quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O Eu lírico / voz poética enquanto sujeito ficcional


 



O Eu lírico / voz poética enquanto sujeito ficcional


Leonardo de Magalhaens
Fale / UFMG


     Trataremos aqui de Poesia, de textos poéticos, onde a palavra se exibe, como um construto verbal, que é mensagem em si-mesma, com uma voz que se manifesta para si mesma, ou para alguém, com um estatuto de ficção predominante, isto é, o contrato é ficcional, na condição de peça literária, independente de referenciais factuais, como essência linguística e performática, ao tecer relações entre Sujeito da enunciação e Sujeito do enunciado, entidades da Análise do Discurso.

     Sobre o estatuto de Ficção Predominante da Poesia, tal como apresentamos neste artigo, temos o argumento de Mendes (2005:142),

É um tipo de produção que se constituiria predominantemente de simulações de situações possíveis e seria permeada de efeitos de real e de ficção. Seria interessante ressaltar que qualquer gênero de discurso cujo estatuto seja factual é passível de se transformar em um gênero de estatuto ficcional.

Como exemplo de ficcionalidade predominante, podemos citar: Romances, contos, poesia, cinema, teatro, letras de música, histórias em quadrinhos, alguns tipos de crônicas, charges, receitas ficcionais, paródia, jogos eletrônicos, desenhos animados, etc.



     Quando um poeta, uma poeta, se dedica a escrever um poema, ele ou ela ativa um certo estilo e certas particularidades de uma vivência, com uma dada visão de mundo. Não que o poema deva ser lido como autobiográfico, ou confessional, mas indícios de uma vida sempre se constatam. Níveis variados de ficcionalização do vivido podem ser percebidos, desde o poeta, ou a poeta, falando em nome próprio, com um eu-lírico marcadamente autoral, ao citar o próprio nome, até a ficcionalidade de um eu-lírico outro, de outro gênero ou classe social, ou ser imaginário ou mitológico.

     Quando escreve um poema, o poeta, ou a poeta, o autor, ou autora, empírico/a, cria um ser ficcional que existe no enunciado do texto, de existência textual, com pouco ou nenhum referencial, não exatamente uma confissão dos sentimentos e ideais do autor, ou autora. É possível que seja até ser o oposto, não havendo ligação com o gênero, a personalidade e a classe social de quem escreve. É criada uma outra 'persona', o eu-lírico, sujeito poético ou narrador, que se manifesta textualmente voltada para um leitor imaginado (ou narratário) que precisa dissociar a voz que fala da figura autoral. Não se trata de uma confissão, mas uma ficcionalização.

     Portanto, convenhamos que várias vozes são possíveis nos poemas, com uma perceptível gradação da ficcionalidade. Várias identidades podem ser interpretados nos enunciados. Tomaremos como exemplo a obra do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), autor do poema Infância, quando há uma voz que enuncia “E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” onde o autor ativa um eu-lírico possuído pela memória, pela lembrança do eu-de-ontem. Há uma clara diferença quando o autor se nomeia em Poemas de Sete Faces, onde “Vai, Carlos, ser gauche na vida!”, em relação ao poema Caso do Vestido onde há uma dramatização com as vozes de uma mulher, mãe de família, traída e resignada diante da presença do marido, a dialogar com as filhas.

     Em outro poema, a Morte do Leiteiro, há outra voz, a descrever um cenário, a prenunciar um drama, a lamentar a tragédia de um leiteiro, enquanto uma voz coletiva a testemunhar um drama cotidiano, a violência urbana. É uma voz que pede nossa cumplicidade, ao mesmo tempo em que descreve a cena de vários pontos de vista – dentro e fora do drama – com uma visão de cameraman.

     Com semelhantes variações de ficcionalidade, onde podemos ir do confessional ao dramático e performático, do eu autoral ao eu personagem, podemos perceber a dificuldade em identificar no eu- lírico / voz poética a presença do eu empírico / autoral, o Sujeito da Enunciação, uma vez que quem fala no poema é próprio do poema, é uma voz textual, não representa o ego ou emoção de quem escreve – pois “o poeta é um fingidor”, como declara o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) em seu poema Autopsicografia.

     A possibilidade de criar um outro Eu, uma ficcionalização de si-mesmo, cria uma outra voz, totalmente diversa daquela que poderia se identificar na figura autoral. Com a gradação de ficcionalidade há uma implosão da correspondência entre o autor, ou a autora, o ser empírico, quem escreve, e a voz poética / eu lírico, pois o/a autor/a se idealiza, e também idealiza o leitor/ narratário – num pacto de ficcionalidade – onde a emoção não é aquela de quem escreve, mas do leitor/ narratário (segundo uma perspectiva da Estética da Recepção). Constatamos estas 'formas de troca' em Mendes (2005) baseada em Charadeau (1993), “Formas de troca – têm natureza interacional. É onde temos retratados os sujeitos do ato de linguagem. Por exemplo: um Eu comunicante escritor que se endereça a um Tu interpretante leitor; um Eu comunicante ator que se endereça a um Tu interpretante espectador.”


Cuidaremos da leitura crítica de quatro poemas selecionados, a saber, Poema de Sete Faces, A Morte do Leiteiro, Caso do Vestido e Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte, nos quais, através de comparação, explicitaremos a marcação das diferenças de vozes poéticas, onde o poeta, sujeito da enunciação, ficcionaliza 'papéis', ora sendo um cidadão saudosista, ou melancólico, ora uma mulher traída, ora um espectro de moça, ora um cidadão observador indignado. Assim, o autor Drummond de Andrade não ativa apenas a voz de um funcionário público urbano, leitor voraz, tradutor, formado em farmácia, cronista, etc, pois ocorre um fenômeno de despersonalização, com a criação de outras identidades.

Nos poemas selecionados de Drummond de Andrade podemos as gradações de ficcionalidade, quando é possível identificar a voz poética mais próxima as vivências do poeta, funcionário público, engajado discursivamente na vida moderna, a ponto de usar o nome 'Carlos' em suas enunciações, “Vai, Carlos! Ser gauche na vida!” (Poema de Sete Faces) Pois ao compor seu poema, o poeta cria um ser ficcional – eu lírico / voz poética - que 'fala' no texto, que desenvolve-se textualmente, não necessariamente um prolongamento dos sentimentos e ideais do autor.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

[...]

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

(1998:13)

       Encontramos no poema A Morte do Leiteiro uma voz que descreve um ambiente, um cenário, discursa sobre problemas sociais, sem se identificar. Este eu-lírico vê a cidade, e os cidadãos, o problema da insegurança, vê o jovem leiteiro, os cidadãos temerosos que dormem, os passos do leiteiro antes, durante e depois de sua morte; assim como vê os movimentos do cidadão que se amedronta e atira. É possível uma factualidade colaborativa, ao imaginar-se um subúrbio desestabilizado pela violência urbana, por crimes de lesa-patrimônio, em alguma metrópole; como há também uma ficcionalidade com efeitos de real, ao inserir as conhecidas cenas da vida urbana.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

(1998:135)

      O que se diferencia enormemente dos eus-líricos no poema Caso do Vestido, onde há uma dramatização de uma voz feminina, a mãe traída, diante de uma voz coletiva, a das filhas, que testemunham a procedência de um determinado vestido, que marcou uma experiência de traição e submissão. A ficcionalidade está evidente no uso da voz feminina (pois o poeta é de gênero masculino) e a factualidade colaborativa está na possibilidade de tal drama da mulher submissa na sociedade patriarcal. Ou seja, há uma trama de possibilidade e ficção, o que leva o leitor a se emocionar, consciente da condição da dona de casa, submissa, humilhada, ao se explicar às filhas. Não que tal mulher exista realmente, não é este o factual, mas a possibilidade de mulheres que realmente viviam tal situação de dominação. O poeta então dá voz a estas mulheres anônimas.

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

(1998: 155)

      Temos, ao extremo, a voz no poema que se diz uma falecida donzela que vaga pelas ruas da cidade de Belo Horizonte, uma voz espectral que fala no extenso poema Canção da Moça-Fantasma onde vem narrar seus infortúnios, a sua tragédia de moça precocemente falecida, sem conhecer o amor e o calor do pretendente. É performada uma voz de mulher jovem a testemunhar a condição feminina, da noiva sem futuro, da juventude sem frutos. É de se perguntar se um ser fantasma narraria assim seu drama - assim como a possibilidade de um defunto autor em Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis (1839-1908) – num hipotética estado pós-morte de 'alma penada'. Sabemos que é tematizada uma 'lenda urbana', a da moça fantasma da Serra do Curral, que, dizem alguns, se manifestava nos itinerários de bondes. Tal donzela fantasma é muitas vezes confundida com a 'Loira do Bonfim', também do folclore local, quando vários habitantes alegam ter vislumbrado um vulto fantasmagórico de beleza feminina nos arredores do Cemitério do Bonfim, o mais antigo da Capital, onde ela dizia morar.

Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.

(1998:48)

     No mais, a factualidade colaborativa está presente nas citações de locais, ruas, praças, logradouros da cidade de Belo Horizonte (MG), que podem ser localizados em qualquer mapa da cidade, assim referenciais para os cidadãos. Trata-se do mesmo efeito de real que se encontra nas memórias do médico-escritor Pedro Nava (1903-1984), veja-se as obras Balão Cativo, Chão de Ferro ou Beira-mar, que retratam a Belo Horizonte dos anos de 1920-1930, onde as lembranças se entretecem com situações e logradouros, a compor uma 'geografia sentimental'),

Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e fora de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
para no Abrigo Ceará,
não há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas...
Oh! deixai-me dormir convosco.

(1998:48-49)

      O fato de uma voz de donzela fantasma ficcional imaginária citar nomes de ruas reais que existem na cidade de Belo Horizonte, uma figura da lenda urbana que transita por uma geografia conhecida, semelhante efeito de real, eis uma evidência das porosidades entre o ficcional e o factual, entre o imaginário e o real nos textos, aqui, na poesia, como bem notou Mendes (2005:146),

Não existiriam gêneros puros, totalmente despidos de efeitos de real e efeitos de ficção. É por este motivo que em nosso quadro as fronteiras entre as situações reais e as situações factuais são representadas como sendo porosas, possuem permeabilidade e permitem uma série de movimentações e deslocamentos que seriam representados pela dupla orientação das setas: o que, em um dado momento, seria aceito como factual, em outra circunstância, poderia se tornar ficcional.


 
     Não é difícil, para finalizarmos, evidenciar que as vozes em A Morte do Leiteiro, Caso do Vestido e Canção da Moça-Fantasma se diferenciam do Eu que se nomina Carlos em Poema de Sete Faces, quando se encontra possível referência ao próprio Autor Carlos Drummond de Andrade e seu cotidiano. Em alguns poemas a voz do eu-lírico vem se aproximar do/a Autor/a poeta, o eu empírico, ser social, para em outros poemas apresentar um sujeito ficcional com outras identidades, às vezes onisciente (pode observar a tudo) a atuar com um olhar de câmera; às vezes atuando como ser idealizado, ou entidade mitológica, no plano da fantasia.

     Podemos tentar explicar tal variação de ficcionalidade explícita nos poemas de Carlos Drummond de Andrade, assim como em outros autores, a partir da necessidade do poeta em dar voz aos que dela carecem, assim a mulher enganada, ou o fantasma da jovem, ou o moço assassinado, através de uma marcada pluralidade de vozes poéticas, eus-líricos que intentam registrar e testemunhar os seus dramas – dominações e tragédias – do cotidiano em forma estética.





Referências


ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 40ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação – As categorias de Pessoa, Espaço e Tempo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2005.

MENDES, Emília. O conceito de ficcionalidade e sua relação com a Teoria Semiolinguística. In: MACHADO, Ilda, L. et alli. Movimentos de um percurso em análise do discurso. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005, p. 133-148.


Leonardo de Magalhaens
Fale / UFMG



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