segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

sobre ' cor de cadáver ' - de jovino machado



Sobre “cor de cadáver
(anome livros, 2009)
(poemas de 1998 – 2008)
do poeta Jovino Machado


Flertando com o lírico e o sacana

Desde as auroras do Classicismo (e depois o Romantismo) a Poesia era a forma ideal de manifestação do sentimento do Poeta, acima das limitações e insatisfações do mundo, tecendo seus versos como uma forma de sublimação e superação, para re-encantar a vida e louvar a(s) dama(s) de seus Amores idealizados.

Então sobreveio o Realismo (e depois o Modernismo), com seu 'desencantamento do mundo', quando a realidade passa a ser dissecada, analisada, julgada e ( por que não? ) ironizada. A Amada dos sonhos passou a ser mesmo a mulher do cotidiano (a criada de quarto, como dizia o Fernando Pessoa) e não mais a Virgem onírica dos devaneios líricos. A mulher era um corpo assim como o mundo era matéria.

Então a dessacralização continuou, passando pela figura da Beleza, da Moral, da Família, da Beatitude, e (para o desespero dos crentes) até da figura de Deus. O mundo virou mesmo uma máquina (como já sabiam Camões e Drummond com a 'Máquina do Mundo') onde cada um é mesmo uma mera engrenagem. Então a poesia joga o jogo e desiste de ser superação – passa a ser entretenimento e atividade lúdica – um rir da vida para não cair no choro.

Pululando à margem – muitos se declaram 'poetas marginais' – fazem germinar e florescer a flor no lodo (como bons seguidores dos dois Charles, o Baudelaire e o Bukowski) os poetas que preferem 'alfinetar' do que propor novas éticas e estéticas, do que ousar a construção de novos mundos. Criativos, audazes, debochados, estão ao nosso redor, com poeminhas infames e iconoclastas (citaremos Leminski, Cacaso, Chacal, Behr, p.ex.)

Assim o Poeta irônico, lúdico, de humor ácido, cheio de chistes e epigramas, sempre a rir das próprias feridas, está na moda. É a poesia outdoor para se ler no ônibus enquanto se desce a rodovia, ou se vai ao shopping. Uma poesia para se ler rápido – ao estilo fast-food – sem exigir muito, sem qualquer compromisso.

Em “cor de cadáver” - título macabro a mesmerizar leitores soturnos e assombrar os puristas – a poesia está livre, leve e solta (ai! que lugar comum!)onde a paródia começa na 'trilha sonora': uma paródia das “Quatro Estações” de Vivaldi – mas faltou Vivaldi! Ou será justamente por ser uma paródia de Vivaldi? Não importa, temos Beethoven, Mozart, Bach e Brahms. (Prato cheio para alguém semelhante a mim, que adora ler ouvindo música...)

Ler poemas ao som de Beethoven, Mozart, Bach e Brahms? Mas não será outra ironia? Digo 'outra' porque diante de um poeta irônico pode-se esperar tudo! A ironia, a auto-ironia, a ironia diante do amor, a ironia diante do fim do amor, a ironia com a amada, a ironia com a ironia.

fim de caso

o boneco que te amou
não conhece o ventríloquo

Uma ironia contra a 'idealização' do amor e do(a) amado(a). Uma ironia de 'médico e monstro', a misturar o lírico com o sacana. Uma desconstrução de 'imagens líricas' para dessacralizar o que resta. A mulher é um ser sublime, convenhamos, mas é também uma 'rameira'.

Antes de dormir / peço à deus
um milagre / um presente

sonhar com thereza

seus olhos de feiticeira / seus pés de ninfa-brejeira
seu cheiro de rameira

A poesia colorida de tons lúdicos. Ainda com toques de amargura. Uma poesia lúdica que nasce de um humor ácido com as próprias nuances da 'identidade', do estar sempre em 'transição'. O lúdico seria a melhor forma de abordar o 'jogo de máscaras' que cobrem nossas faces? A identidade do EU é circunstancial? “Eu sou eu e minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset) Circunstâncias que variam a cada estação do ano. Assim um EU outonal? Um EU invernal?

Ainda mais se consideramos que “cor de cadáver” é uma coletânea que abrange 10 anos na existência do poeta. Acompanhando o otimismo-irônico e o pessimismo-lúdico dos versos. As estações do ano também são as estações da vida: infância – adolescência – maturidade – velhice.

Na primavera, ouvindo Beethoven, temos o lúdico na 'flor da juventude' com seus trinta e poucos anos, a definir-se em 'auto-retrato', em calcular as idades, o tempo que passou e o tempo que ainda falta, fazendo a aritmética dos amores perdidos – e tudo resulta em poemas (“só o poema traça / o início e o fim da desgraça”)

No verão, ao som de Mozart, encontramos o lúdico lírico e desbocado, caudaloso e pseudo-romântico (“você fica linda naquele espelho”), com alguma intertextualidade (garota de Ipanema? bonequinha de luxo?)(1)

No outono, embalado em melodias de Bach, acompanhando o amadurecimento em labirintos de metalinguagem citações, referências – Leila Diniz, filmes de amor, Divina Comédia, etc – extremando no humor negro (em auto-deboche?) de “falecida manhã

de manhã cedinho
perdi meu amorzinho
e fiquei com meu lutinho

No inverno, acalentados por Brahms, colhemos decepções e desencantos, desilusões e desencontros, em poeminhas quase-haicais, onde o que cai é a máscara da 'vida feliz'. Moeda que tem dois lados, musa com duas faces, a vida oferta com uma mãe e retira com a outra. Os amantes se encontram hoje, apenas para se ignorarem amanhã. “a vida é careta / você pula do Acaiaca / eu bebo no maletta(2)

O caso é que o Poeta acha 'bonito' deixar-se debochar de seus amores perdidos, de sua vida que se esvai, de suas ausentes esperanças, num masoquismo que desperta a nossa piedade. Afinal, o problema não é a vida – não devemos vilipendiar a vida! - mas as condições em que a vida se processa: desafetos, desconfianças, suspeitas, ambições, interesses velados, corrupções, exploração da mão de obra alheia. (Todo deboche e niilismo não leva a um 'pensar adiante' num mundo em que devemos resolver nossos problemas – afetivos e sociais – mas ainda continuamos a rir das nossas deficiências e fracassos. )

Mas esta não é a missão do Poeta (cidadão que o idealista Platão exilara de sua augusta República) que se limita a aclamar seu niilismo pelos quatro cantos, nos saraus nos jardins, nas ondas de bites e bytes, nos livros de miolo de papel pólen bold 90 gramas. Pois, de repente, se o tempo perdido não merece lágrimas copiosas, então deve despertar mesmo boas risadas.


Jan/10
(revisão: dez/12)

Leonardo de Magalhens



blog do poeta

poemas de Jovino Machado






notas:

(1)”Garota de Ipanema” é uma canção ícone da 'bossa nova', composta em 1962, por Tom Jobim. “Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina /Que vem e que passa / Num doce balanço, a caminho do mar.” Já a “Bonequinha de Luxo” (Breakfast at Tiffany's, 1961) filme que imortalizou a belíssima Audrey Hepburn, como símbolo da mulher dado ao luxo e à vaidade.

(2)Para aqueles que não têm o privilégio de habitar na bela Belo Horizonte, informamos: “Edifício Acaiaca” é um mais altos (26 andares) e antigos do hipercentro, localizado na Avenida Afonso Pena, próximo ao Parque Municipal. Já o “Edifício Arcângelo Maletta” é um condomínio residencial, de 20 andares, localizado no cruzamento da Rua da Bahia com a Avenida Augusto de Lima, sendo obra da prancheta do arquiteto Oscar Niemeyer. No Maletta são localizadas livrarias, lan houses, bares e restaurantes, sendo ponto de encontro da vida boêmia da capital mineira.

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