terça-feira, 6 de dezembro de 2011

continua o ensaio sobre Sousândrade...

continua...


Sim, as figuras religiosas, certamente. As classes sacerdotais – de todas as religiões organizadas – também 'jogam' nas Bolsas de Valores em todo o mundo. Os sacerdotes (que se dizem 'não deste mundo') recebem ofertas, dízimos, detêm propriedades – o Vaticano é um Estado, lembremos – e administram fortunas, que raramente são taxadas, pois os Estados-nações quando laicos mantêm a 'liberdade religiosa' – qualquer cidadão 'iluminado' pode fundar uma seita, religião, confissão mística e fazer fortuna, em nome de alguma Divindade na moda,

92 (Maus-pecadores bons-apóstolos, iluminados às crenças de
remissão e ressurreição dos mortos, vendo JERRY Mc
CAULAY e revendo FROTHINGHAM no 'Christ would
not suit our times':)

-Peccavi diz um, e transforma
Pagodes em templo cristão;
Num templo o outro : cruz
Com Jesus!
'Cristianismo é superstição!'

e


96 (Fogueiros da fornalha reduzindo o pecado original a fórmulas
algébricas e à 'Nova Fé' ('moral rápido trânsito') o
'IN GOD WE TRUST' dos cinco cents:)

-Indústria, ouro, prática vida,
Go ahead! Oh, qual coração! …
A este ar, vai vital
A espiral,
Brisa ou flato ou Bull-furação!

também,

106 (Procissão internacional, povo de Israel, Orangianos, Fenianos, Budas,
Mormons, Comunistas, Niilistas, Farricocos, Railroad-Strikers,
All-brokers, All-jobbers, All-saints, All-devils, lanternas,
música, sensação; Reporters, passa em LONDRES o
assassino da RAINHA e em PARIS 'Lot'
o fugitivo de SODOMA:)

No Espírito-Santo d'escravos
Há somente um Imperador
No dos livres, verso
Reverso
É tudo coroado Senhor!


e mais, usando o nome da Divindade para conseguir mais 'fiéis' e assim ampliar o 'crédito' no Paraíso, digo, no banco mais próximo, e ampliar os negócios, quando 'igrejas' compram salas de cinema, emissoras de rádio e/ou de televisão, veículos de propaganda, empresas de turismo, tudo para a maior glória do Senhor (que certamente deve ganhar uma 'comissão' pelo uso exaustivo do Santo Nome...),


128 (REV. BEECHER, vendo subscrição antes 'gladdening the sufferers'
e sensação após 'saddening the glad,' não crê mais na
palavra, 'recomenda sabão à congregação' e monta
em 'seu bicycle':)

-Some stain is in that new business
Que pear-soap não pode lavar!
Washerwomen 'nodoam'
E entoam:
'Herald-Flood-Fund,' a ensaboar! …

e ainda,

145 (HERALD advogando a causa chim-comercial:)
-In-God-we-trust 'not worth its price,
A great swindle is silver dollar'!
Se em Deus nós cremos,
Descremos:
Amor pagado há mor pagar ….


Além dessas cenas da ambição ao vivo e a cores, temos a visão do Brasil nas mentes ávidas do imperialismo europeu (logo logo suplantado pelo imperialismo ianque), sim, pois é um Brasil que promete em termos de lucro, muito lucro – riquezas naturais, comércio fácil, turismo sexual, políticos corruptos, Elites vendidas, etc. Em suma, um paraíso tropical.

Uma ou outra mudança de regime ou governo – seja monarquia ou república, parlamentarismo ou presidencialismo – um ou outra alternância de senhores feudais e suas oligarquias, mas tudo continua na mesma – a mesma exploração da mão de obra, a mesma desigualdade social, o mesmo desmando - todas as 'revoluções' aqui são feitas de cima-para-baixo, em negociatas, nos bastidores, quando as Elites se alternam no poder, ora o 'café', ora o 'leite', ora o 'minério', trocando apenas os nomes dos gerentes da ordem estabelecida por aqueles que lucram sempre, e lucram mais,


44 (Salvados passageiros desembarcando do ATLÂNTICO; HERALD
deslealmente desafinando a imperial 'ouverture':)

-Agora o Brasil é república;
O Trono no Hevilius caiu...
But we picked it up!
-Em farrapo
'Bandeira Estrelada' se viu.

e


51 (Detectives furfurando em MAIN-BUILDING; telegrama
submarino:)

-Oh! Cá está 'um Pedro d'Alcântara!
O Imperador stá no Brasil.'
-Não está! Cristova
É a nova,
De lá vinda em Sete de Abril !

também,


73 (Fletcher historiando com chaves de São Pedro e pedras de São Paulo:)

-Brasil é braseiro de rosas;
A União, estados de amor:
Floral... sub espinhos
Daninhos;
Espinhal... sub flor e mais flor.




A mistura de cenas e personagens, a interpenetração de idiomas, a pluralidade de falas, a miscigenação de culturas, o coloquialismo irônico, a exibição de tipos e caricaturas, o excesso de figuras e situações, o descritivismo em caleidoscópio, tudo isto cria uma atmosfera de ópera-bufa, de farsa, de teatro de revista, com uma até grotesca exploração dos limites da linguagem e da representação, soando surreal tanto aos brasileiros quanto aos próprios yankees retratados, caricaturados. A linguagem torcida causa uma série de cacofonias propositais, que destoam aos lusofalantes e aos anglofalantes.

Quanto ao efeito que a sucessão de recortes - e colagens e montagens – provocam, podemos comparar ao estilo de Luiz Ruffato no romance “Eles Eram Muitos Cavalos” (2001) onde se tece uma colcha de retalho de descrições, flashes do cotidiano na capital paulista, numa espécie de painel, com uma montagem cubista de corte-e-colagem com o feeling que movia um Sousândrade, principalmente na tessitura imagética-dialógica de “Inferno em Wall Street”. Somente o cenário é outro, é a gigantesca metrópole São Paulo,

 
?quem  é  esse  homem,  meu  deus,  cara gorda ponte-móvel barriga-de-barril roupas desleixadas sem amigos
que gasta as manhãs de sábado lavando o cachorro e o quintalzinho latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no palito
que gasta as tardes de domingo vendo futebol na televisão latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no palito 


A cadeia de eventos se sucede quando a vontade até obsessiva do Eu-lírico é revelar - o mais instantaneamente - o mundo num panorama, aquela ânsia do heterônimo Álvaro de Campos de estar-em-todos-os-lugares-ao-mesmo-tempo, 'sentir tudo de todas as maneiras', quando a poesia quer ser testemunha de uma vida de fragmentos, impossibilitada de totalizar um mundo fugidio, um quebra-cabeça imenso que chamamos de vida moderna, um pesadelo-polvo tentacular que nos abafa no anonimato.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

(“A Passagem das Horas”)


Não vamos aqui detalhar os caminhos (e descaminhos) do longo e apoteótico “Inferno em Wall Street”, assim nada de resumos ou explicações, não temos tal pretensão. Aliás, tudo isto já foi trabalhado (e retrabalhado) pela erudição dos irmãos Campos no histórico livro “ReVisão de Sousândrade”, de 1964, reeditado em 1982. É uma leitura linguística e historicista da obra do então re-descoberto poeta maranhense, originalíssimo, que passou literariamente despercebido na terra do lugar-comum, da mesmice, e da vã literatura.


out/11

Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com





Referências


CAMPOS, Augusto. ReVisão de Sousândrade: textos críticos, antologia, Glossário, biobibliografia. 2ª ed. rev. e aum. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1982.

VERDE, Cesário. Literatura Comentada. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Maria Aparecida Paschoalin. São Paulo: Abril Educação, 1982.

RUFFATO, Luiz. Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001


Internet

O Livro do Desassossego
Domínio Público

Arquivo Pessoa


Eles eram muitos cavalos
de Luiz Ruffato
trechos

sobre a poética de Sousândrade

The Wall Street Inferno

mais sobre Sousândrade



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