sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

sobre a obra do poeta Cesário Verde




Sobre “O Sentimento dum Ocidental” de Cesário Verde
e “Inferno de Wall Street” de Sousândrade


Dois Poetas Póstumos: Duas Obras Póstumas

                                                                  Alguns nascem póstumos” F. Nietzsche

Introdução


            Hoje muitos leitores, literatos e críticos reconhecem verdadeiros gênios da Poesia que foram totalmente desconhecidos em suas épocas, ignorados solenemente pelos contemporâneos, desprezados pelos confrades das letras. Poetas que estiveram bem mais adiantados em percepção e criação do que os autores da época – demasiado realistas para serem românticos, demasiadamente experimentalistas para se encaixarem em algum 'estilo de época'.

            Assim Cesário Verde e Sousândrade, o português e o brasileiro. (Também Fernando Pessoa já foi um desconhecido, tendo publicado em vida apenas “Mensagem” em 1935. A glória de Pessoa adveio das outra 'pessoas' poéticas que ele gerou, os heterônimos.)

            O que tematizaram estes poetas que foram glorificados postumamente? Basicamente a modernidade, a vida urbana, presente escandalosamente nas poéticas de dois poetas que somente foram lidos tempos depois, o Cesário Verde das ruas de Lisboa e o brasileiro Sousândrade do Guesa errante que testemunha o antro infernal de Wall Street.

            Ambos os poetas vivenciaram a experiência das cidades, da vida urbana, e do nascente consumismo – mercadorias, vitrines, modas, exibicionismo, etc. Assim é que podemos comparar com o poeta flâneur Charles Baudelaire (1821-1867), ao descrever a cidade moderna no consumismo capitalista. Percebemos que ambos os poetas utilizam a fala cotidiana, usam coloquialismos, promovem os discursos de múltiplas perspectivas – a voz dos excluídos, dos desumanizados, das vítimas do sistema social.

            As questões do urbanismo e consumismo no capitalismo foram abordadas com um olhar crítico, iconoclasta, denunciando que a modernidade – entenda-se o liberalismo burguês e o imperialismo – numa mostra do entrelaçar de obra e época, onde o momento histórico se não determina pelo menos influencia a criação autoral. Ainda mais que não se tratam de literatos alienados.

            O texto é plenamente evocativo do contexto – o que se vivia – com o crescimento das cidades, com o aumento da população, a oferta de mercadorias, o esplendor mesmerizante das vitrines, as promessas de vida fácil (em contraponto a vida rústica do campo...), as frustrações com o anonimato e a falta de privacidade. O texto evoca o contexto, enquanto este explica aquele. O autor escrevia para contemporâneos, certamente. Para nós, a poesia é um relato, um testemunho de uma época.

            Neste sentido pode-se alegar que são importantes o biografismo e o historicismo, no sentido de que há uma relação da voz lírica com o autor, o eu-lírico de “O Sentimento dum Ocidental” e o autor Cesário Verde, um cidadão inserido numa dada época num dado país.

            O autor inserido em sua época é uma verdadeira testemunha, deixa registrado para a posteridade um olhar sobre o que vivenciava, sobre os problemas que afligiram determinado momento histórico. Assim cartas entre literatos durante as guerras, as revoluções, os golpes de Estado, mas também sobre os fatos do cotidiano, que passam despercebidos para os olhares menos poéticos.



Parte 1


A poética imagética de Cesário Verde


            Interessante que tanto Cesário Verde (1855-1886) quanto Sousândrade (1833-1902) percebem a necessidade de um experimentalismo com a linguagem para retratar o mundo moderno, se Verde recorre aos cortes e colagens com as descrições que se sucedem, em Sousândrade temos uma interferência nas próprias palavras, em neologismos que fundem adjetivos e substantivos, e palavras-valises que resumem relações metafóricas.

            Podemos comparar, quanto ao tema, “O Sentimento dum Ocidental” com as “Cenas Parisienses” (“Tableaux Parisiens” em “Flores do Mal”/”Fleurs du Mal”, de Baudelaire), quanto às descrições de cenas urbanas, enquanto no quesito linguagem podemos comparar os flashes líricos-narrativos de “Inferno de Wall Street” com o episódio 7 [Éolo] de “Ulisses” (1922) de James Joyce (episódio que explicita os mecanismos da edição e impressão de jornais diários, com suas miríades de artigos, ensaios, anúncios, avisos, etc.) Trata-se de um estilo expressionista que se encaixa bem numa futurismo daquela “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa .

            Assim ocorre porque o prosaico do cotidiano transmuta-se em matéria-prima para a lírica, não mais dedicada à natureza (como acontecia no Arcadismo e no Romantismo) pois nesta lírica mais moderna temos a denúncia das condições sociais através das imagens da decadência social na cidade, com a presença de pobres, funcionários públicos, operários, além de outros marginalizados como bandidos e prostitutas.

            Aparece a figura do poeta flâneur, ou 'poeta- transeunte'. Vejamos tal 'poeta-transeunte' segundo as palavras de Maria Aparecida Paschoalin,


“Poeta-transeunte, sua poesia tem o ritmo do caminhar. Tudo é visto simultaneamente: a vitrina que expõe produtos, o mendigo que a observa; comerciantes que gritam do outro lado da rua, navios que trazem a Inglaterra em mercadorias importadas; o gás amarelo que tinge a roupa de quem passa, a mulher que se expõe na porta da casa. Cenas, fatos, impressões e sensações são aglutinados. A rua é o próprio poema: cada passo, um verso. A rua é uma cena e cada passo (verso), um fragmento de cena. Um verso de sobrepõe a outro, num ritmo sincopado de marcha. O autor consegue imprimir à frase, ao poema, o ritmo da caminhada.  Usa magistralmente o assíndeto: cada verso tem força própria, independente, mas se interliga a outro, mesmo que não haja conjunção gramatical. Os versos se sucedem e se completam, como passos da caminhada.

Sua poesia requer atenção, porque Cesário sempre usa a técnica da sobreposição. Isto é, fala de fatos, cenas e emoções de maneira simultânea. Por isso alguns críticos acreditam que essa sobreposição se identifica com o processo de corte e montagem (cada cena se apresenta como se não tivesse relação com outra) tão comum na poesia de vanguarda do século XX.”



            Sobre 'vanguardas', lembramos aqui do Expressionismo Alemão, das décadas de 1910 e 1920, com a ânsia de retratar o mundo em descrições e delírios, prismas e miragens, onde um Eu subjetivo tenta digerir o mundo objetivo da cidade, das ruas, da boemia... Há uma farta descrição de ambiente – o mundo quando atua sobre a sensibilidade em volteios de sinestesias – com paineis pintados diretamente nas ruas, nas praças, comércios, vitrines, prostíbulos, etc


            Diante do mundo destaca-se a consciência do ator social – o ser anônimo e fragmentado das grandes cidades – quando o poeta se observa e interpreta seu papel – no ato da escrita, além da 'torre de marfim', aliás, incapacitado de se abrigar na 'torre de marfim', símbolo da alienação, mas jogado no mundo (um ser-aí, diria Heidegger...),


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,”

“Semelhante a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:”

“Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;”

                                                     (“O Sentimento dum Ocidental”)


            Tal visão subjetiva de um mundo - que antes era objetivo nas lentes naturalistas – é muito semelhante àquela de um Bernardo Soares (o heterônimo pessoano autor do “Livro do Desassossego”) ao descrever de modo pessimista (digamos schopenhaueriano...) as pessoas alienadas na cidade,

“Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional.

Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.

Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme.”
[…]


“O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.”



            Assim, o poeta moderno sente que deve criar poesia a partir do cotidiano mesquinho, de modo a retratá-lo, mas assim seria poeticamente justificá-lo? Ou deve a poesia tematizar o não-existente, o utópico? Deve o poeta se isolar do mundo? Ou deve, antes, mergulhar no mundo para melhor testemunhá-lo?

            O Eu, ao surgir tematizado enquanto assunto, no poema, cria um metapoema, onde revela a incapacidade consciente do poeta em descrever o mundo observado – a realidade é sempre maior que a ficção...


E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
passeios de lajedo arrastam-se as impuras,”

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;”

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar

Eu eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;”


            O poeta deseja o Belo, mas é obrigado a descrever o feio. Procura a Beleza no mundo, mas percebe que ao redor pulula o grotesco e o miserável,

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!”

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;”


            Esta ideia do poeta na cidade e ao mesmo tempo deslocado na cidade é explícita no poema longo “Nós”, com suas 128 quadras, onde temos o contraste entre a cidade doentia e o campo saudável. (É a mesma dicotomia campo versus cidade quem encontramos na obra “A Cidade e as Serras”(póstuma, 1901) de Eça de Queirós)

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos, [...]”
                                                                (Nós, I, vv 45-47)

            É realmente um olhar deslocado, a ponto de Alberto Caeiro, o heterônimo rural de Fernando Pessoa, perceber o camponês no poeta que descreve a cidade, segundo os versos do poema III de “O Guardador de Rebanhos”,


“Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E
pôr plantas em jarros...”


            Temos um olhar de camponês sobre a cidade grande – eis o deslocamento de Cesário Verde diante da paisagem urbana. Pensemos: se ele tivesse crescido na grande cidade ele teria este olhar mais poético? Ou já teria se habituado – a ponto de encontrar assunto poético nas baladas sobre as belezas naturais? (Poetas londrinos que escrevem sobre a Natureza são um exemplo no século 19...)



continua …


Parte 2 - sobre a obra de Sousândrade



out/11


Leonardo de Magalhaens




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