terça-feira, 2 de junho de 2015

sobre o conto Relatório da Coisa - de Clarice Lispector






Sobre o conto 'Relatório da Coisa'

de Clarice Lispector [1920 - 1977]


in: Onde estivestes de noite? [1974]


     Neste conto, a autora, mestra do aprofundamento psicológico, Clarice Lispector adentra o enigma da percepção do tempo, e nossa reação diante dele, e dentro dele. Estamos inseridos no Tempo e julgamos que podemos entendê-lo! Há toda uma ciência do Tempo, um cálculo atomístico do Tempo, um tempo atomizado até os milissegundos, mas isto é doença.

      Uma Coisa difícil de entender: o Tempo. O tempo não é divisível, e sim imutável, mas nós precisamos dividir o tempo, daí inventamos o relógio : coisa monstruosa.
 
     Para abordar o delírio Tempo e Tempo medido (o relógio) é preciso uma outra forma de fala – entre a ficção e a digressão. Um dizer sem literatura : relatório enquanto anti-literatura. Então, pensemos, o que seria literatura: mero beletrismo? Ficção? Floreamento? Simulacro? Mas o dispositivo mecânico, o despertador Sveglia, com sua matemática mecanicista, faz a autora perder a literatura: só saberá escrever relatório. Assim o mecanicismo invade a Arte?

     Enquanto medidor, Sveglia é de Deus --- cérebros divinos para concebê-lo --- enquanto Coisa que traz o despertar. Mas só de despertar viverá o Humano? “é preciso estar acordado para ver, mas é importante dormir para sonhar com a falta de tempo”. Assim, o sonhar, o não ser desperto, é tão importante quanto o ser consciente. É um irracional que complementa o racional, a la Sveglia. A Razão não é suficiente.

      A Coisa me vê ? vê também como um outro Objeto? Trata-se de um mundo coisificado, onde tudo é Objeto que tem um Objetivo. Ou então o mundo é sonho? Assim como viam um Calderón de la Barca ou um Salvador Dalí? “quero ver a realidade. Mas a realidade parece um sonho.” Esta constatação traz uma certeza, um sentimento de melancolia – felicidade – plenitude. Quase se deixa em pranto. 
 
    Mas Sveglia não chora: é sem circunstâncias. É uma vigília, é um É, sem adjetivações. Está ali como se vigiasse tudo. Olho aberto sobre tudo. Faz tudo acontecer – a sucessão dos momentos, que o Sveglia pode medir. Assim ela roga “me aconteça, Sveglia”, ao constatar o desejo: “mola da vida animal”. Mas a Coisa é indiferente ao pathos (afeto) da narradora. A Coisa não quer mal, mas não quer bem. É assim mesmo: sem afeto : ser uma Coisa. Está-aí, sem devir: sem fenecer. Pouca lhe importas que “viver apodrecendo importa muito.”

      Mas Sveglia tem fraquezas : Coisa é vulnerável. É um mero mecanismo que que pode enferrujar se submetido à umidade, por exemplo. Não tem nada além da pretensão de medir o Tempo. “o tempo que para” ? Um Tempo que exige consciência: precisamos saber a cada momento que tudo passa – e somos carregados pela correnteza do Devir: o Tempo: rio que escorre: areias que deslizam.

      Estar consciente é despertar. E despertar é acordar-se de dentro para fora. Ao soar no momento do despertar o cérebro eletrônico se comunica com nosso cérebro numa espécie de sintonia que ofusca a natureza da contradição: o aparelho mede o Tempo, mas somente nós, seres conscientes, sabemos que o Tempo passa.

     E ser consciente é estar contra o ritmo do Sveglia : o sentimento, a mitologia, a contação de estórias, a flâneurie, ou seja, flanar por ir. Banhar-se no rio do Tempo que passa, onde não mergulhamos uma segunda vez (vide o devir – panta rei, tudo flui - de Heráclito). O humano sabe do tempo, e do medidor do tempo, mas a reciproca não é verdadeira. “Eu creio no Sveglia, ele não crê em mim, acha que minto muito, e minto mesmo”.

     Sem consciência, sem espírito lúdico, Sveglia permite só relatório, não conto, romance, “permite apenas transmissão”. O mecanicismo é seco, é metódico, é formalista, não admite ficcionalismos. Sveglia não tem nome íntimo, só anonimato, também Deus é anônimo, não tem nome que possa ser pronunciado. Sveglia é burro, age clandestinamente. E Deus? Ela ousa: “coisa grave, pode parecer heresia: Deus é burro. Ele não entende, não pensa, Ele É apenas. Burrice que se executa a Si Mesmo. Comete muitos erros e Ele sabe disso. Olhemos nós mesmos, somos um erro grave.” Muito em Si-Mesmo, contudo “um erro ele não comete: Ele não morre”. Sveglia não morre. O mecanismo não morre.

      No jogo de alegorias, a narradora faz um rol de referências e analogias, quando símbolos se relacionam com nosso cotidiano, permeado pelo Tempo e das medidas do Tempo. Assim o galo é Sveglia; o ovo completo, no todo, em sua inteireza. O de dentro é molhado, igual sentimento. Sveglia : jogo de futebol, imprevisível, mas Pelé não é, pois rompe o anonimato. Briga é Sveglia. Ter problemas não é Sveglia. E assim vai.

     Ela vive de analogias, de referências, pois não vi o Ser. “Escreverei sobre o eletrônico sem jamais vê-lo”, a indagar se ver é permitido, ou se sonho é permitido. “sonhar não é Sveglia, o número é permitido.” Ou saber que “Raríssimos poemas são permitidos”. Romance não é permitido, de modo algum. Sveglia não permite profundidades, apenas mesurações.


      Nem alegre nem triste: é Sveglia: ausência de sentimento. Água é Sveglia, escrever é, ter estilo não é. Ter seios é, o órgão masculino é demais. Uma rede de contradições e opostos, passível de rupturas. Do tipo “Bondade não é o oposto da Maldade.” Então a divisão do mundo em categoria sé ser Sveglia, é criar parâmetros e categorias onde encaixar a realidade. “Sol é , a lua não. Uísque é, e coca-cola é, pepsi.”, entre o simbolismo e a ironia.

     Ela se espanta, ainda consciente, diante do logicismo, que exige secura e formalidade. “Estarei escrevendo molhado?”, isto é, com sentimento? Pois ser seco é ser lógico, ser metódico, escrever academicamente. Assim as reticências [...] não são Sveglia, pois deixam em aberto, deixam no ar, não totalizam a questão, como a Lógica faz, ou espera, ou planeja. Assim “se alguém entender este irrevelável relatório é Sveglia”, pois a autora não espera compreensão. Nem tudo pode ser entendido - ou medido - como pretende o mecanismo Sveglia, em sua megalomania de medir o Tempo!

       Aprofundada em autoconsciência a narradora desabafa: “parece que eu não sou eu, de tanto que eu sou”, e sente abalar-se, em sua escrita, com a presença pensada do mecanismo medidor do rio do tempo que flui. É denunciante: Sveglia mata. Sim, ela sabe disso. Sveglia é logicismo, e não-Sveglia o espontâneo, o imprevisível. O logicismo contamina, a preocupação com o Tempo medido e calculado estressa. O mecanismo com seus dígitos passa a conquistar, dominar, amordaçar a pessoa estressada, apressada, formalizada. No final das contas, não é pessoa que é dona do Sveglia, mas o Sveglia - o regulador do Tempo - é dono da dona !

       Assim, a narradora finaliza, já confessando-se exausta, confundida com a autora, “parte de mim você [Sveglia] já matou” - o que nos abala e nos revela, ao mesmo, tempo uma verdade presente em entrelinhas, a de que o logicismo matou muita poética no mundo.


18mai15


Por Leonardo de Magalhaens


Bacharelando em Literatura
Fale / UFMG



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