segunda-feira, 26 de outubro de 2015

3 poemas de Afonso Henriques Neto


 





AFONSO  HENRIQUES  NETO







Desconhecido

Tudo o que está preso há de um dia se livrar.
O poema é sempre mais livre que o próprio ar.
Vejam as vozes de madeira encarceradas
em manequins sombrios nos fundos de um depósito
ou mesmo nas feéricas vitrinas onde a treva manietada
cospe iodo.
Vejam como essas vozes de madeira se esforçam
para se safar
para caminhar nos passos de qualquer passante
que lá se vai adiante sem nada
nada notar.
Vejam a enfermeira arrancando da cama lençóis de lodo
depois que levaram o corpo para o último banho
e o quarto se trancou em escamas obsessivas.
Vejam o esforço da aurora para romper esses muros mofados
os olhos trancafiados na sombra até o fim dos abismos.
Vejam que a própria manhã e seus inflamados
leopardos
arrasta uma corrente de repetida exaustão
por essas chamas e esses ruídos de língua nova ou de latim
de asfixiada saudade
fúria de ouro a sangrar sem idade.
Tudo o que está preso há de um dia se livrar.
O poema é sonho mais livre que o próprio sonhar.






Basta de Poesia


nuvens de cimento não pertencem à paisagem
ventos de granito em discursos descabelados
porque arte não é coisa de amadores
é matéria pra profissional mesmo
assim é melhor botar a juventude pra fora da sala
e do tempo
os jovens costumam delirar demais
pela arte
que no fim das contas é coleção de febres & abismos de transe
vulcões empedrados & fumo gelado pra velhos vagabundos
salvos do incêndio na galeria desesperançada

pois aqui só leva o prêmio quem não apostar porra nenhuma
ou quem mijar de tanto rir da cara
desses senhores que flutuam por entre acervos de museus
e colam maus poetas e artistas amigos em edições de luxo
mais literatura marqueteira nas grandes editoras & feiras
falando da arte como se fosse um empíreo
de fabulações fabulosas a mastigar
solenes voragens de ouro
& brinquedinhos semânticos com palavras estripadas
pelos profissionais das vanguardas
todos criticamente estupidamente bem penteados
em teorias ideologias midiáticas pulsantes
e vai se ver é tudo isso junto mesmo

no fundo a poesia está pouco se lixando
para o lixo que as cidades costumam empilhar
poesia que sempre é chamada para lavar
lençóis nebulosos de epidemias criminosas
mesmo se ninguém saiba que merda de poesia é essa
um áspero lautréamont no semear neblinas negras
(venha venha oh sublime silêncio constelado
para expulsar os demônios e limpar os escarros
desses delírios que vícios escamaram)









ENTÃO

vocês que fuzilaram garcía lorca
& cozinham crianças nas nuvens dos sacrifícios
vocês que destroçaram caminhos
& continuam a fabricar extermínios
nas tempestades de armas nas arquiteturas de amônia
nos verbos dos genocídios

vocês que chacinaram noites & dias
com terremotos de mil vírus explosivos
& se persignam ao moerem ossos vivos
vocês que rapinam o ouro nos úteros do orvalho
vocês que trancados nos salões sombrios
dispõem das tripas da vida & dos demônios da morte
impermeáveis aos gritos por todos os tímpanos moídos

vocês que trucidaram os ventos serão cobertos pela praga
dos bichos torrados nas florestas de cálcio
convulsões de oceanos purulentos
& rios empedrados nas fontes que urinam
vaginas sem suco & sêmens se esvaecendo
púrpuros berros de suicidas ardendo
abismos & mandíbulas trituradas nas invernias
vocês que serão os últimos consumidos
nas malhas em febre das cidades que agonizam
vocês que assistirão em transe o desfile das terríveis profecias
por sobre um carnaval de navalhas & máscaras vazias
vocês que uivarão vomitando
catedrais de miasmas das radioativas neblinas
vocês apodrecidos sem lamento
vocês que rasgaram as primaveras
vocês que assassinaram os ventos




in UMA CERVEJA NO DILÚVIO / 2011


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Os Desaparecidos - poema by LdeM


 






Os Desaparecidos

Todos os dias
sem solução
os desaparecidos
povoam a nossa cidade
folhetos anúncios
fotos cartazes nos ônibus
nome idade cor
ocupação desde quando
desaparecidos
--triste condição! --
onde por desventura
eles & elas andarão?

daqui desapareceram
para aparecerem
onde??
em que cidade? país? província?
que destino tiveram?

Zé Maria da Silva
46 anos pardo
pedreiro, pai de três filhos
desaparecido desde o Natal

Meire de Lourdes Dutra
28 anos negra
dona de casa recém-casada
desaparecida após show de axé

Fernando Fernandes Ferreira
29 anos branco
médico recém-formado
desaparecido numa escalada
na Serra do Mar

Silvana Silveira Silva
31 anos parda
cobradora de ônibus
desaparecida em plena feira de artesanato

sequestrados?
consumidos?
carbonizados?
abduzidos?
vampirizados?
os desaparecidos
jamais aparecerão??

Carlos Charles Cardoso
27 anos poeta
segundo de três irmãos
desaparecido após blitz policial

João Johnson Gomes
42 anos moreno
contador pai de duas filhas
desaparecido após brigar com a sogra

Maria de Freitas Lemos
22 anos mulata
arrumadeira de motel
saiu de casa com blusa azul
e saia verde-lima
nunca mais foi vista

William Carlos Guillén
19 anos estudante
saiu para comprar cerveja
e desapareceu

desapareceram aqui
apareceram onde?
que fim tiveram?
exilados?
vendidos?
transladados?
sumidos?
cremados?





Elza Elisa Machado
35 anos empresária
mãe de dois filhos
não foi mais vista
após discussão em família

Jorge Rufino, vulgo Jorgino
25 anos moreno
ajudante de serviços gerais
desaparecido em blitz
na comunidade

Leila Goulart de Ramos e Trindade
30 anos branca
socialite divorciada mãe de 1 filha
desaparecida após festa high-society
suspeita-se do namorado

Mônica Marques Madureira
13 anos estudante
criada pela avó Lourdinha
desaparecida na estação de metrô
da Lagoinha


sumidos dentre nós
aparecidos onde?
que destino tiveram?
trocados?
transferidos?
baleados?
abatidos?
golpeados?

Arlindo Arturo
52 anos pardo
sanfoneiro
desaparecido quando voltava
de um bailão

Dolores 'Dorothy' Veiga
33 anos artista de rua
não voltou de uma excursão ao Rio

Aline Limeira Moura
28 anos branca
atriz, cantora
desaparecida depois de um teste
na TV local
suspeita-se de sequestro

Hugo Goulart, vulgo Canequinha
45 anos
cantor popular, cordelista
saiu pelo sertão
e ninguém mais viu

vaporizados aqui
corporificados onde?
logrados?
agredidos?
violados?
escondidos?
enterrados
os desaparecidos
jamais revistos?




12/13out15



Leonardo de Magalhaens






quarta-feira, 14 de outubro de 2015

4 poemas de Olga Valeska


 






Olga Valeska





mundos e mutações / Anome, BH, 2010





JEU

As cartas estão na mesa
Rei e rainha caindo no feltro escuro
perplexos
por se encontrarem juntos
Olhando-se …

Surpresos com a dança inesperada
de peões torres e hibiscos.

O sol filtrado do vidro
refrata a cor fraturada
de cristais gelados.
(Tudo pode se romper
em um instante assim...)

e um cetro pode muito pouco
quando o corpo treme
e a voz se cala
em soluço.

Sabe-se
(o eterno louco sempre sabe)
Que as peças se movem
a despeito do pulsar das veias
de algum rei.

Que o baralho sempre cai
em castelos improváveis
dos dedos anilados
de uma dama qualquer.

Qual o domínio de uma torre
sozinha
no tabuleiro de confeitos?

Confetes ao alcance de mãos
(sempre vazias)
Uma oferenda morta.
Um olhar que vasculha
as copas violadas de medos
cobertos de pó e
escaras.

Espadas de vidro
que teimam
em ocultar a lâmina
lacerante de um lamento

E o sangue que escorre
além da vida e da morte?

Além do olhar
do rei e da rainha
que, na surpresa de serem pedras
de um jogo alheio,
morrem
e matam
e imploram
por se olharem assim.







CORPO ESTRANHO

Eu
e um corpo
que anda corre tropeça e salta, sabe espera chama e aquece,
teme para foge e esconde, chora sofre sangra e soluça, dói
machuca grita e esquece, encolhe encurva encobre e sela,
desvela vela protege e aninha, vive canta teima e ensina, dança
goza aquieta e compreende, dá acolhe recolhe e hesita, ri
transpira abraça e mata, trava murcha aspira e respira, deseja
treme sonha e pede, suplica rasteja escava e enterra, cheira
escuta tateia e engana, cega mostra revela e lambe, arranha
agarra toca e cura, amassa rasga prende e atira, descansa esfria
estala e destrava, beija morde abandona e ama, geme range
engasga e cala,
prova,
come,
tem fome,
tem febre
e pode até morrer sem me avisar.









SOBRE LOBOS E PASTORES

                                             a A. Caeiro

Ele guarda os rebanhos.

Eu os fustigo
para que mordam
berrem, matem, e se
desesperem

Ele pensa com um toque de dedos.

Eu corto, cruel,
as fatias entre o corpo e a mente
encurvando astúcias
e curtindo as certezas
dos impiedosos

Ele canta, de corpo inteiro,
a realidade que nada lhe diz

Eu despejo palavras enlouquecidas
no fundo do meu próprio ouvido.
E grito feroz contra rochas surdas.

Ele sabe o sentido da vida.

Ao sabor de passos peregrinos
ele segue o vento...
Eu resisto.
E sopro contra as tempestades.

Ele repousa.
E eu desfruto
(inútil)
a exaustão dos renegados.








NOITE ADENTRO

                              ao poeta desconhecido

Houve um poeta
que jamais traçou
qualquer palavra.

Mas compreendeu
o movimento adormecido
de um mangue,
noite adentro...

Ele desvendou
(noite infinita)
o gosto adocicado
da vida e da morte.
Mas nada reteve
no papel.

E eu soube esse poeta
que amou demasiado
as palavras,
destruiu a violência de seus corpos
e não enfileirou
sequer um verso.

Agora murmuro:
- Um dia eu vi O Poeta.
Ele dizia de um tempo sem realidade,
de uma noite sem sonhos -
com a voz suave
de quem de fato viu.
(canto desumano)

E as palavras não vieram noite adentro.
E sua voz serena se perdeu
longe do amparo dos sentidos.




Olga Valeska






                                    mundos e mutações / Anome, BH, 2010