Sobre
o conto 'Relatório da Coisa'
de
Clarice Lispector [1920 - 1977]
in:
Onde estivestes de noite? [1974]
Neste
conto, a autora, mestra do aprofundamento psicológico, Clarice
Lispector adentra o enigma da percepção do tempo, e nossa reação
diante dele, e dentro dele. Estamos inseridos no Tempo e julgamos que
podemos entendê-lo! Há toda uma ciência do Tempo, um cálculo
atomístico do Tempo, um tempo atomizado até os milissegundos, mas
isto é doença.
Uma
Coisa difícil de entender: o Tempo. O tempo não é divisível, e
sim imutável, mas nós precisamos dividir o tempo, daí inventamos o
relógio : coisa monstruosa.
Para
abordar o delírio Tempo e Tempo medido (o relógio) é preciso uma
outra forma de fala – entre a ficção e a digressão. Um dizer
sem literatura : relatório enquanto anti-literatura. Então,
pensemos, o que seria literatura: mero beletrismo? Ficção?
Floreamento? Simulacro? Mas o dispositivo mecânico, o despertador
Sveglia, com sua matemática mecanicista, faz a autora perder a
literatura: só saberá escrever relatório. Assim o mecanicismo
invade a Arte?
Enquanto
medidor, Sveglia é de Deus --- cérebros divinos para concebê-lo
--- enquanto Coisa que traz o despertar. Mas só de despertar viverá
o Humano? “é preciso estar acordado para ver, mas é importante
dormir para sonhar com a falta de tempo”. Assim, o sonhar, o não
ser desperto, é tão importante quanto o ser consciente. É um
irracional que complementa o racional, a la Sveglia. A
Razão não é suficiente.
A
Coisa me vê ? vê também como um outro Objeto? Trata-se de um mundo
coisificado, onde tudo é Objeto que tem um Objetivo. Ou então o
mundo é sonho? Assim como viam um Calderón de la Barca ou um
Salvador Dalí? “quero ver a realidade. Mas a realidade parece um
sonho.” Esta constatação traz uma certeza, um sentimento de
melancolia – felicidade – plenitude. Quase se deixa em pranto.
Mas
Sveglia não chora: é sem circunstâncias. É uma vigília, é um É,
sem adjetivações. Está ali como se vigiasse tudo. Olho aberto
sobre tudo. Faz tudo acontecer – a sucessão dos momentos, que o
Sveglia pode medir. Assim ela roga “me aconteça, Sveglia”, ao
constatar o desejo: “mola da vida animal”. Mas a Coisa é
indiferente ao pathos (afeto) da narradora. A Coisa não quer
mal, mas não quer bem. É assim mesmo: sem afeto : ser uma Coisa.
Está-aí, sem devir: sem fenecer. Pouca lhe importas que “viver
apodrecendo importa muito.”
Mas
Sveglia tem fraquezas : Coisa é vulnerável. É um mero mecanismo
que que pode enferrujar se submetido à umidade, por exemplo. Não
tem nada além da pretensão de medir o Tempo. “o tempo que para”
? Um Tempo que exige consciência: precisamos saber a cada momento
que tudo passa – e somos carregados pela correnteza do Devir:
o Tempo: rio que escorre: areias que deslizam.
Estar
consciente é despertar. E despertar é acordar-se de dentro para
fora. Ao soar no momento do despertar o cérebro eletrônico se
comunica com nosso cérebro numa espécie de sintonia que ofusca a
natureza da contradição: o aparelho mede o Tempo, mas somente nós,
seres conscientes, sabemos que o Tempo passa.
E
ser consciente é estar contra o ritmo do Sveglia : o sentimento, a
mitologia, a contação de estórias, a flâneurie, ou seja,
flanar por ir. Banhar-se no rio do Tempo que passa, onde não
mergulhamos uma segunda vez (vide o devir – panta rei, tudo
flui - de Heráclito). O humano sabe do tempo, e do medidor do tempo,
mas a reciproca não é verdadeira. “Eu creio no Sveglia, ele não
crê em mim, acha que minto muito, e minto mesmo”.
Sem
consciência, sem espírito lúdico, Sveglia permite só relatório,
não conto, romance, “permite apenas transmissão”. O mecanicismo
é seco, é metódico, é formalista, não admite ficcionalismos.
Sveglia não tem nome íntimo, só anonimato, também Deus é
anônimo, não tem nome que possa ser pronunciado. Sveglia é burro,
age clandestinamente. E Deus? Ela ousa: “coisa grave, pode parecer
heresia: Deus é burro. Ele não entende, não pensa, Ele É
apenas. Burrice que se executa a Si Mesmo. Comete muitos erros e Ele
sabe disso. Olhemos nós mesmos, somos um erro grave.” Muito em
Si-Mesmo, contudo “um erro ele não comete: Ele não morre”.
Sveglia não morre. O mecanismo não morre.
No
jogo de alegorias, a narradora faz um rol de referências e
analogias, quando símbolos se relacionam com nosso cotidiano,
permeado pelo Tempo e das medidas do Tempo. Assim o galo é Sveglia;
o ovo completo, no todo, em sua inteireza. O de dentro é molhado,
igual sentimento. Sveglia : jogo de futebol, imprevisível, mas Pelé
não é, pois rompe o anonimato. Briga é Sveglia. Ter problemas não
é Sveglia. E assim vai.
Ela
vive de analogias, de referências, pois não vi o Ser. “Escreverei
sobre o eletrônico sem jamais vê-lo”, a indagar se ver é
permitido, ou se sonho é permitido. “sonhar não é Sveglia, o
número é permitido.” Ou saber que “Raríssimos poemas são
permitidos”. Romance não é permitido, de modo algum. Sveglia não
permite profundidades, apenas mesurações.
Nem
alegre nem triste: é Sveglia: ausência de sentimento. Água é
Sveglia, escrever é, ter estilo não é. Ter seios é, o órgão
masculino é demais. Uma rede de contradições e opostos, passível
de rupturas. Do tipo “Bondade não é o oposto da Maldade.” Então
a divisão do mundo em categoria sé ser Sveglia, é criar parâmetros
e categorias onde encaixar a realidade. “Sol é , a lua não.
Uísque é, e coca-cola é, pepsi.”, entre o simbolismo e a ironia.
Ela
se espanta, ainda consciente, diante do logicismo, que exige
secura e formalidade. “Estarei escrevendo molhado?”, isto é, com
sentimento? Pois ser seco é ser lógico, ser metódico, escrever
academicamente. Assim as reticências [...] não são Sveglia, pois
deixam em aberto, deixam no ar, não totalizam a questão,
como a Lógica faz, ou espera, ou planeja. Assim “se alguém
entender este irrevelável relatório é Sveglia”, pois a autora
não espera compreensão. Nem tudo pode ser entendido - ou medido -
como pretende o mecanismo Sveglia, em sua megalomania de medir o
Tempo!
Aprofundada
em autoconsciência a narradora desabafa: “parece que eu não
sou eu, de tanto que eu sou”, e sente abalar-se, em sua escrita,
com a presença pensada do mecanismo medidor do rio do tempo que
flui. É denunciante: Sveglia mata. Sim, ela sabe disso. Sveglia é
logicismo, e não-Sveglia o espontâneo, o imprevisível. O logicismo
contamina, a preocupação com o Tempo medido e calculado estressa. O
mecanismo com seus dígitos passa a conquistar, dominar, amordaçar a
pessoa estressada, apressada, formalizada. No final das contas, não
é pessoa que é dona do Sveglia, mas o Sveglia - o regulador do
Tempo - é dono da dona !
Assim,
a narradora finaliza, já confessando-se exausta, confundida com a
autora, “parte de mim você [Sveglia] já matou” - o que nos
abala e nos revela, ao mesmo, tempo uma verdade presente em
entrelinhas, a de que o logicismo matou muita poética no mundo.
18mai15
Por
Leonardo de Magalhaens
Bacharelando
em Literatura
Fale
/ UFMG
...
Adorei, o relógio como coisa monstruosa, é a verdade mais estranha...
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