terça-feira, 13 de dezembro de 2011

sobre 'Meu Pé de Laranja Lima' (1968)




Sobre “Meu Pé de Laranja Lima” (1968)
do autor José Mauro de Vasconcelos (1920-1984)


Sofrendo para deixar a infância


Continuando a série de ensaios breves sobre a literatura enfatiza a temática da infância, a vida e vicissitudes das crianças, em nosso cânone brasileiro, onde já abordamos “Menino de Engenho” e “Capitães da Areia”, vamos enfatizar aqui a obra (que foi rotulada de infanto-juvenil) “Meu Pé de Laranja Lima” que já foi lida e relida, tema de sala de aula, exposta na mídia através de filme e novela, a ponto de ser referência para uma geração de leitores (e até para os que não leram).

Algumas semelhanças. Tanto “Menino de Engenho” quanto “Meu Pé de Laranja Lima” são narrados em 1ª pessoa, como se fosse a voz infantil. Mas são, na verdade, memórias de infância. A visão não é mais de uma criança. Pois os autores já adultos dedicam-se a narrar suas vidas de aventuras e desilusões na meninice. Uma diferença: em “Capitães da Areia” temos um narrador em 3ª pessoa, não uma voz adulta que rememora a própria infância. O narrador mostra um painel, um quadro abrangendo a vida de várias crianças.

Em “Meu Pé de Laranja Lima” temos o olhar de Zezé em relação aos irmãos e irmãs, o que acontece, o que os adultos dizem e fazem, as primeiras relações de amizade, os fracassos e frustrações, as separações e as perdas. Zezé um menino muito curioso, até precoce, diz os adultos. Quer saber sobre tudo, e não hesita em perguntar. Quer saber o que é 'idade da razão'. Vai perguntar ao irmão mais velho, Totoca.

Idade da razão pesa?
Que besteira é essa?
Tio Edmundo quem falou. Disse que eu era 'precoce' e que ia entrar logo na idade da razão. E eu não sinto diferença.” (p. 14, cap. 1, P. 1)

Zezé pergunta tanto que o irmão até se chateia. O excesso de curiosidade, de querer 'entender' o mundo, é um sinal de menino precoce, adiantado em relação às crianças que apenas se limitam a brincar, distraírem-se.

Mas vamos deixar de pensar coisas difíceis. Que você goste de aprender com ele [o tio Edmundo], vá lá. Mas comigo, não. Fique igual aos outros meninos. Diga até palavrão, mas deixe de encher essa cabecinha com coisas difíceis. Senão, não saio mais com você.” (p. 15)

Quando o mundo real é tedioso, quando tudo é limitado, qual a solução? A fantasia. O quintal se torna um zoológico, a ida para escola é uma viagem. O mundo é grande e vasto – descobri-lo detalhe a detalhe é uma aventura. E também uma porta de entrada para os desencantos.



O menino Zezé está naquele momento de transição de criança para jovem, a fase infanto-juvenil, quando as coisas parecem confusas, começamos a notar as contradições entre o que os adultos dizem e o que eles fazem. A criança sabe que está num estágio provisório, que amanhã será um jovem, depois um adulto. Neste estado larvático ela será a curiosidade encarnada. Tudo é emocionante, todas as histórias são sensacionais.

Eu era doido por histórias. Quanto mais difíceis, mais eu gostava.

Alisei o meu cavalinho, bastante tempo e depois levantei a vista para Tio Edmundo e perguntei:

-A semana que vem, o senhor acha que eu já cresci?...” (p. 21)

Mas quais as condições da família de Zezé? Na narrativa temos o momento em que a personagem Totoca faz um resumo – tanto para o menino quanto para nós leitores. Trata-se de uma família modesta de proletários.

-Você que quer saber tudo não desconfiou o drama que vai lá em casa. Papai está desempregado, não está? Ele faz mais de seis meses que brigou com Mister Scottfield e puseram ele na rua. Você não viu que Lalá começou a trabalhar na Fábrica? Não sabe que Mamãe vai trabalhar na cidade, no Moinho Inglês? Pois bem, seu bobo. Tudo isso é pra juntar um dinheiro e pagar o aluguel dessa nova casa. A outra, Papai já está devendo bem oito meses. Você é muito criança para saber dessas coisas tristes. Mas eu vou ter que acabar ajudando missa para ajudar em casa.” (p. 16, cap. 1, P. 1)

O menino logo percebe as condições da precária economia familiar, aquela família proletária que luta para sobreviver no mundo da exploração do trabalho. Os filhos de trabalhadores desde crianças são trabalhadores explorados,

Ela [a mãe de Zezé] falava com uma voz cansada, cansada. E eu estava com muita pensa dela. Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis anos de idade quando fizeram a Fábrica que puseram ela trabalhando. Sentavam Mamãe bem em cima de uma mesa e ela tinha que ficar limpando e enxugando ferros. Era tão pequenininha que fazia molhado em cima da mesa porque não podia descer sozinha... Por isso ela nunca foi à Escola e nem aprendeu a ler. Quando eu escutei essa história dela fiquei tão triste que prometi que quando fosse poeta e sábio eu ia ler minhas poesias para ela...” (p. 31, cap. 2, P. 1)

E também, “A pobreza lá me casa era tanta que a gente desde cedo aprendia a não gastar qualquer coisa. Tudo custava muito dinheiro. Era caro.” (p. 146, cap. 5, P. 2)

Na época do Natal (entenda-se: do consumismo) é bem nítida a consciência da desigualdade social. Por que no Natal, o menino Jesus é bom para uns – com muita fartura na mesa – e ruim para outros tantos – que passam por privação e miséria – se todos são 'filhos de Deus' ? Será que é só os ricos é que 'prestam'?

-Pois então. Todo mundo é bom na família. E por que o Menino Jesus não é bom pra gente? Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de coisas. Na casa dos Villas-Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se fala...

Pela primeira vez eu vi que Totoca estava quase chorando.

-Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis nascer pobre para se mostrar. Depois Ele viu que só os ricos é que prestavam... Mas não vamos mais falar disso. Pode ser até que o que eu falei seja um pecado muito grande.” (pp. 48-49, cap. 3, P. 1)


A tristeza do Natal dos pobres. Será que Jesus só traz boas-novas para os ricos...? Diante da desigualdade, as crianças perdem as ilusões... “Ela [a irmã Glória] falava isso e olhava para a gente. Ela sabia que naquele momento não havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma tristeza aos pedaços.” (p. 50) Com um Natal tão triste, o menino acaba desabafando e se arrependendo, Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza. Sem poder me conter exclamei: -Como é ruim a gente ter pai pobre!...” (p. 51)

Assim, o menino só consegui ofender o próprio pai, uma vítima, não um réu. O irmão Totoca defende o pai e acusa o menino insensível, que apensa é outro frustrado,

-Malvado. Sem coração. Você sabe que Papai está desempregado há muito tempo. Foi por isso que ontem eu não podia engolir, olhando o rosto dele. Um dia você vai ser pai e vai saber o quanto dói uma hora dessas.” (p. 51)

O menino passa a sofrer – ainda que este sofrimento seja narrado pelo adulto, o Autor – o mesmo drama de consciência daquele menino do Engenho (na obra de José Lins), ao deparar-se com as contradições entre o desejo e a limitação, entre a satisfação e resignação. Em belas frases ele esboça este sentimento, ainda mais em remorso ao ter magoado o pai,

Vazio como o meu coração que flutuava sem governo.” (p. 52)

A rua estava cheia de crianças exibindo e comparando os brinquedos. Aquilo me abateu mais. Todos eram meninos bons. Nenhuma daquelas crianças nunca faria o que eu fiz.” (p. 52)

Não tomara nem café e não sentia nenhuma forme. Minha dor era muito maior que qualquer fome.” (p. 52)

Mas finalmente, o menino pode se reconciliar com o pai, que sabe que o filho é mesmo um 'emotivo',

-Não chore, meu filho. Você vai ter muito que chorar pela vida, se continuar um menino assim tão emotivo...

-Eu não queria, Papai... eu não queria dizer... aquilo.” (p. 59)

É um menino sensível, emotivo, sim. Mas não evita que seja tão ardiloso, trapalhão, criador de confusão, ao armar as brincadeiras mais sacanas contra os vizinhos indefesos. Aliás, isso é próprio de crianças, e menino que não faz travessura só pode estar doente. Criança que não rouba fruta e flor na casa do vizinho? Criança que não monta armadilha pra passarinho? Criança que não apronta surpresas para os irmãos?

Mas para alegrar e distrair o menino aparece o cordelista e cantor popular Ariovaldo, com sua fala baiana, ao entoar as cantigas do povo. “Aquela maneira bonita de falar as palavras quase cantando me deixava fascinado.” (p. 82)

Bem podemos aqui abrir um tópico, do tipo “amizade de adulto e criança” e não faltariam paradigmas! Bem podemos nos lembrar aqui do clássico “Pequeno Príncipe” (Le Petit Prince, 1943) do autor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), onde é o encontro entre um adulto e uma criança que forma o núcleo da narrativa.

Em “Pequeno Príncipe” temos a perspectiva do adulto, o aviador que se perde no deserto. Em “Meu Pé de Laranja Lima” temos a perspectiva da criança. O menino observa o comportamento adulto e tenta agradar no sentido de receber um pouco de atenção – e esta atenção é para ele o mais importante.

Vejamos a amizade entre Zezé e o cantor Ariovaldo, onde o cantor logo percebe que o menino pode ajudá-lo na venda dos folhetos com composições populares,

“-Sabe, pinéu. Você está me dando dando sorte. Eu tenho uma fileira de menino buchudo e nunca tive a ideia de aproveitar um para me ajudar.” (p. 86) e Pegou minha mão entre suas mãos calejadas para ficarmos amigos até morte.” (p. 86)

Quando não tem um amigo de verdade ao alcance da mão, alguém para dar-lhe atenção tão necessária, o menino Zezé adota um pé de laranja lima no fundo do quintal e passa a considerá-lo um amigo – e trocar confidências com o 'fiel' vegetal, ali sempre à disposição... Zezé e o pé de Laranja Lima são apresentados pela irmã Glória, quando passeiam pelo quintal da nova moradia,

-Mas que lindo pezinho de Laranja Lima! Veja que não tem nem um espinho. Ele tem tanta personalidade que a gente de longe já sabe que é Laranja Lima. Se eu fosse do seu tamanho, não queria outra coisa.

-Mas eu queria um pé de árvore grandão.

-Pense bem, Zezé. Ele é novinho ainda. Vai ficar um baita pé de laranja. Assim ele vai crescer junto com você. Vocês dois vão se entender como se fossem dois irmãos. Você viu o galho? É verdade que o único que tem, mas parece até um cavalinho feito pra você montar. (p. 32, cap.2, P.1)

Zezé fala com a árvore e parece ouvir as respostas! Como se conversa muitas vezes com um alter-ego, um amigo invisível...

Não resisti e acabei contanto o meu fiasco para Minguinho.” e “Minguinho ouvira tudo, na certa. Como poderia então deixar de contar? Ele escutou, revoltado, e só comentou quando eu acabei numa voz zangada.” (p. 102, cap. 1, P. 2)


E quando não conversa com uma árvore, o menino se entrega a leitura de gibis de aventuras, aqueles de um Tom Mix ou Buck Jones, quadrinhos e filmes de faroeste (Far West) daquela época, que alimentava a mente das crianças neo-colonizadas aqui da América Latina com tiroteios, caça ao índio, crimes de Billy the Kid.

Mas o que se pode fazer? Tirar os sonhos das crianças? Claro que não. Assim pensa Zezé em relação ao seu irmãozinho, que vê no quintal um belo zoológico. “A gente não deve tirar as ilusões de uma criança.” (p. 104). Afinal, é época de se divertir, de aproveitar a mil brincadeiras que animam a criançada.

Na nossa rua havia tempo de tudo. Tempo de bola de gude. Tempo de pião. Tempo de colecionar figurinhas de artistas de cinema. Tempo de papagaio, o mais bonito de todos os tempos. Os céus ficavam por todos os lados repletos de papagaios de todas as cores. Papagaios lindos de todos os feitios. Era a guerra no ar. As cabeçadas, as lutas, as laçadas e os cortes.” (p. 105)

Tanto que , quando está feliz, em brincadeiras, o menino parece esquecer um pouco a árvore de laranja lima, que simboliza aqui os momentos de solidão, de recolhimento, a ponto de conversar sozinho – e julgar que dialoga com uma árvore.

E a vidinha da gente e da rua se desenvolvia normalmente. Viera o tempo do papagaio e 'rua para quem te quer'. O céu azulado se estrelava de dia das estrelas mais bonitas e coloridas, no temo de vento deixava de lado um pouco o Minguinho ou só o procurava quando me colocavam de castigo depois de uma bela sova. Aí não tentava fugir mesmo porque uma surra muito junto da outra doía pra burro.” e, em dado momento, chega a tecer comparações entre si mesmo e o pé de laranja lima, “Por sinal, Minguinho dera uma esticada danada e logo, logo estaria dando flores e frutos para mim. As outras laranjeiras demoravam muito. Mas pé de Laranja lima era 'precoce' como tio Edmundo dizia que eu era. Depois ele me explicou o que aquilo queria dizer: das coisas que aconteciam muito antes das outras acontecerem. N final eu acho que ele não soube explicar direito. O que queria dizer era simplesmente tudo que vinha na frente...” (pp. 108-109, cap. 2, P. 2)


Mas logo Zezé faz amizade – e com outro adulto. Agora é o Portuga Manuel, um senhor que morria de ciúmes de seu caro muito elegante (pelo menos para os padrões da época...). E Zezé recebe a honra de poder viajar no carro que antes tanto admirara, a ponto de ficar com raiva do ciumento português. Uma honra devida a um ferimento no pé – que o menino agora deve se mostrar muito corajoso.

Muita coisa sabemos da amizade graças aos relatos de Zezé para o atento 'Minguinho', que sempre deve saber de tudo, mas que fica até meio enciumado com os progressos da nova amizade do amiguinho, que somente procura a árvore quando solitário.

Mesmo assim Minguinho continuou emburrado.

-Olha Minguinho, não precisa ficar desse jeito. Ele é meu maior amigo. Mas você é o rei absoluto das árvores, como Luís é o rei absoluto dos meus irmãos. Você precisa saber que o coração da gente tem que ser muito grande e caber tudo que a gente gosta.

Silêncio.

-Sabe de uma coisa, Minguinho? Vou jogar bola de gude. Você anda muito enjoado.” (p. 123, cap. 3, P. 2)


E estas crises de ciúme da árvore? O menino tem toda a atenção da árvore – mas pode confiar numa árvore? Ora, para haver amizade deve haver confiança. Mesmo que seja uma amizade um tanto 'secreta', como aquela com o Portuga. “Tínhamos jurado, de morte, que ninguém deveria saber da nossa amizade. Primeiro, porque não queria ar carona à garotada. Quando vinha gente conhecida, ou mesmo Totoca, eu me abaixava. Segundo, porque ninguém devia atrapalhar o mundo de conversas que a gente tinha para conversar.' (pp. 123-124)

A amizade realmente acalma o menino, evita a solidão, e as travessuras – recurso para chamar a atenção.

E os dias andaram sem pressa e sobretudo muito felizes. Até que lá em casa começaram a notar a minha transformação. Eu já não fazia tantas travessuras e vivia num mundinho de fundo de quintal. Verdade que algumas vezes o diabo vencia os meus propósitos. Mas já não dizia tantos palavrões como antigamente e deixava em paz a vizinhança.” (p. 125)

Ainda continuam as brigas com os irmãos – pois o lar mais parece um ringue quando a carência é muita – e as repreensões dos pais – que descontam a miséria em surras no filho viciado em travessuras. Pois de surra em surra o menino vai se resignando, vai perdendo a espontaneidade, vai se adequando ao mundo adulto.

Meu rosto quase não se podia mexer, era arremessado. Meus olhos abriam-se para se tornar a fechar com o impacto das bofetadas. Eu não sabia se devia parar ou se tinha de obedecer... Mas na minha dor tinha resolvido uma coisa. Seia a última surra que eu levaria, seria a última mesmo que morresse para isso,” (p. 141, cap. 4, P.2)

Depois da surra, a maior de todas, Zezé perde a confiança... “Mas faltava qualquer coisa. Qualquer coisa importante que me fizesse voltar a ser o mesmo, talvez a acreditar nas pessoas, na bondade delas. Eu ficava tão quietinho, sem vontade de nada, sentado quase sempre perto de Minguinho, olhando a vida, perdido no desinteresse. Nada de conversar com ele nem de ouvir as suas histórias.” (p. 143, cap. 5, P. 2)

E "A realidade era que eu não conseguia deixar de esticar a minha dor de dentro. De bichinho batido maldosamente, sem saber por quê...” (p. 144)

O menino começa a achar que realmente é mau, é endiabrado mesmo, assim confessa ao português, “Eu sei por quê. Eu não presto mesmo. Sou tão ruim que quando chega o Natal acontece aquilo: Nasce o Menino Diabo em vez do menino Deus!...” (p. 147). O adulto entende sob que pressão vive o menino, sempre que ele exagera em travessuras, “Besteiras, tu és um anjinho ainda. Podes ser um tanto traquinas...” (p. 147) ao perceber o nível de consciência do menino, que assim sofre, “Senhora de Fátima! Como pode uma criança assim entender e sofrer com os problemas de gente grande. Nunca vi !” (p. 148) e se preocupa com o apego com o menino tem pelo amigo, “Santo Deus! Nunca vi uma alminha tão sedenta de ternura como tu. Mas não devias te apegar tanto a mim, sabes?...” (p. 163)

Justamente este apego entre o menino e o adulto vai levar ao aspecto trágico da narrativa: a separação brutal: a morte de um dos amigos. Seja a mudança de Zezé ou a viagem de Manuel ou a morte de Manuel – faltava mesmo uma tragédia para coroar a obra. Um dia qualquer um súbito acidente – a locomotiva atinge e arrasta o carro elegante do Portuga. A brutal separação é o que faltava para atordoar o menino – que com a dor transita da infância para a pré-adolescência.

Nunca mais iria ver o meu Portuga. Nunca mais; ele se fora. Fui andando, fui andando. Parei na estrada onde ele deixou que o chamasse de Portuga e me colocou de morcego. Sentei num tronco de árvore e me encolhi todo, encostando o rosto nos joelhos.” (p. 172, cap. 7, P. 2)

Em sua dor, o menino que aprende, com a dor, que enfrentar a vida é aceitar surras, derrotas e perdas, chega a culpar o Menino Jesus – aquele mesmo do Natal que só acontece para os ricos... (A necessidade que temos de culpar alguma suposta “Providência” que não nos acolhe e protege...)

-Você é malvado, Menino Jesus. Eu que pensei que você ia nascer Deus essa vez e você faz isso comigo? Por que você não gosta de mim como dos outros meninos? Eu fiquei bonzinho. Não briguei mais, estudei as lições, deixei de falar palavrão. Nem bunda mais eu falava. Por que você faz isso comigo, Menino jesus? Vão cortar o meu pé de Laranja Lima e nem por isso eu me zanguei. Só chorei um pouquinho... E agora... E agora... Nova enxurrada de lágrimas.” (p. 172)

e mais,

E eu não me esquecia dele. Das suas risadas. Da sua fala diferente. Até os grilos lá fora imitavam o réquete, réquete da sua barba. Não podia deixar de pensar nele. Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de virar a cabeça no travesseiro.” (p. 174)


O menino sofre no corpo a dor da perda, em sua fragilidade ele adoece, e a vizinhança fica sem as travessuras do menino endiabrado – na verdade, um menino apenas um tanto quanto ativo, em busca da atenção dos adultos, nem que seja de forma pouco conveniente ou amistosa. Os adultos o consideram muito 'sensível' – é o diagnóstico do médico. “Já tentamos de todas as maneiras, mas ele não acredita. Para ele o pezinho de laranja é gente. É um menino muito estranho. Muito sensível e precoce.” (p. 175) e até preferem as encrencas do menino em lugar daquele sossego e prostração. “Você precisa ficar bom, Zezé. Sem você e suas diabruras a rua fica uma tristeza.” (p. 175)

O tom de desfecho do livro é funesto, é anticlímax. Aqui ele nada tem de infanto-juvenil no sentido de ser leve e lúdico. Os temas são de adulto – desânimo, perda, vontade de morrer. É a voz da ex-criança que fala aqui. Daí a precocidade do menino – ele tem pensamentos e dúvidas de jovem, não de criança,

Mas de que me servia uma mangueira velha, sem dentes, que não sabia mais dar manga? Até meu pé de Laranja Lima logo, logo perderia o encanto e tornar-se-ia uma árvore como outra qualquer... Isso se dessem tempo ao pobrezinho.

Como era fácil para uns morrer. Era só vir um trem malvado e pronto. E como era difícil para mim ir para o céu. Todo mundo estava segurando minhas pernas para eu não ir.” p. 176

e um tom doentio (que somente encontramos paralelo em obras de autores adultos e para adultos), “A fraqueza ia me dando uma sonolência contínua. Não sabia mais quando era dia ou noite. A febre ia cedendo e os meus tremores e agitamentos começavam a se distanciar.” (p. 177) num momento que julgaríamos fatal, de desenlace final, o menino aprende o que é deixar o casulo – e a infância – rumo ao mundo adulto, assim como o pé de laranja lima, em flor, no início da vida adulta – a de dar frutos.

Mas pouco dias depois acabou. Estava condenado a viver, viver. Numa manhã, Glória entrou radiante. Eu estava sentado na cama e olhava a vida com uma tristeza de doer.

Em suas mãos existia uma florzinha branca.

-A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas.” (p. 183)


Assim a floração do pé de laranja lima é um símbolo da própria maturação do protagonista, quando o menino encara seu 'fim da infância', sua adaptação ao mundo adulto. E que o menino deve ainda saber cultivar sonhos ao conviver com Luís, seu irmão menor – que é quem agora acredita que o quintal é um jardim zoológico. Assim Zezé precisa cultivar as ilusões nem que seja para não destruir aquelas do irmãozinho. Para viver ele, o ex-menino, precisa aceitar que não acredita – que perdeu aquelas crenças de menino. “Era difícil recomeçar tudo sem acreditar nas coisas.” (p. 184)

Saber que o fundo do quintal nada reserva de aventuras. “Sorri com amargura. A selva do Amazonas era apenas meia dúzia de laranjeiras espinhudas e hostis” (p. 185) Viver sem ilusões, sem os mitos e sonhos da infância, tendo que aceitar agora o mundo de dúvidas, responsabilidades, desejos e insatisfações, que é tecido e rasgado pelos adultos, que são ainda desconhecidos, assim como o menino desconhece o pai, ou vê o pai em outro afeto, até o dia em que ele mesmo se tornar um pai.


dez/11


Leonardo de Magalhaens






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