terça-feira, 20 de dezembro de 2016

LUZES - poema by LdeM







Luzes



Vejo hoje aqueles que almejam o retrocesso,
o extirpar o moderno como um abscesso
dispostos ao próprio vômito lamberem
e do livre-pensar as Luzes esquecerem,


a pregarem que à boa moral o vício corroeu
e que sem os altares a alma se escondeu
que só em vivermos já é pleno o sofrer
e o consolo existe em algo para crer.


Eu sei, as promessas ainda não cumpridas
geram frustrações que afligem as vidas:
a igualdade caluniada, desprezada,
a liberdade deturpada, remendada,


a dignidade aviltada cai violentada,
a fraternidade tão sonhada, inalcançada !
assim muitos julgam tudo encontrar na fé
e obriga-nos todos à uma marcha à ré !


Pois as Luzes ainda disseminam suas chamas
a tolerância e o saber entre outras ramas
a queimar os trapos que nos têm atados
e então superarmos sacrifícios passados.






mar03



leonardo de magalhaens

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

a cidade - poema by LdeM






a cidade 
 

A cidade adoeceu em densos tons de cinza
a cidade enferma na estridência de ruídos

A cidade adoeceu, aí estão os olhares perdidos
braços e pernas a enfrentarem o trânsito

Buzinas ávidas dilacerando o dia-a-dia
novas trombetas ensurdecem o ar fétido

A cidade enferma de gravatas apertadas
de ocultadas tensões em sorrisos de atenção

sufocadas se longe de suas mesas digitais
sem suas cúpulas de ar-condicionado

Cabeças erguidas para vencerem na vida
seguir adiante mesmo se é pouco o fôlego

correr e contorcer e esquecer o dia
como servos fiéis de um ansiado futuro

guiam os passos céleres velhos temores
um susto súbito - o brado áspero

rasga a tarde sufocante esta voz de angústia
rompe o alarido a implorar por piedade







Cegos no êxtase da luz transbordante
olhos vermelhos nos lampejos de mercúrio

faróis alucinados no anoitecer de neón
pupilas irritadas no jogo multicor dos sinais

A cidade enferma de árvores mutiladas
meio aos retorcidos ramos de arame

galhos sintéticos ncimam caules de concreto
sutil leveza envidraçada de mil reflexos







A cidade enferma em sua mortalha de asfalto
onde canteiros exibem raízes pavimentadas

folhas sobrevivem enegrecidos de fuligem
ao lento envenenar dos mil combustores

os monstros de lata com seus relinchos
seguem lotados de corpos amontoados

semblantes fatigados ruminam sonhos adiados
na cidade adoecida de agitação suicida.




abr02




leonardo de magalhaens





terça-feira, 6 de dezembro de 2016

COSMOS - poema by LdeM









Cosmos



Cosmos, a dádiva da Potência
Forjar infindo: os Fluxos se sucedem
Em Volteios mil - de Engrenagem -
de Estrelas fulgurante Moagem
brotando em Nébulas novos Astros
esferas em Órbitas se medem.



Disseminada, fértil Poeira Estelar
em rochosos Globos semeia Vida
Narinas avançam em busca de Ar
na relva volteiam Plumas aladas
Enxames bizarros saídos do Nada
Clamores em bocas antes caladas.




Torpor, o Desamparo em ares vastos
No descompasso abre-se o Vazio
Ansiosos diante do Salto além
diante do Desconhecido o Calafrio
diante dos Supremos rezar amém
Temor onde germina a Consciência.






mar03



leonardo de magalhaens






quarta-feira, 30 de novembro de 2016

vitrines - poema by LdeM







vitrines



Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

'A Flor e a Náusea' [Carlos Drummond de Andrade]



pelas ruas corações jovens mergulhados em dúvidas
anseios solitários despertos na névoa
fissuras em suas almas inquietas
sentindo as lágrimas fluirem em miséria comum


vivendo em círculos o cidadão sonãmbulo
aprende e passa adiante a repressão
em mil padrões já enraizados
as mesmas mentiras e vendidas farsas
a surgirem como novíssima verdade


rangendo os dentes, ruminando as mesmas aflições
faces orvalhadas pela cruel insônia
deformadas por íntimo tormento
ilusões jogadas no cassino das ambições


contemplamos as vitrines iluminadas
o brilho de fina seda boquitas rubras
velhas promessas ordns murmuradas
esquecemos o peso da desigualdade
sedamos a temida amargura da queda


pelas ruas passeiam sólidas mágoas recolhidas
vidas sem sentido encaram a realidade
crianças sem lar regurgitam o fel
num piscar de olhos o punhalar da boca faminta


aceitando a servidão sob sorrisos
velhos clamores que compreendemos
manipulando os egos sensíveis
afastando qualquer dúvida e senso
degustar preconceitos de berço à cova


brisas metálicas redemoinham o lixo das praças
desvelam as imagens da corrupção
por trás dos sorrisos dos cartazes
um inocente cidadão ressona com sangue nas mãos.




versão: 30nov16



leonardo de magalhaens







segunda-feira, 21 de novembro de 2016

3 poemas de VINICIUS LIMA em Animais Floridos







VINICIUS LIMA




jornalista, ensaísta, tradutor e poeta


Londrina / Paraná




          "sou um vagabundo sujo de fuligem e pés alados
          sou uma tempestade perdida dentro de um missal"





o menino percorre a floresta de sonhos
os carvalhos choram suas seivas
e o menino atravessa a noite
com os olhos minando besouros
sombras iluminam a ponte oxidada
madeira negra suspensa no ar
sob o rio prateado
as águas lambem as mãos
queimam e se renovam
enquanto cavalos bebem o torrão de luz
que de dentro do menino brota



...







eu não semeio os cavalos
nem sangro a erra com fé ou ferro
aqui tudo brota do sonho da libélula
o vento das árvores sopra meus olhos
suave seiva que escorre entre os dedos
e penteia os cabelos
comecei a escutar o idioma das plantas
que atravessa meu fõlego
e lambe minha língua:
"a vida nasce e morre dentro do olho rochoso"
e o perfume do musgo me atravessa






...





erguer um muro entre o que existo e o que invento
                                              pra depois demolir
imaginação é um cão caçando o próprio vulto
os espectros de luz dançam na parede
                                           e dentro de minha cicatriz
os mortos desviam-me o olhar pois estremeço
                                        como folha ou denso arbusto no
outono azul
com as mãos pra trás cruzadas nas costas
                                         a sombra esconde seus tentáculos
expande limites até os grãos invisíveis do ar
                                                     colhidos pela língua
torrão energético dormente no núcleo animal





em Animais Floridos / Anome, 2016






mais em http://www.mallarmargens.com/2013/05/6-poemas-de-vinicius-lima.html



quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O CARVALHO E O CANIÇO - fábula de La Fontaine







imagem : pintura de Gustave Doré [sec. 19]




 
O  CARVALHO  E  O  CANIÇO




La Fontaine [sec. 17]




- Bem podes te queixar da Natureza,
disse o Carvalho ao tímido Caniço.
- Ela, em vez de te dar a fortaleza
de um carvalho, te fez assim, magriço.
Até mesmo um pardal, que nada pesa,
te faz curvar a espinha, facilmente.
Já eu, de fronte erguida e com nobreza,
enfrento o furacão galhardamente!


- Por teres tão bondoso coração
sentes pena de mim - disse o Caniço.
- Mas não precisa tal preocupação,
uma vez que, mostrando-me submisso,
enfrento com vantagem o furacão:
vergo e não quebro. Tu, enquanto isso,
corres o risco de quebrar.



                                  E então
um vento forte passou a soprar,
tudo arrastando no seu turbilhão.
O Caniço vergou-se sem quebrar.
Já o Carvalho, sem poder vergar,
foi arrancado e desabou no chão.




Às vezes ter bom jogo de cintura
é mais vantagem que musculatura.





trad. Ferreira Gullar





in Fábulas de La Fontaine / Revan, 1997.









Le Chêne et le Roseau


Le Chêne un jour dit au roseau :
Vous avez bien sujet d'accuser la Nature ;
Un Roitelet  pour vous est un pesant fardeau.
            Le moindre vent qui d'aventure
            Fait rider la face de l'eau,
            Vous oblige à baisser la tête :
Cependant que mon front, au Caucase pareil,
Non content d'arrêter les rayons du soleil,
            Brave l'effort de la tempête.
Tout vous est aquilon ; tout me semble zéphir .
Encor si vous naissiez à l'abri du feuillage
            Dont je couvre le voisinage,
            Vous n'auriez pas tant à souffrir :
            Je vous défendrais de l'orage ;
            Mais vous naissez le plus souvent
Sur les humides bords des Royaumes du vent.
La Nature envers vous me semble bien injuste.
 Votre compassion, lui répondit l'Arbuste ,
Part d'un bon naturel ; mais quittez ce souci.
     Les vents me sont moins qu'à vous redoutables.
Je plie, et ne romps pas. Vous avez jusqu'ici
            Contre leurs coups épouvantables
            Résisté sans courber le dos ;
Mais attendons la fin. Comme il disait ces mots,
Du bout de l'horizon accourt avec furie
            Le plus terrible des enfants
Que le Nord eût porté jusque-là dans ses flancs.
            L'Arbre tient bon ; le Roseau plie.
            Le vent redouble ses efforts,
            Et fait si bien qu'il déracine
Celui de qui la tête au ciel était voisine,
Et dont les pieds touchaient à l'empire des morts.




sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Mais um dia [fragmentos] by Carlos Felipe Moisés








CARLOS FELIPE MOISÉS




Mais um dia
  (fragmentos)



Um tiro no escuro, louca
disparada do carro a zunir
dentro da noite,
um piscar de olhos --
e a luz do novo dia ilumina
a oficina do corpo.
O mesmo corpo feito de alma nua,
sangue e humores vários.
Um novo dia igual aos dez mil
novecentos e cinqüenta já percorridos,
gastos à mesa dos bares,
a acumular nas retinas
a imagem velha dos insetos
roendo a carcaça do dia,
jogada na calçada.
                           Insetos
assustados, à espera do bote,
à espera do berro, à espera
do sapo que os engole
          (engoliu!)
e eles não sabem e seguem,
a roer as migalhas grudadas
nas tripas do batráquio.
           Dez mil
novecentos e cinqüenta dias
consumidos à distância,
no silêncio do quarto onde rodopia,
há trinta anos,
a mesma velha inútil melodia.
Rodopia nada!
                  Explode
em gumes,
não resiste ao punho cerrado
que rompe a vidraça
e atravessa a neblina,
só para alcançar no arbusto em frente
o bago murcho que volta
e se espreme entre os dentes
e verte uma gota,
                      uma só,
a gota perdida
do ódio por tudo e por nada.
Ódio só afago,
inofensivo, guardado no fogo
brando em que me afago
há dez mil
novecentos e cinqüenta dias.
 





em http://www.jornaldepoesia.jor.br/cfm3p.html#maisumdia





mais em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_felipe_moises.html



terça-feira, 6 de setembro de 2016

É inútil querer parar o homem -- Moacyr Félix





Moacyr Félix 



[RJ, 1926-2005]



É inútil querer parar o homem [1964]

É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas da carne
sob as velocidades da luz e da sombra.
É inútil querer parar o Homem
acolher sempre um pouco de si próprio
no mistério da vida a cavalgar
os cavalos aéreos da semântica
sob uma indeferida eternidade.
É inútil querer parar o Homem
e o impulso que o transforma sempre
na pátria sem fim do ato livre
que arranca a vida e o tempo e as coisas
do espelho imóvel dos conceitos.
Ah, que mistério maior é este
que liga a liberdade e o homem
e une o homem a outros homens
como o curso de um rio ao mar!
(quando a noite é una e indivisível,
nos olhos da mulher que eu amo
acende-se o deus deste segredo
-e uma sombra só nos transporta
ao fundo sem nome da vida.)

É inútil querer parar o Homem.
Do que morre fica o gesto alto
a ser o germe de outro gesto
que ainda nem vemos no tempo.
Isto as crianças nos lembram
quando rodam em nossas portas
os ossos do dia que foi nosso
e agora são os eixos do pedalar
nas bicicletas com que os deuses
as vão levando para outros dias
do acaso, do desejo e do fazer
em que não seremos mais, eternamente.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho a dar longas voltas
ou a inventar estradas no cárcere,
o seu sonho mais essencial
a destruir e a enferrujar
metais de qualquer ditadura.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho, o mais de flor,
de apagar dos lábios da terra
o ricto do medo que estica
no céu de aço a bomba atômica;
o seu sonho, que é o seu movimento
onde a razão dança mais bela,
de ver no armário dos museus
o manual oco e sem asas
que aprisiona o corpo e o sexo
en desrazões dadas na infância
e os livros de Deve & Haver
dos poderosos de Manhattan
comerciando Deus e o mundo.

É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho de enterrar
sob o verde passo de uma história livre
os dogmas do stalinismo
grudado como esparadrapo
sobra a boca múltipla da vida
(e a subdesenvolvida farda
dos tiranos que bebem uísque
pago com o sangue de sua pátria).
É inútil querer parar o Homem:
em tudo que de amor cantar
o seu sonho caminhará
a encaminhá-lo na direção dele próprio
inteirado quando históricamente liberto
do econômmico em que ora o algemam.
É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas de carne.
A andar em formas de palavras
sob os arvoredos da vida
o sonho do Homem caminhará
do pensamento para as mãos
e das mãos para o pensamento,
noite e dia caminhará.
até tornar as mãos em pássaros
livres, inteiramente livres, para amar
o azul ou as várias almas do céu
dentro do Homem que se movimenta
na liberdade, no amor e no desejo
em que a si próprio inventa.




em Canto para as transformações do homem [1964]








terça-feira, 2 de agosto de 2016

Como quem pede uma esmola - Abgar Renault







Abgar Renault 


[MG, 1901-1995]




Como quem pede uma esmola


Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.




fonte: Jornal de Poesia

http://www.jornaldepoesia.jor.br/arenault1.html#comoquem









quinta-feira, 23 de junho de 2016

5 poemas de ANTONIO SOUZA CAPURNAN







5 poemas de



ANTONIO SOUZA CAPURNAN



contemporâneo


na esquina almodóvar da noite
o rapaz classe média bonito
ao preço de um jeans se oferece
no dentro da noite moderna prece
o rapaz classe média bendito

no coração da avenida
o rapaz classe média singelo
tem hora sujeito na cama
tem hora objeto e fama

na alameda almodóvar do tempo
o rapaz classe média argentino
diz sim ao aceno do automóvel brilhante

e o cadilaque globalizado
navega na noite pingente
entre o neón e meninos esquálidos
que travam na noite moderna
una increíble aventura
por pan y chocolate

na quebrada brasil de madri
un muchacho almodóvar na tela
rubio sol de maíz
diz sim ao aceno do automóvel brilhate
na tela febril de almodóvar

o rapaz globalizado e bendito
recolhe pesetas no néon brilhante
ao odor barato de um motel

e o automóvel pingente gentil
tem ao volante um rapaz neón
cuja namorada recolhe peseta e real
na esquina do milênio almodóvar

y hay otros muchachos
numa incrível aventura
por dinheiro e crack

o que diria o poeta
desta tarde bendita estagnada?

entre a árvore e o relento
biógrafo de um tempo:

eu sou um cachorro aluado
no coração da cidade

o automóvel dissonante
não atracou e ainda:
o céu em brasília
é de triste baía e lata

a vida mudou de século
e a jararaca acrobática
trocou de nome e casaca
para confundir a floresta

não sabe a peçonhenta
que os ofendidos de cobra
conhecem de longe e bem
a liturgia do bote

em copacabana nossa irmã
doce avenrura e porre
em pão dormido e corpo alado

nosso tempo é um calango estrábico

na avenida são joão
os vultos de cirrose
na epiderme nordstina

na epiderme da são joão
há vultos de cirrose
e avenida nordestina

e todavia o automóvel brilhante
canta a homilia globalizada

enquanto o rapaz bonito e doce
rabisca um coração hodierno
no guardanapo de almodóvar





...





desenredos

quando as flores densas de inverno
vão se abrindo em silêncio e lua

quando as árvores deliciam chuva
e as nuvens desatam colibris e febre

tu me arremessas em junho
e me aqueces em luz

e se a saudade vem como poste e onda
onde sede e pão sou a mesa e o pote

e se fugindo tolo vou florindo em verso
no solar da estrela me adormeço em seda

contudo arastas para si meu corpo de vertigem

meu pecado de moinho
a consumir gengivas

pedras
andanças

e quase sempre
onde queres a conclusão
eu me quebro em movimento



...








surrealista


há manhãs atemporais
em que telhas me descem do céu

um cacho de flor se abre em nenúfar
no esteio do quarto

e tudo é tão bom e estranho
como a chave na porta
ou o cinzeiro da janela do varal

e a manhã se vai em bicho
porque estou feliz
inteiro e comum

há noutras manhãs
o trânsito cerrando a cidade
como um cachorro grande
na minha cama onde valsam:
rodas flores esquinas estações

calo-me assim à aridez do asfalto
como se fosse o dia

um estilhaço
um destino
um tiro no braço esquerdo
é quando as telhas me são violetas
e moço antigo
vou gaguejando o barulho
da nostalgia que há na cidade

e um avião
a nuvem
um pássaro
o relógio de ponto

pousam na palmeira
silenciosamente

penso que é noite
e num óbvio de bicho
estou para o sol ruminando promessas

há manhãs tênues de arlequim e brisa
em que a primavera me chega
de carruagem e sapato de seda

que o tempo
não tem estação
nem relógio de ponto
o tempo

então eu danço para ti
e estou no teu olhar de sábado
num úmido de febre e espanto

e a manhã vai chovendo em mim

como alaiança de noivo azulada
um peixe na água girando
ou esta nave no céu




...




maiakóvsky


os sóis brotando das águas
lenço branco na epiderme
o calor dos santos
reacendendo as preces

no muro a sentença:

os tempos difíceis já se foram!

que tempo é este que começou?

a dúvida no padre e cantiga nos lençóis

foi-se embora o milênio
arbusto de um século fascista

dobrando a página escuto ainda
os ruídos de um dogma
e parcos signos de aurora

dizem os donos:
os jornais são livres e verdadeiros
alegria tanta que cega

a notícia é mansa qual lâmina
e o boi no pasto mastiga o capim
solenemente

ou ainda:
tudo é natural
e deus escreve em linhas tortas

então o que quereis maiakóvsky ?





...





tempoveias



o tempo passou na janela
neblinou a cidade

o tempo desarranja os cabelos
o tempo é cortina de vidro

tudo no empo é efêmero
como o silêncio no beijo

o tempo é um vulcão luminoso
cadela de cinco patas

o tempo e sua boca de monge

a valsa do tempo
ruiu sacramentos

o tempo dança em falso
o tempo canta em falsete

o tempo é um calango estrábico
intermitente

o tempo é policronia
ressaca e miséria

a retina do tempo é nostálgica
o tempo põe cisco no olho

o empo penhora o porquê
e senhora a paciência

o tempo é a frigideira quente
e um peixe em sangue

solidão e orgasmo
o tempo vai engolindo tudo

que tempo é este que começou?

o tempo é pão dialético
onstrução e ruína

o tempo
este cavalo brabo
atarantou a utopia

foi ele
o tempo senhor de tudo
quem me emprestou por engano
este chapéu de chuva








in  VALSA MÍNIMA / BH, 2015