sexta-feira, 22 de maio de 2015

Imagens surrealistas em mil Estilhaços


 






Sobre Estilhaços no Lago de Púrpura

de Joaquim Palmeira / Wilmar Silva [2006; 2007]



(artigo 3)





Imagens surrealistas em mil Estilhaços


      Em outros dois ensaios [artigos] sobre Estilhaços no Lago de Púrpura [ELdeP] abordamos o bucolismo, a aridez, a ambiguidade amorosa-agressiva, em suma, a AgroLírica, estilo pessoal do Autor, com flora & fauna do sertão, na secura do cerrado, no mundo grande onde poucos sobrevivem. Daí ser uma poética de sobrevivente, então vívida & afiada.

     Agora abordaremos outras facetas desta obra-prima, a saber, as imagens surrealistas, com suas hipérboles & delírios, numa loucura-êxtase-xamânico em bestiário sádico.

       Há uma tessitura barroca, ou neo-barroca, de elementos vários & díspares, Que se negam e se complementam, em passagens líricas que partem de um drama e findam em tom de espinho cortante. Sentimentos confessados são bruscamente interrompidos por vociferações, por urros bestiais de um sujeito lírico incontido, que ama & odeia sem limites.

       Tratamos de um sujeito poético estilhaçado, dissonante, contraditório, que confessa e ofende, em confronto com um Outro que é benção & maldição, não encontrável por mais que procurado. Uma entidade poética entre fragmentos em busca de uma Identidade, ora lúbrica, ora xamânica. Esta relação do Humano com a Natureza já foi tematizada por bucólicos arcadistas ou idealistas românticos, mas nenhum chegou perto do teor visceral de poéticas tais como as de Lautréamont, no século 19, e Octavio Paz, Herberto Helder e Manoel de Barros, no século 20. Aliado ao tema Natureza & Humano há um ‘desregramento dos sentidos’ (que é almejado em Arthur Rimbaud, em verdadeiras 'estações no inferno') e uma cosmovisão xamânica (presente na poesia tardia de Roberto Piva).

        Imagens absurdas, tons exagerados, megalomania agrolírica, tudo a relembrar certa vanguarda que nos acompanha quase há um século, com os delírios surrealistas feitos Arte. A percepção de uma racionalidade insuficiente, de um Humano cindido entre razão e intuição, levaram os vanguardistas surrealistas a buscarem uma outra Realidade, um além do Realismo, um proclamado Surrealismo, a congregar Lógica & Quimeras. Assim as pinturas de Dalí, Miró e Magritte, assim as poéticas de Aragon, Prévert e Péret.

       No mais, a escrita de ELdeP, segundo assegura o Autor, foi fruto de um automatismo, um despejar de palavras datilografadas e laudas após laudas, em um momento de possessão poética que nos legou um ‘poema de um só fôlego’, assim uma obra abertamente visceral, verdadeira Escrita com o corpo. A vociferar versos & abscessos um ente poético que se entrega a uma Escrita que é um martírio de agruras líricas.

       Em vários trechos encontramos certas características da escrita surrealista, pela estilística e pela recorrência, tais como hipérboles, oxímoros, figuras bestiais, ou fusões, algo xamânicas, de animal-humano, além da relação sádica-masoquista com o Outro, dominado e dominador. 


 

      Em pronunciadas & afiadas Hipérboles o sujeito poético evidencia o estado de afetada megalomania do qual é vítima, ao vitimizar seu amado-odiado Outro, em diálogos & embates, mas sempre dono da fala, autor de um discurso exageradamente passional. A Natureza se submete ao seu teor de amorosa agressividade, quando fauna & flora se curvam ao extravasar do lirismo áspero.

mil diamantes nos olhos” [1]


eu faço galáxias na fonte do desejo que me consome” [7]


arremedos de uma noite adensa com mil assombros” [11]


e mais mil e um marimbondos presos em meu umbigo” [12]


sempre sozinho na revoada onde sou tempestade
 
limo as unhas para cozer um inverno e hibernar” [25]



 

      Notamos também as recorrências de figuras tais como os oximoros, ou paradoxos, a saber, a união de contrários em antíteses, absurdos, bem ao gosto barroco, que reflete nas colagens surrealistas de possíveis & impossíveis (mas a lembrar que na linguagem tudo é permitido...), que faz de EldeP uma obra mais que passional, um longo poema pulsional, no mundo dos sentidos, onde as percepções se confundem,

piscoso envenenado de tanto mergulhar na terra” [2]


um sol aceso em noite plena / eu” [20]


deixar que o escuro seja meu sol imaginário” [25]


esta represa onde peixes nascem da terra” [28]


cavalos marinhos no céu” [29]



 
     Encontramos cenas de um Bestiário de seres fantásticos, híbridos, amalgamados, com aparências terríficas & delirantes, enquanto símbolos do desassossego do sujeito poético, como bem percebemos na épica trágica de um Maldoror, alter-ego de Lautréamont, entre o simbolismo e um proto-surrealismo, como bem aceitam os próprios surrealistas,

cavalo com escamas nas crinas” [1]


esta ema com onze penas de pavão” [19]


passarinhos de sabre com asas aziagas, eu sou” [27]




 
Então entre seres selvagens, na terra e no pó, nas matas e nas águas, o Humano se confunde com animais, lembra que compartilha instintos animais, deseja entrar em contato com as forças do mundo natural, exercitar um ritual íntimo que muito o aproxima do Xamanismo, enquanto cosmovisão,

coiote eu / eu hiena” [2]


um lobo eu no escuro / um lobo eu faminto” [3]


todo nu tenho um sabre na lontra que sou eu” [4]


eu anfíbio, escavo um rastro na memória do chão” [6]


azulado sou este pássaro azulão que perdi o bico/ e cala” [10]


sou esta tarântula” ou “meu corpo de pelicano” [11]


cavalos selvagens, eu: um cavalo indomável / eu sim” [16]


sou esta novilha com êxtase de égua no curral” [17]

sou este corcel / eu um corço entre avestruz e
 
seriemas, sou esta ema com onze penas de pavão” [19]



sou o fero ferido” [21] ou “ave ferida no ermo” [22] e também “eu sou 

esta ave ferida de verde” [28]


minha língua de lebre / viperino sou [...]” [26]


 

    Figura de xamã, ritualista pagão, nativo indígena, um-com-a-Natura, com a qual o sujeito poético se identifica, e mesmo confessa em “índio estranho, face de espantalho xamã, calo” [8] e também “sou esta imitação / de um deus, um xamã” [30], pois em seu mergulho, em seus desnudamentos com Natureza e instintos, o sujeito poético adentra um reino de irracionalismo, de imersão mística, quando confessa seus êxtases / delírios, sinais de sua identidade ambígua, anfíbia de animal-humano.


nascem entre meus dedos de sonhos” [1]


onde um doidivano atravessa meus ombros / e
 
atravessado até a espinha onde piracemas nadam” [7]


agora que esta noite alcança meu êxtase” [18]



 
      Numa relação dúbia com o Outro, ora em dominação, ora em submissão, ou seja, alternância entre sadismo e masoquismo, o sujeito poético tanto ama quanto detesta o Objeto da paixão, desvairado por exigências & rejeições. As imagens surreais servem para explicitar o desvairismo (ainda mais que Mário de Andrade) dos afetos, como num duelo de paixões, onde o exagero marca o território, como a dizer 'vejamos quem é mais apaixonado aqui'. Então a oscilação entre dominação-submissão se evidencia a cada golpe & contragolpe, a cada avanço sobre o Outro que ataca de volta.

eu quebrado por você sou estilhaços” [1]


eu que venho com um ramalhete de espinhos na carne /
 
derramo lâminas e facas nos olhos dos pés,” [2]


sou esta vespa que transpassa tuas coxas” [12]


você é este fogo que me entranha” [12]



      De tal modo áspero que a relação amorosa se clarifica aos nossos olhos como um jogo de forças, uma 'guerra de tronos' para conquistar o afeto do Outro, objeto do ávido desejo, essencial & fundamental, e que é insaciável. 
 


sou eu quem levo para o mundo profundo você
 
mas você que é letal como uma ponta de punhal” [22]


você que vem com uma manada de gumes, lâminas” [24]


vem você agora com este canto de ema arisca
 
e faz cantigas que me alucinam nesta noite /” [27]


sou este verde que hei de queimar seu corpo / eu” [30]



 
      Então suas agruras são assim metaforizadas em exageros de retórica surrealista, com tons de sadismo / masoquismo, em toda uma flora & fauna agreste, de sertão demasiadamente perigoso (como já sabia Guimarães Rosa) com as vidas penosamente secas (como denunciava Graciliano Ramos) de tal modo que a poesia ousa retratar figurativamente um embate selvático de amor & ódio. Finalmente, que o/a Leitor/a suporte digerir tamanho desassossego, ou estação infernal, de (anti)lirismo! 
 


Maio/15



Leonardo de Magalhaens


Fale/UFMG








Mais sobre ELdeP & AgroLírica em :::::::::::








...

Nenhum comentário:

Postar um comentário