quarta-feira, 25 de abril de 2012

Sobre "Minerar o branco" - de Ronaldo Werneck



sobre os poemas de “Minerar o branco” (2008)
do poeta Ronaldo Werneck


Quando a poesia precisa minerar além do poema


A Crítica

Muito já se discutiu sobre poesia enquanto jogo de palavras, i.e., exploração da oralidade ou destaque visual, com alguma disposição gráfica de versos. São assuntos com farta bibliografia. Sejam dos adeptos de uma ou outra forma, sejam dos puristas ou dos vanguardistas. Poema é som ou desenho numa folha? Poesia é para ser lida ou contemplada? É conjunto de versos ou um verso só já é poema? Um objeto, uma coisa, é poesia? Para os adeptos do poema-objeto a resposta é afirmativa.

Como podemos ver, cada teórico teoriza o que lhe agrada ou interessa, dependendo do grau de devoção, se adepto do oral ou do visual, se devoto da oralidade ou do concretismo. Cada igreja forma os seus ideólogos, os seus bispos defensores, os seus xamãs teorizadores. O difícil é ressaltar o poético, o lírico, em cada obra e tentar ouvir o que tem a dizer. Ou o que ela quer que vejamos.

Por mais objetiva que seja uma crítica, esta ainda está carregada de subjetivismo. Há um crítico que a idealiza e produz. Não temos máquina de ler e interpretar poesia. Ainda bem, convenhamos. Assim se um crítico prefere poesia oral, epopeias rítmicas do cordel, talvez pouco vá se interessar por poemas-visuais, ou poemas-objetos. Se o poeta é vanguardista, muitas vezes nem abre um livro de cordel, acha que é coisa popular, tradicional, e que precisamos abraçar o futurismo (espere aí! o futurismo já está nos museus!) ou propagar o concretismo.

Críticos que preferem poesia oral, baladas, ritmos de cordel, poesia cantada, precisam fazer um esforço para entender poesia visual, poesia-objeto, poesia no blog. Senão, com tanta subjetividade contra, não poderiam tecer um ensaio objetivo, segundo critérios estéticos. Aqueles mais vanguardistas (ou se consideram assim) mostram dificuldades ao lidarem com formas tradicionais, ou entender as letras de canções como formas poéticas. Qual a diferença entre um cantor e um poeta? Os acordes e refrões?

Por outro lado, poesia não é simplesmente aquilo que o Crítico considera poesia. E muito menos aquilo que o autor considera poesia. Para o poeta tudo o que escreve é poesia (mas pode ser apenas desabafo...) e para o crítico apenas é poesia o que sobra quando se tira a casca de sentimentalidades. É poesia o que sobrevive além da 'intenção autoral', daquilo que o poeta quer dizer. Principalmente, é poesia aquela amálgama forma-conteúdo que é transmitida ao leitor – mesmo quando ele/ela nada entende. Posto que a poesia não é necessariamente racional.


A Obra

Técnicas

Quando o poeta cuida da parte gráfica alguns fenômenos podem ocorrer. Ou a obra ser risível ou genial. Pode também ser mais do mesmo ou algum tipo de inovação. Quando o poeta trabalha a tipografia dos versos – assim os estilos de Mallarmé, Maiakovski e Octavio Paz, p. ex. - o interesse não é apenas sonoro, mas também visual. Como o poema deve aparecer aos olhos do leitor.

A poesia enquanto fenômeno visual não exclui a sonoridade – jogos de palavras e aliterações são abundantes no concretismo – nem outras particularidades da forma oral, apenas que espera-se um olhar atento do leitor. As palavras estão em arranjos, distribuídas segundo critérios (ou não) que interessam à intenção autoral.

Assim é a questão do tipo preto na página branca, ou do tipo branco na página escura, ainda o trabalhado entre contraste claro escuro, quando tudo integrado, percebe-se o quanto a disposição gráfica é relevante, sejam as marcas tipográficas, sejam os arranjos de palavras. O 'despedaçar dos versos' em degraus, ou escorrendo pela página. Algum propósito tem – nem que seja o de levar o crítico a apontá-lo.

Afinal, podemos escrever o verso “A menina ouviu em pânico o som áspero” na íntegra, ou segmentá-lo em sintagmas, para ressaltar os constituintes. Assim podemos escrever o verso em degraus, um elemento por linha,

A menina desperta
                          ouviu em pânico
                                                o som áspero

se desejo ressaltar que é uma menina - e não é um menino, ou senhora – e que ela ouviu em pânico – e não caiu no sono, ou escovou os dentes – e o que ela ouviu, um som que julgamos desagradável (o ranger de uma porta? O estilhaçar de um vidro?), mas é possível ainda, se quero destacar o estado de pânico e o tipo de som, escrever assim:

A menina desperta
                         ouviu
                                em pânico
                                              o som
                                                        áspero


O verso ocupa mais espaço na página, pode ser melhor visualizado, pode ser lido mais prontamente ou lentamente, a depender o estado de suspense para o leitor – que pode deslocar ênfases para 'em pânico' e 'áspero'. A disposição gráfica apenas facilita, norteia, não determina. Antes, os determinantes seriam uso de negritos, itálicos, parênteses, fontes diferentes em cores e tamanhos, mais próximo ao concretismo.


A menina (desperta)
                           ouviu em pânico
                                               o som áspero

Portanto foi um pânico imenso que a menina (não qualquer uma, mas a desperta) ouviu o tal som áspero (muito áspero, percebe-se pelo tamanho da letra e pela cor rubra) , ou seja, o poeta pré-determina a leitura do leitor ao ressaltar trechos do verso. Destaques em tamanho e cores são recursos visuais, enquanto na poesia falda o declamador pode sussurrar ou gritar, acelerar ou frear a leitura.

Citando a obra, ressaltamos que o verso é 'não noites não nozes não vozes' mas graficamente se dispõe assim, em degraus descendentes,

não
      noites
                não
                      nozes
                             não
                                  vozes

(p. 211, “Velhos Natais”)

Outra marca tipográfica que destacamos é o uso de certos tipos de letras – ora maiúsculas ora minusculas, ou o predomínio de uma ou outra. Aqui, na obra que folheamos, eis a preferência por letras minúsculas – alguma influência do poeta e. e. cummings (1894-1962), que adorava inovações tipográficas? É possível que sim, pois poemas inteiros são escritos em minúsculas,

vem da mata o menino
de mim das minas claras
de miniminas raras

vem da mata o menino
no alto-gerais traços
tontos trecos e trapos

vem da mata o menino
solta-se das gerais
de si minas não mais

(p. 138, “Vem da Mata o Menino”)

Assim, estamos abordando as técnicas, que são muitas. O trabalho com as palavras é sensível e visível. Percebemos repetições, aliterações, palavras cognatas, ou que parecem cognatas, rimas, assonâncias, fusões, derivações. Mais, jogos verbais, fragmentação silábica, jogos de palavras, trocadilhos, citações, referências, paródias, intertextualidade (com livros, autores, filmes, etc) em recursos que lembram os estilos de Affonso Romano de Sant'Anna e Affonso Ávila, só pra ficarmos aqui em Minas,

                                            balas bailam tontas
                       zunem zonzas
a metralha ruge
a mortalha rouge

(p. 61)

o corpo-roto
               de selva & sangue
o mito-morto

(p. 67)

reluz teu rosto farol fresta facho
de outrora clarão que se locomove
            chiaoscuro caro cálido colo
            vem de volta vem comigo vem rosto

(p. 87)


olhos meus olhos
sobre meus olhos

(p. 91)

minhas mãos / tuas mãos / as muitas tuas / minhas mãos

(p. 92)

o amor bateu / forte / ardeu forte
ao amor / bateu / sorte

(p. 92)


erra o poeta pelo erro
erra o poeta por não ser
em si manhã e por não ser
em si manhã e por não ver
que ver rever reverberar
o erro não mais é errar
pelo mundo errar aspirar
errar pelo erro de errar
errar pelo tempo profundo

(p. 152)

e fala magra e mansa e magro
e tão mago e leve

(p. 218)


Intertextualidade

De influência em influência, os autores dialogam com autores, os textos carregam 'pistas' para outros textos. É sensível aqui, em “Minerar o Branco”, o diálogo com outros poetas, por exemplo, o futurista russo Maiakovski,

maiakovksi me olha
                           maiaca me mira
maiatédio
              é melhor morrer de vodka

(p. 76, “Annamanhece”)


ou com Tennessee Williams (1911-83, norte-americano, o autor de “Um Bonde chamado Desejo”, 1948), no leme treme tennessee” (p. 96), poema no qual enxerta a tradução do poema “How calmly does the olive branch(“com que calma o ramo de oliveira”),

Com que calma o ramo de oliva
Vê a tarde ficar menos viva
Nenhuma súplica ou ruído
Seu desespero não é sentido”

mais info em


ou com Manuel Bandeira, o poeta de Pasárgada, em “Pindamoraminas” (pp. 155-56),

não, não vo'm'embora
pra lua-pasárgada
meu tempo é agora


nada de pasárgada
-vem, vamos embora
pindamonhangaba
é aqui, aurora


Outro detalhe: se o poema é muitas vezes hermético, não nos preocupemos, pois o próprio poeta cuida em explicar tudo em notas de rodapé (assim como em “Itinerário de Pasárgada”, Manuel Bandeira explicava, detalhava, expunha as 'chaves' dos poemas de sua autoria...)

Assim, no poema “A Voz”, p.ex. só quem leu a biografia de Frank Sinatra vai entender imediatamente – então o poeta vem socorrer o leitor - “a voz” é o próprio Sinatra, chamado 'the voice', pela plenitude de sua expressão vocal, de talento indiscutível.

São várias as referências a autores, livros, filmes que o leitor (ainda mais o jovem) pouco reconhece, daí se justificassem as notas de rodapé. Quem foi Hemingway? Quem foi Godard? Quem são os ícones do cinema ou da literatura que ainda nos influenciam hoje? Enquanto cinéfilo e poeta, ou poeta e cinéfilo, Ronaldo Werneck poderia polemizar, criar mesmo as controvérsias. Quem são os nossos referenciais? Quais os nomes para os quais não precisamos de notas de rodapé?


Metalinguagem

Ressaltamos as influências pois estamos em território do autor-leitor, ou seja, um autor que se entrega a ler e reler obras de outros autores, e intertextualidade certamente não faltará. Esta leitura constante faz o autor pensar a própria escrita, quase um escrever e meditar sobre o ato de alinhar palavras, ao ressignificar o mundo.

Tudo em abundante recorrência de um fenômeno normal em nossa era: metalinguagem. A poesia adora falar de poesia, parece. O poema aponta para si mesmo, enquanto poema. Lembra o tempo todo ao leitor que se trata de um poema (como se precisasse ficar reafirmando isso!),

Em “Preto Nu Branco” (p. 39) temos uma dica

                            não leia
             de arranco:
opresso é
             o poema:
                eco
mas a poesia
                  salta
             do branco
            -ecco!


Mais metalinguagem entre os jogos de palavras, que se destacam em rimas internas ou aliterações, deslocados em blocos descendentes no branco da página,

              pó poesia
pois é um voo em vão que se desvela
                    e resvala
                sentinela
inconstante

(p. 41, “De Céu e Nuvem”)

e

            o pó do poema
          a poesia recompõe
                                     em meus braços
                                                               a poesia

(p. 122, “A Poesia nos Braços”)


e também,

poesia
o poema
trabalhado

poesia?
O poema
só suor

poesia?
O poema
apanhado

(p. 129, “Sim-Sim: Cinco Minutos”)


Convenhamos, o poema se esforça, se espreguiça, se alinha, se derrama para falar sobre si mesmo. Metapoema é uma recorrência, tal um espelho refletindo a si mesmo em infindas, num fenômeno de recursividade. O poema que fala sobre o poema no poema... Aqueles contos do Borges que falam de contos, ou os romances de Calvino que lembram o tempo todo que são romances do Calvino... onde o referencial? Nem mais pretende 'representar' o real, o mundo exterior. A poesia torna-se assim um jogo alienado, voltado para o próprio umbigo.

Temáticas

Pensemos, além de falar de Poesia qual outros assuntos despertam a fala do poeta? O que deseja falar o poeta além do fazer poesia? Será que há um mundo lá fora? Ou tudo se resume a jogos de linguagem? Tudo é palavra ao lado de palavra e estamos conversados.

Mas certamente o poeta quer falar sobre o mundo externo, o tempo que flui, a infância, a vida de descobertas, a cidade, as polêmicas literárias, o viver (e o sobreviver) de poesia. É nessa ânsia de comunicar que destacamos os poemas “Vem da mata o menino” (pp. 138-39), “Ah! Há controvérsias” (p. 157-58), além de “Política do Troco” (pp. 58-59), onde a identidade do eu-lírico se faz presente e repensada, o ser mineiro, o chão de Minas, a voz que cria controvérsias, o poeta errante que carrega a cidade natal consigo,


vem da mata o menino
vem trem-do-mato tralhas
de minas imantadas

vem da mata o menino
alto mato seu trem
trem-do-mato trem-trem

vem da mata o menino
e do mato no asfalto
mata angústia mato


e

mudo o mundo muda
na praça sem pressa
sim: há controvérsias

um dito um não dito
novas tão funestas
não: há controvérsias

...

fado: fogo-fátuo:
minas é o que resta:
ah! há controvérsias


o preço da pressa
o fausto da festa
ah! há controvérsias


Controvérsias existentes ou não, a poesia pode falar do mundo exterior – deve falar da vida ao redor, do imposto de renda, da desigualdade social, da subnutrição, dos lobbies no legislativo, do câncer da corrupção, pois o poeta é um operário, sim, um proletário da palavra. Perguntam: o poeta tem ideologia? Responde-se: existe um discurso não-ideológico? Alguma fala sem propósito, sem emissor e receptor? A voz no poema se identifica com quem na 'luta de classes' ?


apenas mais um
                        como você
                                       um operário
                                                        da palavra
(…) p. 58

um operário
                 que na terra
                  cava
                          a vida avara

(p. 59, “Política do Troco”)


Em que nível o intelectual é um operário? Qual a 'consciência de classe' do intelectual ? Precisamos lembrar em que contexto transitamos. Em plena década de 1960 – época de luta de classes – ideologias, golpe militar, repressão política. Luta armada, guerrilha urbana, guerrilha nas selvas, torturas. E onde se encaixa o intelectual? Quem fala de mais não é obrigado a se exilar? Caso contrário não terá um fim trágico no paredón?

Mas antes de tudo a voz do poeta volta-se para a própria poética – que não se reduz ao panfletário, propagandístico, manifesto revolucionários ou reacionário. Tematiza o que o incomoda pessoalmente até mais do que socialmente, p. ex. o tema: a Americalatina e suas veias abertas (vejamos Eduardo Galeano e sua obra “As Veias Abertas da América Latina”, onde acusa o imperialismo europeu e norte-americano pela exploração do nosso continente, hoje dado ao subdesenvolvimento ), trata-se de um tema retomado nos anos 1990,


natinovo leão
de latinoamérica

(p. 61)


surge súbita
a pré-fabricada
nas oficinas
       da américa latina

das oficinas da américa
das oficinas de sombra e medo
       suja morte em selva

(p. 66)

E certamente alguma ironia com o desejo dos argentinos de serem europeus? Buenos Aires certamente não é Paris, a cidade-luz, por mais que nossos hermanos tenham ânsias de potência do Cone-sul, seja no comércio, na cultura, ou no futebol,

buenos aires
não é paris
              nem o sena o prata
                                       que contracena
em noite pequena
lua-que-lua
solta na rua
                 de pedra e prata
                               salve as matas
                                             as mulatas
e o inca sem gravata

(p. 69)


Conclusão

Concluímos, e repetimos, além de técnicas, de metapoemas, de intertextualidades, de temáticas, importa que o autor, principalmente o poeta, supere ideologias, propagandas, lavagens-cerebrais, prisões de época e de ego, empecilhos de criação e 'esqueletos no armário', desista de bens e heranças, renegue a família e as tradições, e ouse criar o novo, o não esperado, o-que-nem-vamos-digerir-agora, mas as próximas gerações podem assimilar e canonizar.

Afinal, trata-se não de teorizar ou tematizar, mas de viver e sobreviver. Sai e entra governo, mudam-se os planos de previdência social e os planos de carreira, mudam-se as legislações, alteram-se os quadros partidários, e como lidamos com tal efemeridade, fora da torre de marfim? É preciso viver o poema. Viver o poema? Sim, eis uma profissão de fé que soa singela e sincera, o verso que guardamos depois de fechar “Minerar o branco”, do poeta-cinéfilo Ronaldo Werneck, “morrer não vou sem viver este poema” (p. 46)


abr/12

Leonardo de Magalhaens



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mais sobre o poeta Ronaldo Werneck









poemas de “Minerar o Branco


VEM DA MATA O MENINO


vem da mata o menino
de mim das minas claras
de miniminas raras

vem da mata o menino
no alto-gerais traços
tontos trecos e trapos

vem da mata o menino
solta-se das gerais
de si minas não mais

vem da mata o menino
marilumina a lua
que blue e bamba atua

vem da mata o menino
dobra a noite a montanha
sobre o céu sol de antanho

vem da mata o menino
degredado vem veloz
trensloucado empós

vem da mata o menino
vem-vai-vai-vem agora
verde mato de outrora

vem da mata o menino
vem trem-do-mato tralhas
de minas imantadas

vem da mata o menino
alto mato seu trem
trem-do-mato trem-trem

vem da mata o menino
e do mato no asfalto
mata angústia mato


Copacabana, 29.01.91


...


AH! HÁ CONTROVÉRSIAS


mudo o mundo muda
na praça sem pressa
sim: há controvérsias

um dito um não dito
novas tão funestas
não: há controvérsias

nada mal presentes
fogo na floresta
sim: há controvérsias

fado: fogo-fátuo:
minas é o que resta:
ah! há controvérsias

não às reticências
chagas sem compressa
não: há controvérsias

o preço da pressa
o fausto da festa
ah! há controvérsias

cães na praça restos
no caos que atravessas
sim: há controvérsias

nada tal e qual
na vida adversa
ah: há controvérsias

nem tangos nem tangas
só minas homessa
não: há controvérsias

o pó que perpassa
poalha sem pressa
sim: há controvérsias

em tudo uma fresta
o azul é o que resta
ah! há controvérsias?

E pronto e basta
chega de conversa
não há controvérsias


In : “Minerar o branco” (2008)


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