer
sobre a realidade
e como ele a vê
e como ele a ouve
com sua cabeça aprumada de lado
nas esquinas das ruas
como se ele tivesse
sua foto tirada
para a Victor Records
ouvindo
a voz do seu dono
e olhando
igual a um ponto
de interrogação
dentro do
grande gramofone
da existência quebra-cabeça
com seu maravilhoso chifre oco
que sempre parece
apenas jorrar
alguma vitoriosa resposta
para tudo



trad. livre : LdeM





para ouvir




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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ninguém acende a lâmpada - J. Estanislau Filho










NINGUÉM ACENDE A LÂMPADA

 
José Estanislau Filho

 

A iluminação da sala não está boa, prejudicando as vistas – disse um funcionário.

Esta reclamação foi repetida diversas vezes pelos funcionários do Departamento de Contabilidade da Inber – Indústria de Produtos de Beleza Realce.

Contudo, o Chefe do Departamento, o Sr. Rinoceronte, jamais levava em consideração tal reclamação. Para ele tudo aquilo não passava de artimanhas de funcionários relapsos e preguiçosos, para justificar os trabalhos atrasados, coisa terminantemente proibida pelo Dr. Hipopótomo, gerente geral.

“Se vocês trabalhassem mais e reclamassem menos as coisas não estariam como estão”, repetia o Chefe todas as vezes que alguém insistia em reclamar de alguma coisa. Mesmo a precária iluminação do escritório, que era sentida por todos, não escapava à terrível observação do Sr. Rinoceronte. Os funcionários voltavam calados e resignados aos seus postos, pois, diante de tal argumento, ficava impossível provar ao Dr. Hipopótomo a necessidade de melhorar a iluminação e as precárias condições de trabalho a que estavam submetidos. Ele só aceitava argumentos sólidos, seguidos de relatórios.

Cada um analisava do seu modo o significado do que seriam “as coisas” a que o Chefe se referia. Até chegar o dia em que ninguém ousou mais reclamar da iluminação. Indiferente, a lâmpada continuava o seu trabalho de iluminar o ambiente da forma que sempre fizera. Todos se adaptavam como podiam às condições de trabalho. Cabeça baixa, olhos colados nos papéis. Alguns compraram lupas, mas foram proibidos de usá-las, pois, segundo o Sr. Rinoceronte, elas depunham contra o seu Departamento. Vez por outra alguém erguia os olhos em direção à lâmpada, na esperança de vê-la brilhar.

Chegou um tempo em que desistiram de levantar as vistas, pois, a Chefia, impaciente com as cabeças erguidas, mandou instalar próximo à lâmpada a frase:

“Se todos trabalhassem mais e reclamassem menos, as coisas não estariam como estão”.

Chegou um tempo em que a sala mergulhou em completa escuridão e ninguém ousava levantar-se para acender a lâmpada ou ir ao Sr. Rinoceronte expor a realidade. Procuravam executar as tarefas, usando o tato, para localizar os documentos. Por sorte ou por experiência de longos anos de trabalho, as tarefas eram executadas com perfeição, mas sempre insatisfatórias aos olhos do Chefe.

Ainda assim, dentro de cada um havia a esperança de que a lâmpada voltasse a acender, mas ninguém tomava uma atitude ousada, como de verificar se ela estava com mau contato, ou com a tecla desligada. Mesmo quando um funcionário erguia da cadeira para tentar algo, a frase “se todos trabalhassem mais e reclamassem menos, as coisas não estariam como estão” vinha à mente, fazendo com que o funcionário retornasse ao seu lugar.

Depois de alguns anos de trabalho ininterrupto, o Sr. Rinoceronte entrou pelo escritório, anunciando que a lâmpada tinha sido substituída.

Foi assim que os funcionários da Inber descobriram que não precisavam da lâmpada, pois estavam todos cegos.

 


Do livro Crônicas do Cotidiano Popular ( Edição do autor – 2006).
José Estanislau Filho



Publicado no Recanto das Letras em 09/08/2008
Código do texto: T1120950





quinta-feira, 21 de novembro de 2013

2 poemas de PAULO LEMINSKI






PAULO LEMINSKI

[1944 – 1989 ]



M, DE MEMÓRIA


     Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
     Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
     Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
     assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
     um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
     Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
     Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
     Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
     Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
     Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.







Bem no fundo


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto


a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo


extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais


mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.









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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

2 poemas de DANTAS MOTA






DANTAS MOTA

[1913-1974]


QUE DURO TEMPO

Que duro tempo, amigos! Nem direi:
-Irmãos, que rudes fronteiras separam
Entre o ódio, a fome e o amor.
Tanta noite sobre nós já passada,
Que o tempo mal se deixa entrever
No fundo ruço da neblina triste.


Há chuva no mundo? Há lama na forja?
Há dedos tecendo sóis em silêncio,
Mãos que falam de possíveis eventos.
Mas na solidão teu corpo se agita.
Vem das chuvas e dos natais completos
Atrás da vidraça em dura ausência.


Lá fora bem que pode haver a tarde,
A tarde e outras crianças da vila
De roda e cantos brincando.
As sombras da noite, de novo, se
Deitariam sobre a terra de si já viúva
De tantos dotes, alegrias tantas.


E a tua infância em face neutra ficara.
Breves as mãos que roçaram braços
Brancos e te fizeram sugar beijos
Frustros que hoje vos não acalantam.
As rugas, porém, confluídas num só fim,
Dizem de males apenas caminhando.




Fonte: Suplemento Literário MG / set / out 2013 Edição 1.350








NOTURNO DE BELO HORIZONTE


O chope não me traz o desejado esquecimento
Os insetos morrem de encontro à lâmpada
Ou se açoitam no sofrimento destas rosas secas.
Vem do Montanhês este ar de farra oculta,
Bem mineira, e um trombone, atravessando
A pensão "Wankie", próxima à Empresa Funerária,
Acorda os mortos desolados na Rua Varginha.
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça
E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,
O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha.
Tísicos bóiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais
Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana.
As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,
Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro
Mandam ao ar esta canção intolerável
Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio.
Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin.
Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa.
Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas
De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas.
O Arrudas desce tranquilo, grosso e pesado,
Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de
Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente
Como no princípio. Somente, ao longe,
Na solidão de um poste, num fim de rua,
O vento agita o capote do guarda.



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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

2 poemas de Ferreira Gullar









FERREIRA GULLAR



VOLTAS PARA CASA


Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.

Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonaste, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.

De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leitura de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que viste:
a vida, a vida é bela!

A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Míriam, de Luísa...

Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.

Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para eles
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outro dia.




In: Dentro da noite veloz / 1975.






Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

 


in Na Vertigem do Dia (1975-1980)



FERREIRA GULLAR




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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

prosa & verso de Paulo Mendes Campos







PAULO MENDES CAMPOS


[1922-1991]


 
prosa & verso




Declaração de Males

Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda


Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.
Já estive, sem diagnóstico, bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.
No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios... the pule cast of throught... sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.
Não creio contudo em myself.
Nem creio mais que possa revelar-me em other self.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.
Sou o próprio síndico de minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.
Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.
Algum deus em mim persiste
mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.
Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano talvez seja um engano.








O Morto


Por que celeste transtorno
tarda-me o cosmo do sangue
o óleo grosso do morto?
 
Por que ver pelo meu olho?
Por que usar o meu corpo?
Se eu sou vivo e ele morto?
 
Por que pacto inconsentido
(ou miserável acordo)
Aninhou-se em mim o morto?
 
Que prazer mais decomposto
faz do meu peito intermédio
do peito ausente do morto?
 
Por que a tara do morto
é inserir sua pele
entre o meu e o outro corpo.
 
Se for do gosto do morto
o que como com desgosto
come o morto em minha boca.
 
Que secreto desacordo!
ser apenas o entreposto
de um corpo vivo e outro morto!
 
Ele é que é cheio, eu sou oco.








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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

poema de Denise Emmer





DENISE EMMER

Rio de Janeiro, 1958-



O INVENTOR DE ENIGMAS

Para Moacyr Félix



Os poetas carregam seus sacos de poeira
e sobem e descem inúteis ladeiras...
levam os poetas como se levassem filhos
nas suas costas os mundos pesados de Carlos.

São tão poucos para tantos mundos que existem
dentro de tantos sacos imensos e cinzas
são tão raros os sábios que sonham como pássaros
que restarão países sobre países empilhados

Os poetas escutam o ranger dos séculos
que se abrem que se fecham como portas trágicas
a poesia veste blusas claras em meninas mortas
ou absolutamente não surpreenderá as guerras.

Se um dia ela mudar os deuses de seus picos
a ponto de evitar que um câncer se espalhe

no organismo dos mares ou dos intestinos podres

ou se um dia ela acender um corpo baleado
antecipando a luz materna das estrelas
uma cidade será uma cidade bela
a Terra minha única memória.

Acho que ela passa voando sobre os cisnes
e cheira a carne em brasa dos campos de extermínio
ela pode cruzar as mãos de um velho
ou disparar uma fábrica de enigmas.

Os poetas são seres inegavelmente invisíveis
mas a poesia é tão clara como um piano no espaço
eles se infiltram incógnitos nas multidões raivosas
ela descreve um arco no céu e reinventa a noite
eles atravessam portas fechadas de cofres vazios

ela projeta o sonho do Homem no espectro da luz


(do livro O inventor de Enigma)


in: 41 Poetas do Rio. Funarte, 1998.





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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

2 poemas de Carlos Lima








CARLOS LIMA


RJ , 1945


ALMAS MOFADAS

A André Breton


A vida apenas esta
no picadeiro dos nossos corações destroçados
sob a cal e os esqueletos dos sonhos impossíveis

A vida apenas esta
na usura dessa saudade lusa que me rói
como as garras de um violino fantasma numa casa deserta

A vida apenas esta
no exílio selvagem dos meus olhos perdidos dos teus
na vertigem do abismo desse céu onde se escreve a palavra nunca

A vida apenas esta
enquanto o carnívoro liebestod do destino
afia as suas facas na garganta azul do tédio

A vida apenas esta
onde o espantalho fluvial da dor
acende o teu nome nas pálpebras da noite vasta

A vida apenas esta
eu aqui bebendo genebra só pensando nela
eu aqui tomando um porre de gim sem pensar em mim

A vida apenas esta
nesta melancolia de minotauro encarcerado
no labirinto desse amar cegamente o amargo amor

A vida apenas esta
ainda que nossas almas mofadas nas cicatrizes de sonâmbulos
silogismos
continuem apenas tateando nesse ossuário dos desejos a terrestre
aventura lucilante


(1.9.1996)





CANÇÃO DESESPERADA


Dentro de mí mismo me he perdido,
Chego de llorar una ilusión...
E. S. DISCÉPOLO


Como um cão louco como uma canção desesperada
só no meio do mundo só no meio da madrugada
sob o beijo frio da lua somos despejados da ilusão
(toda saudade é galega e nem toda cerveja é gelada)
tocamos a fímbria da noite desiludidos e sem perdão

Minha poesia, diz a ela, que noite e dia
de amor padeço, sofro, anoiteço
a esperança não é mais irmã da fantasia
Chego cedo do dia já vencido
para dizer esses versos aos teus ouvidos
mas sei que os dentes do tédio ultimam os seus desígnios

Ah, a tirania da tua ausência
deixará as noites obscenamente incompletas
a poesia será mendiga sem a pureza dos teus mistérios
já não haverá mais calma no mundo
a paixão desertará da vida e tudo que amarmos nos fará sofrer

Mas esta é apenas uma noite vulgar uma simples canção
no peito de um homem comum num subúrbio qualquer da cidade
e não é bom nos determos nas tentações desta paisagem
fiquemos silentes com o cristal da presença só da presença
neste dédalo o sonho o sonhador a sonhada não se separam
nunca mais


(25.8.1996)



in: 41 Poetas do Rio. Moacyr Félix (org.) RJ, Funarte, 1998.



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