Sobre as obras Embarcações (Ausência, 2004) e
A Singradura do Capinador (Indícios de Oiro, 2005)
do poeta Luís Serguilha (Portugal)
o transbordar contínuo das palavras do vertiginoso excesso
“É com estes sinais abrasadores de cisternas fracturadas
que imoderadamente enamoro as arcadas sulfatadas da
invenção” (Embarcações)
“Ofereço-lhes o texto que escrevo, ignoro se o entendem,
como ignoro se a minha presença activa bate asas como
a borboleta que causa um tufão sobre o Pacífico”
(Maria Gabriela Llansol, Anagnoses)
“A maldição de pensar fez suas vítimas: em minha geração,
vi muitos poetas se transformarem em críticos, teóricos,
professores de literatura.”
(Paulo Leminski)
A necessidade fremente de deixar transbordar sentimentos nas palavras que compõem o léxico de idiomas, que podem se metamorfosear em vocábulos líricos, tem motivado os poetas e as poetas por toda uma história literária e performática com uso abundante de verbetes inacessíveis aos incautos e terminologias repassadas aos neófitos que se deixam mesmerizar por pseudo-verdades repassadas de geração a geração mas sem nenhuma validade metafísica ou demasiadamente física.
Congregadas por semânticas ou sonoridades nos bailados de sentido e de ritmo, as palavras vem e vão sobre a página ao pulsar dos olhares de leitores embasbacados a perder o fôlego num sem rumo de leituras que o próprio versejar promove ao não limitar as múltiplas interpretações em diferentes e bifurcados níveis de leitura.
Linearmente limitadas cerceadas em teses dissertações monografias memorandos ofícios bulas atestados de boa conduta et cetera, as palavras se prendem num nível de significação a perder todos os outros níveis de leitura e deixando um saudosismo da pluralidade de sentidos que somente o poeta é capaz de captar no mar de vibrações sonoras que poluentemente nos envolvem.
Aqui graficamente o estilo de Luís Serguilha, com fluxo de versos a se espalhar a se disseminar na página, vem lembrar o estilo de Vladimir Maiakóvski, o futurista russo que cantou e sofreu a Revolução Russa de 1917, inovador ao aproveitar todo o espaço onde se desloca o olhar para distribuir a cascata de versos que não se limitam mas se interceptam se interdigerem a se imiscuir em significados uma das outras, a dinamitar as algemas das definições lexicais.
O Estilo poema em prosa ou prosa em verso de L Serguilha deixa-se fluir num excesso de conectivos no/na/s ou do/da/s a costurar sequências seguimentos cadências de substantivos mais adjetivos mais advérbios terminados em -mente, num aprisionamento de palavras com sonoridade afins, proparoxítonas esdrúxulas, em sentidos diversos, antagônicos dissonantes.
É preciso fôlego e tolerância lírica para navegar nas Embarcações (Emb)poéticas de poemas prolixos caudalosos de Luís Serguilha a despejar um vasto vocabulário que desafia o leitor a armar-se de um bom dicionário vulgo pai-dos-burros para servir de bússola e astrolábio nas navegações onde as conceituações típicas de surrealismo e cubismo e expressionismo se perdem nas várias imagens simultâneas e sem sentido sem nexo além da própria expressão vertida do poeta assim nesta “ameaça de incomunicabilidade”, onde o poeta enfrenta o silêncio no emaranhado dos discursos para tecer considerações metafísicas sobre a linguagem como possibilidade se localizar enquanto ser no mundo,
O silêncio enlaça-se na amamentação do abismo para
escriturar uma estrutura ininterrupta debaixo da subversiva folhagem
(Emb, p. 162)
A celebração da homogeneizada fragilidade rumoreja no
fenómeno multiplicado da hibernação
onde a conveniência das distâncias sobrevive à descompostura
nostálgica da sensualidade
que amanhece no écran oceânico dos rostos
(Emb, p. 116)
Caminhamos exaustos na profecia tumultuosa da planície
albergando distraidamente
a regeneração das orquídeas no asilo feliz do sol
(Emb, p. 141)
Partimos como pianistas enrolados nas sentinelas dos ecos
desejando o alarme incorrigível das estrelas marítimas
Filtramos as irreconciliáveis lavanderias das construções
sobre as delicadíssimas transmutações dos astronautas
(Emb, p. 144)
As embarcações desnecessárias bebem as expectativas
dos hospitais crepusculares
que formulam as coincidências dos sulcos
entre os pomares inexplorados do deserto
(Emb, p. 155)
Isto tudo porque somos a iniciação fértil das coincidências dos lábios
tempestivos
Isto tudo porque os parágrafos fluviais das árvores órfãs
evitam sinuosamente
os jarros impudentes do frontispício solar
(SC, IX, p. 42)
Meio ao discurso verborrágico, nas reações em cadeia de palavras e metáforas, podem se destacar as pérolas líricas onde as imagens poéticas as figuras de linguagem podem alçar voo das páginas amontoadas de símbolos signos significados onde o poeta precisa “perder a dor minuciosa da escrita para recortar os subterfúgios das raízes sonolentas”, e as pérolas líricas surgem dispersas dentro das ostras encadeadas no esforço do transbordar de signos enleados por afinidades lexicais ou sonoras ou desafinidades de semântica, ou seja,
A cavalgada confiante dos dedos eleva-se na breve luz
das árvores desocupadas
onde a desordem inteligente dos enxames fecha precisamente o
glossário tacteado da alegríssima seiva
(Emb, p. 111)
A fisionomia dos terraços regulam a particularidade das alfaias
abandonadas
onde o trote brilhante dos castanheiros alisa o desarme das estações
metamorfoseadas
(Emb, p. 131)
Os pássaros dissimulados entre as palhetas de sol
parecem lavradores a simplificarem
a orientação dos minúsculos helicópteros no rumor incestuoso das
manhãs
(Emb, p. 136)
A contradição latente das flores apercebe-se do estremecimento
remotíssimo das maxilas de terra
manejadas delicadamente
pela realeza cinzelada nos convés das
indeterminadas vegetações
(Emb, p. 147)
O marfim dos alvos atravessa a lembrança majestosa dos poentes-suicidas
como uma projecção de interruptores das colinas
sobre os mensageiros dos liquenes dos animais
modulando imperceptivelmente
a milenar batedura dos olhares sonhadores
(SC, VI, p. 35)
O sol e ópio das metáforas deleitam o recolhimento dos anéis aquáticos
na mobilidade contrária às hélices dos corações exóticos
(SC, VIII, p. 41)
Os solitários voos lançam-se nos vacilantes tronos das savanas
onde as preguiçosas combustões encrespam os gracejos
furtivos das pálpebras
(SC, XI, p. 47)
Os amantes inventam as acanaladuras das ginjeiras
sobre esquecimento isolador das cavernas
para consumirem os liames das transparências
entre as descobertas estonteantes dos girassóis
(SC, XIII, p. 56)
como lençóis nebulosos a engrandecerem as teias anatómicas do tempo
(SC, XXII, p. 82)
Um coração selvático estilhaça-se nos mastros tocadores
das pastagens antropológicas
para compartilhar o mistério redondo das constelações
(SC, XXIV, p. 90)
onde o tear mutante do oceano restaura a verdadeira morada dos amantes
(SC, XXXVII, p. 120)
Onde as descrições se perdem e se encontram nos entrechoques de imagens metafóricas e intercaladas simultâneas de registro verbal de evento pictórico assim um crepúsculo recriado pela linguaguem em torvelinhos na página 137 de Embarcações,
Partimos nos desenhos hidráulicos dos pintassilgos
que entrechocam pacientemente nos
suicídios da luminosidade
remodelando os cotovelos desastrados das cidades
sobre as tesouras das lavagens ainda amarelas
são nuvens de aveia estremecendo num dicionário de silêncios
como transitórios e esbeltos muros no interrogatório ambicioso
dos poentes
são ensaios intraduzíveis das adormecidas algas
sobre o ensinamento decisivo das lutas crepusculares
equivalentes aos aposentos subtraídos dos xistos
perpetuamente desalinhavrados
ou na página 69 de Singradura do Capinador,
As constelações dos pássaros beligerantes ponteiam perfeitamente
a congruência dos grãos das fortalezas
como a colagem musical das casas caleidoscópias a invadir as manobras
geométricas das rendilheiras
sobre a consciência silenciosa das amplas bússolas
Um excesso de imagens certamente a criar uma vertigem cinematográfica sinestésica de movimentos em caleidoscópios, pois “a sublimidade dos pormenores cinematográficos mergulha nas engrenagens dos divãs aéreos para trespassar serenamente a consonância inominável dos intérpretes”,
As arquitecturas velocíssimas das antenas verdes
derramam demoradamente
as curvaturas dos pássaros convulsivos
até ao equador alternativo
das guitarras selvagens
(Emb, p. 99)
As atléticas borboletas cultivam o êxtase azulado do florescimento
sobre a fidelidade reajustada das rodas de resina
e as bagagens dos pássaros citadinos
equilibram prodigiosamente os cruzamentos
do lugar claro
na disponibilidade da veterana chuva
(Emb, p. 104)
O zumbido do sangue projecta-se depurado na nulidade da labareda
para reavivar as ligações das fábulas nas
épicas cacimbas solares
que recompõem internamente
os forros astronómicos da periferia fluvial
(Emb, p. 113)
as laborações das sílabas flamígeras das colinas
como a dramaturgia a prumo fluindo
sobre os abastecimentos quotidianos das janelas
alucinadas
(Emb, p. 124)
As frontarias febris dos veios terrestres cambaleiam
para desordenarem as pupilas dos rouxinóis das laranjeiras
(SC, XXII, p. 85)
As cores prodigiosas dos insectos abençoam as exaltações das maçãs
na confluência do fogo
é aqui que a impressão necessária da água soergue
os exercícios enigmáticos das finíssimas armaduras
(SC, XXX, p. 99)
Imagens sensuais eróticas insinuantes podem se ocultar no meio de semelhante palavreado a distrair nossa atenção do que realmente importa, “convivências das bocas” “ancas felizes” “convicções soalheiras dos lábios” “orlas morenas do sexo” “seios esplendorosos” “fenda voluptuosa” “reavaliadas coxas” “desfiladeiro caudaloso das coxas” “maçãs disciplinadas dos beijos” “docemente um umbigo desnudado inclina-se na recompensa instantânea dos trigais” a comporem um mosaico de sensualismo disperso que parece estar nos bastidores de todo o fluxo jorrante de verbetes pretensamente desconexos, “a cavidade dos espasmos” “cópulas dos fogos rasteiros” “anarquismo da pélvis universal” “sede propulsora dos ovários” “parapeitos genésicos as mulheres tântricas” tudo embolado interpenetrado a lembrar aquelas imagens dos templos indianos com miríades de posições sexuais orgiásticas de kamas sutras e afins.
Os talos nocturnos anotam genialmente o
vidro do desregramento na crispação da voz
e nas procurações das mãos passam contrafortes de
formigueiros cheios de oprimidos canaviais
a confessarem principalmente
a voluptuosidade do incêndio azul
sobre a fascinação sobreviente da invadora jangada
(Emb, p. 108)
Nos parapeitos genésicos as mulheres tântricas discutem a imperfeição
dos ciclos das piruetas lunáticas
que vaticinam os sismos das arquicteturas pélvicas
sobre as resinas capitosas das pálpebras
(SC, XII, p. 49)
Intercaladas percebem-se as várias leituras possíveis de determinados trechos em diferentes disposições tabulações na página em exemplo que destacamos em Singradura do Capinador (SC, p. 23),
1 A orquídea cósmica reúne minuciosamente os imponentes
2 amparos da livre plumagem
3 para inclinar os lábios purificados da cidade-desembarcadouro
4 na preciosidade da momentânea tempestade
5 e a demarcação esplendente das rosáceas enfeitiça a fertilização
6 dos golpes equilibrados nos profundos inventários das mós atlânticas
7 onde as cortinas inenarráveis dos úteros se contraem sonoramente
onde são possíveis as leituras pelas tabulações semelhantes onde seguimos a sequência 1 + 3 + 5 + 7 em leitura paralela a sequência 2 + 4 + 6 e ambas criam sentidos significações textuais diversas e assim por diante, p. 52,
1 As barbatanas mágicas bamboleiam nas garatujas dos ventos
2 para atrelarem os colares da abstracção às fulvas campânulas
3 das hospedagens
4 onde os estandartes aspiraram fortemente os percursos escarpados
5 das chuvas
6 como montanhas exaustas a manipularem as transferências das
disposições exóticas
e assim por diante, em experiências nas páginas seguintes, por exemplo a página 57, que eu deixo por conta do leitor, enquanto prosseguimos nas experimentações, nas páginas 58 e 59, com outras disposições de leitura, a lembrar os exemplos estudados por Roman Jakobson, de seleções e colagens de eixo sintagmático e de eixo paradigmático, segundo uma nomenclatura de Saussure, aqui citamos
“A seleção é produzida sob a base da equivalência, da similaridade e dissimilaridade, da sinonímia e antinonímia, enquanto a combinação, a construção da sequência baseia-se na contiguidade. A Função poética projeta o princípio de equivalência do eixo da seleção para o eixo da combinação. A equivalência é promovida a fator constitutivo da sequência.” (citado em “Bakhtin e O Formalismo Russo” de C. Tezza, 2003)
no/na/s + substantivo* + do/da/s + substantivo (*ou substantivo + adjetivo + adjetivo ):
que se debruça nos vestíbulos aniquilados
nas escaleiras distantes das artérias
nos casebres incessantes das praças......
ou repetição de sequência + verbo + substantivo + adjetivo + do/da/s + substantivo:
O esforço do fogo volátil ordena a indolência calamitosa das árvores
O esforço do fogo volátil desenraiza as irregulares fisionomias das perguntas....
ou na página 63, com o esquema
onde o/a/s + substantivo + do/da/s + verbo + substantivo + do/da/s + substantivo:
onde as grainhas dos pássaros cinzelam as cabeças das vegetações
onde as passagens dos diademas possuem os orgasmos
dos insectos nómadas
onde o vértice estancado das estrelas improvisa as analgias.....
sem contar que o Eu Lírico está sempre a relembrar ao Leitor que tudo se trata de um universo auto-referente nos metalinguísticos dizeres de “a fuga arquitetural das palavras” “as engrenagens das línguas” “as abóbadas auspiciosas das línguas” “os nervos elípticos das metáforas” “o lirismo redemoinhante dos fósseis” “os sinónimos árcticos dos veleiros-parábolas” a situar o derrame de palavras enquanto poesia no próprio plano discursivo de estar vertendo poesia onde o artesão revela as tessituras exibindo sua arte onde a poesia é recuperação sonora é oralidade despejada pois “os músculos da canção são amorosamente flagelados” e “onde o colóquio tentacular do guitarrista se metamorfoseia no adágio altíssimo das travessias”
Eis as várias leituras em níveis escalonados na página em branco graficamente farta e inchada nos possíveis e impossíveis níveis de leitura de um 'lance de dados a não abolir o acaso' de um prestidigitador Mallarmé, a brincar com signos e significados, lutando 'a luta mais vã' com as palavras, disposto, tal um Drummond, a viver e morrer pela literatura em glória e vã-glória.
Obviamente que tais departamentalizações são meramente didáticas, pois o lírico o existencial o erótico o discursivo o semântico e o hermético estão lado a lado nos cataclismos da linguagem em cascata de sons e sentidos a pavimentarem estradas de sonhos para as famigeradas imagens poéticas tão ansiadas pela cosmovisão lírica de Octavio Paz a exaltar a 'primivitividade' dos signos na fala do poeta da poeta que resgatam o idioma primevo da palavra plurissignificante.
Seja poema em prosa ou prosa poética, o Estilo de L Serguilha mostra-se apto a emaranhados de sentidos na leituras possíveis ao mesmo tempo em que deve certamente ironizar a falação contemporânea o excesso dos planos discursivos as encenações verbais que não passam de retórica com suas palestras verdadeiras quedas d'águas de belos floreamentos verbais a dizerem absolutamente nada.
Querendo ou não, consciente ou não, a Voz Poética desvela o sem-sentido das verborragias cotidianas nos conceitos traçados sobre os interlocutores num jogo encenado de interlocução ou de comunicação ou de dialogismo como bem queriam um Saussurre, um Bakhtin, um Habermas ao demonstrarem de forma integral os níveis de interação entre os enunciados e os enunciadores, entre os remetentes e destinatários que se reconhecem interpenetrados pelo mesmo universo simbólico quando usam -- e também são usados -- pelas palavras.
“Embarcações” (2004)
“A Singradura do Capinador” (2005)
LUÍS SERGUILHA nasceu em 1966 em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Poeta e ensaísta, suas obras são: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Lorosa´e Boca de Sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do Vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), estes últimos em edições brasileiras. Seu livro de prosa intitula-se Entre nós, de 2000, ano em que recebeu o Prémio de Literatura Poeta Júlio Brandão. Participou em vários encontros internacionais de literatura e possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil e em Portugal, além de outros trabalhos traduzidos em língua espanhola e catalão.
fev/mar/10
(revsd: abr/12)
por leonardo de magalhaens
Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa), 34 a., é belorizontino, é escritor e tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem engavetados três volumes de poesia e três volumes de contos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seis volumes.
Tem divulgado sua contribuição ensaística de crítica literária, se especializando em autores vivos, demasiadamente vivos.
Participa como poeta oficineiro no Pão e Poesia nas Escolas, projeto criado pelo poeta Diovani Mendonça, que leva oficinas de sensibilização poética para alunos em escolas, no Barreiro / BH e Brumadinho, em parceria com a V & M do Brasil.
Atualmente persiste no curso de Letras na FALE/UFMG, com ênfase em Literatura Brasileira - Poesia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário