Luis Miguel Nava
1957-1995
O
Corpo Espacejado
Perdia-se-lhe
o corpo no deserto, que dentro dele aos
poucos
conquistava um espaço cada vez maior, novos
contornos,
novas posições, e lhe envolvia os órgãos que,
isolados
nas areias, adquiriam uma reverberação particular.
Ia-se
de dia para dia espacejando. As várias partes de que
só
por abstracção se chegava à noção de um todo come-
çavam
a afastar-se umas das outras, de forma que entre
elas
não tardou que espumejassem as marés e a própria
via-láctea
principiasse a abrir caminho. A sua carne exer-
cia
aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que
em
breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de
quem
o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo
brilho,
transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Ele
mais
não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas
cinzas
do qual, quase imperceptível, se podia no entanto
detectar
ainda a palpitação das vísceras, que a mais pe-
quena
alteração na direcção do vento era capaz de pôr de
novo
a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou
pelas
extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés,
mas
passado pouco tempo eram já os pulmões, os intes-
nos
e o coração o que minuciosamente ele embrulhava
em
celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído
aterrador.
Luís Miguel Nava
O céu sob as entranhas
Poesia Completa
1979-1994
…
O
tímpano e a pupila
Num
dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que
o tempo se desossa,
que
as pedras
que
piso se me enterram na memória e os caminhos
se
me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado
nas feridas,
o
pão
ele
próprio já também uma ferida, agora
que
o tempo, que já tanto
compararam
a um rio, mais
não
é do que uma leve exsudação nos muros,
nas
mãos, agora
que
o céu se encrespa e que pedaços
de
mundo arremessados
com
toda a força aos olhos revolteiam
na
treva antes de se extinguirem,
mais
magro do que a neve
caminho,
a alma aberta como uma ferida,
ao
longo da memória, onde se fundem
o
tímpano e a pupila.
Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
…
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