quarta-feira, 24 de junho de 2015

A poética nômade de Ruy Cinatti







A poética nômade de Ruy Cinatti


Leonardo Magalhães
Fale / UFMG



Biografia básica


       Ruy Cinatti (1915-1986), poeta, além de botânico, engenheiro-agrônomo e etnólogo, tendo estudado em Lisboa (Portugal) e Oxford (Reino Unido), viveu em viagens por colônias portuguesas (Estado do Ultramar) na África e na Ásia, durante as décadas de 1930 a 1960. Cinatti defende os interesses portugueses, mas ciente das condições precárias dos colonos e nativos, a sofrerem com a política imperialista. O poeta, um 'católico militante', integrava-se ao 'catolicismo social' que, em discurso de conservadorismo, baseava ideologicamente o nacionalismo português, o salazarismo, desde a década de 1930.

       Mesmo integrado aos movimentos literários e religiosos na metrópole, com as revistas Cadernos de Poesia e Aventura, Cinatti demonstra desconforto com a sociedade portuguesa, cindida por diferenças ideológicas, reacendidas pelo conflito internacional (a Segunda Guerra Mundial, 1939-1945), então aceita, em 1946, com a nomeação de um novo governador, integrar uma expedição à ilha de Timor, no sudeste asiático, em domínio indonésio, ocupada pelas tropas japonesas recentemente expulsas. Assim, o poeta assume o seu lado “português da aventura” devido ao seu próprio caráter e graças às tantas leituras, com narrativas de viagens e explorações. Afinal, ao assumir sua 'condição itinerante' de “navegar é preciso”.

        Em 1956, Cinatti divulga o manifesto Em defesa dos timorenses contra o preconceito metropolitano que rotula os timorenses de ociosos e preguiçosos. Antes, o autor denuncia a incompetência e os abusos dos funcionários e administradores do governo português. Em 1958, Cinatti lança seu terceiro livro de poesia, chamado O Livro do Nómada Meu Amigo, a poetizar e descrever as experiências vividas no mundo timorense, após sua segunda 'temporada' na colônia.

       Em 1964, Cinatti retorna à Europa, onde visita museus e universidades, em cidades da Inglaterra, França, Holanda e Suíça. No final da década de 60 o poeta passa por uma experiência de 'conversão espiritual', que aprofunda sua adesão ao catolicismo. Dizia ele : “Sou um católico poeta. Não sou um poeta católico.” Em início de 1974, o quadro político em Portugal sofre profundas mudanças com a Revolução dos Cravos. Em fins de 1975, desprotegida, praticamente sem governo, a colônia timorense é invadida por forças indonésias. Evento traumático para o povo e para o poeta que se identifica com o povo.


O Nómada / Nômade

       Nomadismo, a impermanência, o não comodismo, o não sedentarismo, como modo de vida e relação com o cosmo, o mundo, enquanto desejo de descoberta, de contato com a novidade, com o inesperado. Assim o poeta se encontra na errância, “labor poético sob o signo da errância” ou “poesia como forma de nomadismo” (Moreira) como bem demonstra a figura do homo viator, o homem viajante, o andarilho, the wanderer, qual um Judeu Errante, mas não um amaldiçoado, em novas trilhas, sempre em busca de novos espaços, novas experiências. A figura do andarilho, que tanto seduziu o pensador, o último dos filósofos metafísicos, Friedrich Nietzsche (1844-1900), criador do profeta errante Zaratustra, eremita que deixa a solidão para ser peregrino.

O nómada, o que não tem morada fixa, aos olhos do sedentário é um marginal. É alguém que não se enquadra no estreito limite que um mundo crescentemente sedentário, impessoal e individualista tem vindo a impor. Ele não se ajusta a códigos sociais ou políticos. O seu grupo, se quisermos colocar a questão nestes termos e desviar-nos do indivíduo, está sempre à margem. (Moreira, 2013, p. 62)

       Outra figura da errância, o flâneur seria o homo viator das metrópoles, das grandes cidades cheias de vitrines e luzes néon. Um ser dotado de olhar e percepção aguçada, capaz de andar e observar, palmilhar e sentir, capaz de descrever e estar além do prosaico, transmitir o sentimento, em sua poesia em trânsito, num deslocamento entre tantas vivências, a buscar aventuras a cada quarteirão. Ao avançar mais que o flâneur, temos o nômade que não vive num lugar apenas, mas habita diversos. Tem um olhar atento e participante sobre povos diversos, com os quais divide espaço e pão, com os quais coabita e colabora.

       Vida em viagem, epifanias na estrada. Mas não basta ser nômade, é preciso saber olhar e transmitir. Ser um poeta capaz de descritivismo, mais dado aos detalhes, em re-criações ricas de sinestesias, para levar junto o leitor, para aderi-lo ao mundo em trânsito, em cada nova viagem. É assim que exige o olhar que testemunha a Alteridade, a condição do Outro, que faz mais evidente a nossa própria condição. Sabemos mais sobre nós mesmos quando em contato com outros povos.

O que está em causa é apenas a mais completa novidade e a contínua surpresa do mundo, facultadas pela visão em permanente estado de deslumbramento. (Frias: 2011, p. 190)

       E mais do que descrever, como um mero turista, o poeta vem participar, e ousa denunciar. Pois ele sente compaixão, ele que viveu junto, comeu do pão generosamente dado, foi bem recebido pela hospitalidade. Ele, um forasteiro, um cientista, um nômade que nada sabia, mas produzia conhecimento junto, em participação e compaixão.

       Sem o contato, sem o sofrer-com, o poeta não passaria de um cientista, a coletar espécimes, ou um turista, a colecionar paisagens. É preciso estar-com para testemunhar a condição do Outro e denunciar os exploradores que sempre lucram com a miséria alheia. É preciso ir-além, e estar atento, não trilhando caminhos já batidos, mas abrindo novas rotas. O poeta usa sua palavra na condição de desbravador e defensor, não um herói, ou um mártir, mas um amigo-nômade.

O aventureiro não é senão o nómada bem aventurado, porque é o nómada que se desvia das rotas habituais, graças à sua especial paixão pelos desvios do caminho traçado. (Frias: 2011, p. 192)
 

      Para Cinatti importa antes a figura do inquieto, ou dos “pioneiros do descobrimento”, que almejam algo além, que esperam transcender, e se destacam por solidão, mas também, solidariedade. O poeta busca novas amizades, dialoga com o amigo em viagens, o amigo nómada, que é esperado enquanto interlocutor. Mas o viajante é o próprio poeta, em sua inquietação, o que nos leva a pensar que o amigo nómada é uma espécie de alter ego. Em vários poemas, e em outros livros, a figura do alter ego é evidente. 
 
        Não apenas o nómada, mas também os amigos, que recebem dedicatórias, com a evocação dos mesmos nos versos. Assim no belo e imagético poema Visão, onde evoca-se Alain, que seria Alain Gerbault, navegador francês, falecido em Timor, “Alain, Entre vagas, velas e gaivotas.”

Levanto as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu !

Sonho no mar sereias : algas
Corais limosos … Eu acordava
entre aguaceiros límpidos. Pinhais,
Pássaros, flores, penumbra e arcada de
árvores
- Momento
Que ao de leve anotava.
Serenamente explorava
Apelos e miragens.

Era o mar cheio de estrelas,
Barcos partindo para não sei onde.
Ondulações magnéticas, antenas.
Ansiedade...

Eram ilhas
Hérculeas: coroas
Vegetais sobrenadando
Altos castelos submersos e, apenas,
(“Sepultem-me no mar, longe de tudo”),
Alain,
Entre vagas, velas e gaivotas.

Levanto as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu !


       O tom da obra O Livro do Nómada é de desejo e missão, de busca de novidades, de novos mares e terras, numa elevação de epopeia, mas vivida por homem simples, um cientista, um administrador, meio aos povos nativos, que passam a ser vistos como a figura do 'bom selvagem', homens de alma pura, que merecem a admiração do poeta. Povos que são explorados, despojados de toda esperança. Mas povos que são capazes de muito ensinar, “O timorense meu amigo ensinou-me muitas coisas”, reconhece o poeta Cinatti.

       A epopeia do homem comum, para fora e para dentro de si mesmo, num inquietar constante, foi bem apontada por Moreira, em sua dissertação, 
 
Compreender o tal “mistério de existir” pessoano, como já atrás referimos, é algo que confere força à poesia de Cinatti, pelo que é óbvia a perspectiva do autor relativamente à possibilidade de o desvendar. A autognose, a descoberta de si nos outros e em Deus funcionam como motores. Visto que o melhor mundo está por descobrir, a estratégia adoptada vai aproximar-se muito da de Cesário ou de Caeiro. Não se trata somente de uma vigília, mas sim de uma deambulação que não se enceta apenas no plano físico; vai para além dele, como aliás já se adivinhava nas citações de Fournier e na evocação da tal outra paisagem que não se avista, mas se (pres)sente. (2013, p. 49)

       Em sua missão, de deslocamento e de amadurecimento, pois “O melhor mundo Está por descobrir” (no poema Vigília), o poeta evidencia uma dinâmica dos olhares, sempre abertos para a novidade do mundo, tal um Alberto Caeiro, sempre ciente de si mesmo, mesmo autodepreciativo, a lembrar-se modesto, humilde, tal um Álvaro de Campos, pessoas do universo heteronômico de Pessoa. Em trânsito entre mar e ilha, entre meditação e solidão, entre imensidão e recolhimento, o poeta oferta imagens que desvelam as descobertas e as desilusões, numa jornada que congrega lugares e pessoas, não mapas ou estatísticas, não apenas pesquisas, mas participação. É o ser participante que diferencia o ser poeta. Não ser apenas um solitário, mas também um solidário.

O sujeito procura sempre compensar esse isolamento, tornando fisicamente presentes aqueles que estão longe e adoptando uma postura de fraternidade universal que está patente logo no primeiro poema de O livro do nómada meu amigo, “Proclamação” (ibidem: 101). (Moreira: 2013, p. 64)
 
      Assim o poeta não se afasta, mas se aproxima, para melhor participar e poder testemunhar. É um nômade que vai de ilha em ilha, cidade em cidade, e coleciona olhares e amizades, mas sem perder sua capacidade de ensimesmar e criticar. É ter um olhar novo, constantemente, disposto para descobertas, pois, ele sabe, “a vida é todo mistério”.

Nunca mais soube O que era ter sossego.
A maresia das ondas, a ventania
dos montes mais altos, decidiram
a minha condição. Mas não me queixo.



Tantas referências na poética nômade

       Para a análise crítica do poema é necessário um olhar sobre dois aspectos, ou condições, a saber, o que está dentro e que está fora, a forma do texto, e o que está além do texto. Podemos ler o léxico, os campos semânticos, as vogais abertas e fechadas, o ritmo, as rimas, as métricas; e precisamos ler as entrelinhas, com seus intertextos, redes de referências, o que não está escrito, mas o/a poeta espera que saibamos. Acontece que o Poema exige do Leitor completar o que é dito textualmente. Do texto é preciso ir além: ao Contexto. Quem o produziu? Onde o produziu?

       Temos poetas que exercitam estilos no plano formal, com riqueza de recursos de sonoridade e metrificação, enquanto outros poetas preferem desafiar os leitores a encontrarem os intertextos, as referências, com tal quantidade de informações que exige uma leitura interativa, e criativa, acessando filosofia, mitologia, antropologia, botânica, heráldica. Há verdadeiros autores enciclopédicos e/ou herméticos, que dizem pouco, quando esperam que o contexto seja recuperado além do texto. Assim impérios, conspirações, palavras cabalísticas, cartas de tarô, períodos históricos, sistemas filosóficos estão no horizonte do autor erudito, seja por suas leituras e/ou por suas vivências. Em tal erudição, o/a poeta cria textos que necessitam de longas notas de rodapé. E, caso ausentes, de uma dedicada pesquisa do/a leitor/a.

       Ou situar o poema na Obra do Autor. Ou melhor, o texto no contexto do autor – o que aquela palavra ou imagem representa no conjunto dos textos, ou de um texto em relação ao(s) outro(s). A imagem foi referenciada / representada com que Sentido? O que está implícito? Qual a função no texto? Ou será ligar o texto ao(s) outro(s) numa teia de referências?

       Sendo assim, não falamos mais de forma, mas de Estilo. E, para além do texto, temos a Obra. Para além de Autor e Obra, temos a biografia, e a 'máscara autoral' (o poeta-fingidor, o poeta-profeta, o poeta-testemunha, o poeta-flâneur, o poeta-revolucionário, etc). E teremos uma gama de recursos do autor / máscara autoral que podem ser encarados como positivos ou negativos: o autor é multifacetado por estilo ou por falta de estilo? É inovador a cada obra ou é instável, sem rumos? Sua variação é fingimento ou falta de caráter?

       A presença de nomes de cidades, rios e montanhas, ou alusão aos povos ilhéus, na poesia de Ruy Cinatti mostra o quanto o olhar de cientista, de antropólogo, está presente no artista, no autor, que deseja descrever, representar, explicitar, até didático. São poemas que muitas vezes exigem notas e referências, das quais o próprio poeta cuida, ou são acrescentadas por editores. Pois ao redor do poema está muito mais do que o poema pode dizer.

       Precisamos saber quem escreveu e onde escreveu. Quem é o Ruy Cinatti que perambula curioso e científico por uma ilha chamada Timor? Há uma necessidade de um olhar sobre os traços biográficos do Autor, o co-irmão do nômade. Distante da pátria lusitana, nas praias da colônia, em Timor que é geografia e alegoria, Cinatti rememora a aventura dos navegantes portugueses, como num diálogo com o poema épico de Luís de Camões,

Confuso estou com o meu país,
que não é feliz
e só ao cabo de oitocentos anos
descobriu – até quando? -
que nos enganamos
e que a verdade está só com os de Restelo
-velhos e poetas impotentes jovens
que só distantes
berram pela mãe
que lhes deu o seio,
pelo pai,
que lhes deu os dentes.
Que sirva isto de intróito a menos meio
deste relato.
Timor foi lição de mira e de contato,
esquadria e facto,
peregrinação-alegoria
[…]

(Palinódia com Fernão Mendes Pinto de Permeio,
in: Paisagens Timorenses com Vultos / 1974)


       As nomeações e situações, as localidades e fatos históricos criam uma moldura para o exercício poético, que parte de fora para dentro, num diálogo, que é mais do que descrição, é participação. Mesmo seu didatismo, não raro enciclopedismo, se justifica pela suposição de uma ignorância do leitor – afinal, quem conheceria Timor? O viajante em necessidade de situar o leitor, carregar junto no percurso, pontua suas lembranças de vivências, em fotogramas de cada paisagem, cada cidade, cada vulto humano, cada novo amigo.

        A paisagem (que o afundou) diz muito do estado íntimo do poeta, perturbado, em sua compaixão, por um mundo abandonado no sofrimento. É por compaixão, ou dirá 'amor', que ele escreve, adensando sua poética a cada viagem, um nómada consigo mesmo.



Jun/15



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REFERÊNCIAS


CINATTI, Ruy. Paisagens Timorenses com Vultos. Lisboa: Relogio D'Água, 1996.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Metáforas do Mosaico: Timor Leste em Ruy Cinatti e Luis Cardoso. (Tese) Universidade de São Paulo, 2012.

FRIAS, Joana Matos. Olhos Novos para contemplar Mundos Novos: Corografias de Ruy Cinatti. Universidade do Porto. Cadernos de Literatura Comparada. Junho / Dezembro, 2011.

MOREIRA, João Luís Salgueiro. Ruy Cinatti – O Livro do Nómada meu Amigo ou A Poesia como Nomadismo. (Dissertação) Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2013 .

STILWELL, Peter. A Condição do Homem em Ruy Cinatti. Revista Didaskalia, vol. XXII, 1994.
___________ . O Timor de Ruy Cinatti. Lisboa, revista Camões, n. 14, jul/set.2001.


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