quinta-feira, 23 de junho de 2016

5 poemas de ANTONIO SOUZA CAPURNAN







5 poemas de



ANTONIO SOUZA CAPURNAN



contemporâneo


na esquina almodóvar da noite
o rapaz classe média bonito
ao preço de um jeans se oferece
no dentro da noite moderna prece
o rapaz classe média bendito

no coração da avenida
o rapaz classe média singelo
tem hora sujeito na cama
tem hora objeto e fama

na alameda almodóvar do tempo
o rapaz classe média argentino
diz sim ao aceno do automóvel brilhante

e o cadilaque globalizado
navega na noite pingente
entre o neón e meninos esquálidos
que travam na noite moderna
una increíble aventura
por pan y chocolate

na quebrada brasil de madri
un muchacho almodóvar na tela
rubio sol de maíz
diz sim ao aceno do automóvel brilhate
na tela febril de almodóvar

o rapaz globalizado e bendito
recolhe pesetas no néon brilhante
ao odor barato de um motel

e o automóvel pingente gentil
tem ao volante um rapaz neón
cuja namorada recolhe peseta e real
na esquina do milênio almodóvar

y hay otros muchachos
numa incrível aventura
por dinheiro e crack

o que diria o poeta
desta tarde bendita estagnada?

entre a árvore e o relento
biógrafo de um tempo:

eu sou um cachorro aluado
no coração da cidade

o automóvel dissonante
não atracou e ainda:
o céu em brasília
é de triste baía e lata

a vida mudou de século
e a jararaca acrobática
trocou de nome e casaca
para confundir a floresta

não sabe a peçonhenta
que os ofendidos de cobra
conhecem de longe e bem
a liturgia do bote

em copacabana nossa irmã
doce avenrura e porre
em pão dormido e corpo alado

nosso tempo é um calango estrábico

na avenida são joão
os vultos de cirrose
na epiderme nordstina

na epiderme da são joão
há vultos de cirrose
e avenida nordestina

e todavia o automóvel brilhante
canta a homilia globalizada

enquanto o rapaz bonito e doce
rabisca um coração hodierno
no guardanapo de almodóvar





...





desenredos

quando as flores densas de inverno
vão se abrindo em silêncio e lua

quando as árvores deliciam chuva
e as nuvens desatam colibris e febre

tu me arremessas em junho
e me aqueces em luz

e se a saudade vem como poste e onda
onde sede e pão sou a mesa e o pote

e se fugindo tolo vou florindo em verso
no solar da estrela me adormeço em seda

contudo arastas para si meu corpo de vertigem

meu pecado de moinho
a consumir gengivas

pedras
andanças

e quase sempre
onde queres a conclusão
eu me quebro em movimento



...








surrealista


há manhãs atemporais
em que telhas me descem do céu

um cacho de flor se abre em nenúfar
no esteio do quarto

e tudo é tão bom e estranho
como a chave na porta
ou o cinzeiro da janela do varal

e a manhã se vai em bicho
porque estou feliz
inteiro e comum

há noutras manhãs
o trânsito cerrando a cidade
como um cachorro grande
na minha cama onde valsam:
rodas flores esquinas estações

calo-me assim à aridez do asfalto
como se fosse o dia

um estilhaço
um destino
um tiro no braço esquerdo
é quando as telhas me são violetas
e moço antigo
vou gaguejando o barulho
da nostalgia que há na cidade

e um avião
a nuvem
um pássaro
o relógio de ponto

pousam na palmeira
silenciosamente

penso que é noite
e num óbvio de bicho
estou para o sol ruminando promessas

há manhãs tênues de arlequim e brisa
em que a primavera me chega
de carruagem e sapato de seda

que o tempo
não tem estação
nem relógio de ponto
o tempo

então eu danço para ti
e estou no teu olhar de sábado
num úmido de febre e espanto

e a manhã vai chovendo em mim

como alaiança de noivo azulada
um peixe na água girando
ou esta nave no céu




...




maiakóvsky


os sóis brotando das águas
lenço branco na epiderme
o calor dos santos
reacendendo as preces

no muro a sentença:

os tempos difíceis já se foram!

que tempo é este que começou?

a dúvida no padre e cantiga nos lençóis

foi-se embora o milênio
arbusto de um século fascista

dobrando a página escuto ainda
os ruídos de um dogma
e parcos signos de aurora

dizem os donos:
os jornais são livres e verdadeiros
alegria tanta que cega

a notícia é mansa qual lâmina
e o boi no pasto mastiga o capim
solenemente

ou ainda:
tudo é natural
e deus escreve em linhas tortas

então o que quereis maiakóvsky ?





...





tempoveias



o tempo passou na janela
neblinou a cidade

o tempo desarranja os cabelos
o tempo é cortina de vidro

tudo no empo é efêmero
como o silêncio no beijo

o tempo é um vulcão luminoso
cadela de cinco patas

o tempo e sua boca de monge

a valsa do tempo
ruiu sacramentos

o tempo dança em falso
o tempo canta em falsete

o tempo é um calango estrábico
intermitente

o tempo é policronia
ressaca e miséria

a retina do tempo é nostálgica
o tempo põe cisco no olho

o empo penhora o porquê
e senhora a paciência

o tempo é a frigideira quente
e um peixe em sangue

solidão e orgasmo
o tempo vai engolindo tudo

que tempo é este que começou?

o tempo é pão dialético
onstrução e ruína

o tempo
este cavalo brabo
atarantou a utopia

foi ele
o tempo senhor de tudo
quem me emprestou por engano
este chapéu de chuva








in  VALSA MÍNIMA / BH, 2015








quarta-feira, 8 de junho de 2016

2 poemas de AFONSO HENRIQUES NETO








AFONSO HENRIQUES NETO



DISCURSO

nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração. 

 
© AFONSO HENRIQUES NETO
In Abismo com Violinos, 1995








NÃO EXISTE

Esta paisagem não existe.
Existiu um dia de tanto sol
que esta paisagem se enfeitou
de infância transparente.
Hoje a fórmula enguiçou.
Subo a rua das notícias mortas
e o pouco do cheiro que restou
de sonho dentro da noite
sobre esse velhos meninos
rola por um sentimento difícil
gesto de agonia espessa
sombra sem possível aurora.
Esta paisagem é a hora
do verbo estagnar-se.
E os sóis vingadores
a arrancarem do futuro
um sangue novo que invada
as trêmulas rochas da morte
são apenas o mesmo rio
esquecido de correr
desesperançado de mar.
Contudo canta canta coração
inventa a luminosa paisagem
personagem sem raiz e chão. 

 
© AFONSO HENRIQUES NETO
In O misterioso ladrão de Tenerife, 1972





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