Sobre
“cor de cadáver”
(anome
livros, 2009)
do
poeta Jovino Machado
Flertando
com o lírico e o sacana
Desde
as auroras do Classicismo (e depois o Romantismo) a
Poesia era a forma ideal de manifestação do sentimento do Poeta,
acima das limitações e insatisfações do mundo, tecendo seus
versos como uma forma de sublimação e superação, para re-encantar
a vida e louvar a(s) dama(s) de seus Amores idealizados.
Então
sobreveio o Realismo (e depois o Modernismo), com seu
'desencantamento do mundo', quando a realidade passa a ser dissecada,
analisada, julgada e ( por que não? ) ironizada. A Amada dos sonhos
passou a ser mesmo a mulher do cotidiano (a criada de quarto, como
dizia o Fernando Pessoa) e não mais a Virgem onírica dos devaneios
líricos. A mulher era um corpo assim como o mundo era matéria.
Então
a dessacralização continuou, passando pela figura da Beleza, da
Moral, da Família, da Beatitude, e (para o desespero dos crentes)
até da figura de Deus. O mundo virou mesmo uma máquina
(como já sabiam Camões e Drummond com a 'Máquina do Mundo')
onde cada um é mesmo uma mera engrenagem. Então a poesia joga o
jogo e desiste de ser superação – passa a ser entretenimento e
atividade lúdica – um rir da vida para não cair no choro.
Pululando
à margem – muitos se declaram 'poetas marginais' – fazem
germinar e florescer a flor no lodo (como bons seguidores dos dois
Charles, o Baudelaire e o Bukowski) os poetas que preferem
'alfinetar' do que propor novas éticas e estéticas, do que ousar a
construção de novos mundos. Criativos, audazes, debochados, estão
ao nosso redor, com poeminhas infames e iconoclastas (citaremos
Leminski, Cacaso, Chacal, Behr, p.ex.)
Assim
o Poeta irônico, lúdico, de humor ácido, cheio de chistes e
epigramas, sempre a rir das próprias feridas, está na moda. É a
poesia outdoor para se ler no ônibus enquanto se desce a
rodovia, ou se vai ao shopping. Uma poesia para se ler rápido
– ao estilo fast-food – sem exigir muito, sem qualquer
compromisso.
Em
“cor de cadáver” - título macabro a mesmerizar leitores
soturnos e assombrar os puristas – a poesia está livre, leve e
solta (ai! que lugar comum!)onde a paródia começa na 'trilha
sonora': uma paródia das “Quatro Estações” de Vivaldi –
mas faltou Vivaldi! Ou será justamente por ser uma paródia de
Vivaldi? Não importa, temos Beethoven, Mozart, Bach e Brahms. (Prato
cheio para alguém semelhante a mim, que adora ler ouvindo música...)
Ler
poemas ao som de Beethoven, Mozart, Bach e Brahms? Mas não será
outra ironia? Digo 'outra' porque diante de um poeta irônico pode-se
esperar tudo! A ironia, a auto-ironia, a ironia diante do amor, a
ironia diante do fim do amor, a ironia com a amada, a ironia com a
ironia.
fim
de caso
o
boneco que te amou
não
conhece o ventríloquo
Uma
ironia contra a 'idealização' do amor e do(a) amado(a). Uma ironia
de 'médico e monstro', a misturar o lírico com o sacana. Uma
desconstrução de 'imagens líricas' para dessacralizar o que resta.
A mulher é um ser sublime, convenhamos, mas é também uma
'rameira'.
Antes
de dormir / peço à deus
um
milagre / um presente
sonhar
com thereza
seus
olhos de feiticeira / seus pés de ninfa-brejeira
seu
cheiro de rameira
A
poesia colorida de tons lúdicos. Ainda com toques de amargura. Uma
poesia lúdica que nasce de um humor ácido com as próprias nuances
da 'identidade', do estar sempre em 'transição'. O lúdico seria a
melhor forma de abordar o 'jogo de máscaras' que cobrem nossas
faces? A identidade do EU é circunstancial? “Eu sou eu e minhas
circunstâncias” (Ortega y Gasset) Circunstâncias que variam a
cada estação do ano. Assim um EU outonal? Um EU invernal?
Ainda
mais se consideramos que “cor de cadáver” é uma
coletânea que abrange 10 anos na existência do poeta. Acompanhando
o otimismo-irônico e o pessimismo-lúdico dos versos. As estações
do ano também são as estações da vida: infância – adolescência
– maturidade – velhice.
Na
primavera, ouvindo Beethoven, temos o lúdico na 'flor da juventude'
com seus trinta e poucos anos, a definir-se em 'auto-retrato', em
calcular as idades, o tempo que passou e o tempo que ainda falta,
fazendo a aritmética dos amores perdidos – e tudo resulta em
poemas (“só o poema traça / o início e o fim da desgraça”)
No
verão, ao som de Mozart, encontramos o lúdico lírico e desbocado,
caudaloso e pseudo-romântico (“você fica linda naquele
espelho”), com alguma intertextualidade (garota de Ipanema?
bonequinha de luxo?)(1)
No
outono, embalado em melodias de Bach, acompanhando o amadurecimento
em labirintos de metalinguagem citações, referências – Leila
Diniz, filmes de amor, Divina Comédia, etc – extremando no humor
negro (em auto-deboche?) de “falecida manhã”
de
manhã cedinho
perdi
meu amorzinho
e
fiquei com meu lutinho
No
inverno, acalentados por Brahms, colhemos decepções e desencantos,
desilusões e desencontros, em poeminhas quase-haicais, onde o
que cai é a máscara da 'vida feliz'. Moeda que tem dois lados, musa
com duas faces, a vida oferta com uma mãe e retira com a outra. Os
amantes se encontram hoje, apenas para se ignorarem amanhã. “a
vida é careta / você pula do Acaiaca / eu bebo no maletta”
(2)
O
caso é que o Poeta acha 'bonito' deixar-se debochar de seus amores
perdidos, de sua vida que se esvai, de suas ausentes esperanças, num
masoquismo que desperta a nossa piedade. Afinal, o problema não é a
vida – não devemos vilipendiar a vida! - mas as condições
em que a vida se processa: desafetos, desconfianças, suspeitas,
ambições, interesses velados, corrupções, exploração da mão de
obra alheia. (Todo deboche e niilismo não leva a um 'pensar adiante'
num mundo em que devemos resolver nossos problemas – afetivos e
sociais – mas ainda continuamos a rir das nossas deficiências e
fracassos. )
Mas
esta não é a missão do Poeta (cidadão que o idealista Platão
exilara de sua augusta República) que se limita a aclamar seu
niilismo pelos quatro cantos, nos saraus nos jardins, nas ondas de
bites e bytes, nos livros de miolo de papel pólen
bold 90 gramas. Pois, de repente, se o tempo perdido não merece
lágrimas copiosas, então deve despertar mesmo boas risadas.
Jan/10
(revisão:
dez/12)
Leonardo
de Magalhens
blog
do poeta
poemas
de Jovino Machado
notas:
(1)”Garota
de Ipanema” é uma canção ícone da 'bossa nova', composta em
1962, por Tom Jobim. “Olha que coisa mais linda / Mais cheia de
graça / É ela menina /Que vem e que passa / Num doce balanço, a
caminho do mar.” Já a “Bonequinha de Luxo”
(Breakfast at Tiffany's, 1961) filme que imortalizou a
belíssima Audrey Hepburn, como símbolo da mulher dado ao luxo e à
vaidade.
(2)Para
aqueles que não têm o privilégio de habitar na bela Belo
Horizonte, informamos: “Edifício Acaiaca” é um mais
altos (26 andares) e antigos do hipercentro, localizado na Avenida
Afonso Pena, próximo ao Parque Municipal. Já o “Edifício
Arcângelo Maletta” é um
condomínio residencial, de
20 andares, localizado no cruzamento da Rua da Bahia com a
Avenida Augusto de Lima, sendo obra da prancheta do arquiteto Oscar
Niemeyer. No Maletta são localizadas livrarias, lan houses,
bares e restaurantes, sendo ponto de encontro da vida boêmia da
capital mineira.
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