quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

sobre SERAFIM PONTE GRANDE - de Oswald de Andrade



sobre “Serafim Ponte Grande” (1933)
do poeta e escritor brasileiro
Oswald de Andrade ( 1890-1954)


A visão do Brasil na saga de Serafim


Visões do Brasil

Enquanto um dos mais ativos representantes da geração modernista no início do século 20, o poeta e escrito Oswald de Andrade lançou um olhar irônico sobre a realidade brasileira, numa visão carnavalizada do que seria o Brasil – 'que país é este?' - no formato de uma literatura feita de fragmentos e poemas-piada.

Afinal, a visão de Brasil sempre foi mutável. Antes do achamento (ou descobrimento) os europeus já tinham uma 'visão do paraíso', do que julgavam encontrar aqui nestes trópicos. O historiador Sérgio Buarque de Hollanda trata desta 'visão edênica' em livros tais como “Visão do Paraíso” e “Raízes do Brasil”, que apresentam todo um 'imaginário' do período histórico.

Na obra “Visão do Paraíso” (1959), o historiador Sérgio Buarque de Holanda descreve as esperanças dos navegadores europeus quanto a um suposto “Éden” na América, onde 'bons selvagens' viveriam num “paraíso terrestre”, o “horto das delícias”, uma “terra sem mal”, semelhante aquele da descrição bíblica. Eruditos e religiosos seguiam em debates acalorados sobre a localização de tal Paraíso, aquele El Dorado que fazia delirar os navegantes, aquelas civilizações sem pecado, vivendo em integração com a Natureza.

Justamente a exuberância da Natureza seria uma das marcas da terra brasileira, enquanto local de exploração de novos produtos. Pau-brasil, madeira-de-lei, frutos tropicais, escravos indígenas. Uma exuberância de flora e fauna que não era desabitada, ao contrário, era povoada por homens e mulheres estranhos à civilização, ou seja, a cultura europeia. Viviam em sensível integração com o mundo natural. O fato de tais populações não desenvolverem artigos de cultura – propriamente pólvoras e armas de fogo  –é que possibilitou aos europeus – portugueses e espanhóis, principalmente – o domínio e a colonização das 'novas terras' num época de Grandes Descobrimentos (a expansão do mercantilismo de base capitalista).

Atualmente encontramos toda uma bibliografia de obras que procuram reconstruir - de forma histórica ou ficcional – as origens do Brasil colônia. A mescla de História e jornalismo celebrizou as obras de Eduardo Bueno na cultura pop, tais como “A Viagem do Descobrimento” e “Náufragos, Traficantes e Degredados”; além do romance “Terra Papagalli” de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta que re-cria as experiências de um grupo de degredados antes da expedição de Martin Afonso (1530), quando a Coroa portuguesa resolveu se apossar realmente do 'novo mundo' tropical ameaçado por 'hereges' holandeses, ingleses, franceses, além dos concorrentes espanhóis.

Também lembramos de um conto de Fernando Bonassi, “15 Cenas de descobrimento de Brasis”, de 1999, onde a história nacional sofre todo um processo de des-construção. Devido a fragmentação não se permite uma 'colagem', daí o uso do plural “Brasis”, pela pluralidade de decepções que cerca o sonho do “País do Futuro”, aquele do “Ame-o ou deixe-o”, nos ápice das miragens e “milagres econômicos”. Tudo se confunde, o anti-herói, a prostituta, a filhas prostituídas do índio, os devotos e os homens-de-negócio. A des-construção abrange as personagens e o tempo, destruindo os traços de causa-e-efeito, as 'causalidades' de uma 'sucessão temporal', um suposto “processo histórico”, incapaz de explicar porque uma terra tão promissora se tornou tão frustrante, tão excludente e miserável.
                                                                                                                                 
Enquanto se espera uma narração histórica linear, com os fatos expostos em ordem cronológica, com datas, eventos, interpretações, em espaços definidos, os fragmentos do conto acabam por se desviar de qualquer explicação ou ordenamento histórico. As cenas se sucedem sem ligação, arrasando todos os projetos de construção de uma Nação, explicitando as misérias, a exploração dos indígenas, a prostituição infantil, o cidadão entregue às crenças e crendices, ausência de cordialidade, a incapacidade de ‘pensar coletivo’ (quando cada um se julga perseguido por um suposto destino, assim individualizando os problemas), ou seja, em resumo, uma impossibilidade de ascensão nacional, o Brasil ainda pensando enquanto Colônia. É o que rompe toda a cronologia.


Modernismo: tradição, folclore e vanguardas


Justamente este rompimento de cronologia – ou saltos cronológicos – são marcantes na obra modernista de Oswald de Andrade, “Serafim Ponte Grande”, escrita em 1928, e publicada em 1933. Não há exatamente uma linearidade, uma narração contínua, um narrador onisciente ou personagem que coordene os fatos. As múltiplas formas de discurso – ou gêneros – são apresentados, despejados sobre o olhar do leitor, que terá a missão de decodificar o 'enredo'.

Paródias de cartas, telegramas, receitas culinárias, peças teatrais, narrativas de guerra ou de viagens, diários de bordo, glossários, óperas bufas, literatura erótica, folhetins, etc, com experimentalismos de linguagem – neologismos, transtornos sintáticos, termos tupy-guarani, recortes-montagem (ao estilo cubista), absurdos cronológicos e geográficos, em suma, o autor pretende seguir aquela ideia do futurista russo Maiakovski, para quem “não há arte revolucionária sem forma revolucionária.”

E não apenas Oswald de Andrade apreendeu esta 'forma revolucionária'. Muitos nomes do Modernismo se destacam nas revoluções de forma e conteúdo – novas temáticas com novas formas de apresentar os temas – de modo que pretendem 'atualizar' a literatura nacional, não mais se referendar por artes estrangeiras. Não mais importar, mas exportar – como escreveu Oswald no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de 1924, “Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.”

A busca por uma nova 'forma' está presente em vários autores da época, seja em prosa ou poesia. Qual linguagem seria a 'brasileira'? Uma fala criada na mestiçagem da expressão lusitana, do coloquial africano e indígena? Explica-se assim a fartura de termos e expressões tupy-guaranis? De comes e bebes de origem afro? De danças e rituais dos povos nativos?

Parece haver uma mescla de 'coisas da terra' com 'vanguardas', onde um romance (ou 'rapsódia') “Macunaíma” (1928), do também modernista Mário de Andrade, apresenta-se numa miscigenação de lendas indígenas, 'causos' cablocos, lendas caipiras, retórica parnasiana, herói picaresco, em suma, um desordenamento carnavalizado do que seja 'cultura nacional'. O autor erudito transveste-se de 'leitor das tradições' – o mundo do folclore – em nome de um lançar-se ao futuro – as 'vanguardas'.

Em comparação, “Serafim” é mais modernista – tanto na forma quanto nas temáticas – do que “Macunaíma” - que tem certa inovação estilística na forma, mas o 'tema' é baseado em (recuperados de) lendas indígenas, um patrimônio cultural conservado oralmente ao longo de gerações, e que foi registrado mais recentemente. A forma é basicamente uma 'costura' de 'releituras', quando não paródias, das lendas. Assim é uma forma nova para uma série de temas tradicionais (visto que folclóricos).

Assim também o Brasil do futuro parece estar num passado a ser resgatado – ou numa região interiorana – assim as personagens folclóricas, as narrativas da Colônia, as lendas do Pantanal  ou da Amazônia, dos igapós e das chapadas, passam a coabitar os textos mais 'vanguardistas'. Nossos modernistas não pensam definitivamente como o futurista italiano Marinetti, ao abolir o passado, em seu “Manifesto Futurista”, 1909 (“Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo”)

Basta uma leitura das obras modernistas de vanguarda – no primeiro período do Modernismo – para perceber o quanto o tradicional-folclórico se mescla ao vanguardista-moderno. É o caso do 'verdeamarelismo' com toda uma face de 'neo-indianismo' (ou a questão do 'tupy or not tupy', como diria Oswald) ou de uma 'língua não-catequizada'. Vejamos. “Cobra Norato” (1931) de Raul Bopp tem toda uma linguagem surrealista ao tratar de temáticas de fundo indígena, ou “Martim Cererê” (1928), de Cassiano Ricardo, emprega tons expressionistas para recontar a História brasileira, com índios, curupiras, bandeirantes, curumins, gigantes, jesuítas, imigrantes, burgueses, numa imenso painel tal qual se apresenta o 'muralismo' mexicano nos paineis de um Diego Rivera.


Serafim Ponte Grande : uma saga


Conhecedores do contexto – o modernismo brasileiro – poderemos adentrar o texto. Numa época de transformações macroeconômicas, que de certo modo, determinam os construtos culturais – segundo uma perspectiva marxista – não é de se espantar que tenha sido do ventre da burguesia paulista o parto da Semana de Arte Moderna de 1922. (1) Sob patrocínio de muitos artistas, burocratas, barões do café, a semana pretendia formular – e apresentar – o 'moderno', ou seja, o que era de vanguarda. Isso num contexto europeu. Afinal, as condições mesológicas (do meio nacional) eram de, digamos, feudalismo, medievalismo. Afinal, nem uma 'revolução burguesa' ainda acontecera (aquela que muitos situam em 1930, e outros em 1964).

Oswald de Andrade não pretendia fazer História ou algum ensaio/relato de historiografia. Sua escrita tende mais ao 'individualismo anárquico' (posteriormente, o Autor se engajaria nas esquerdas radicias, de ideologia comunista) do que ao registro dos movimentos coletivos, dos quais ao menos tem consciência. O próprio confessa em prefácio,

“Continuei na burguesia, de que mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético. Ditei a moda Vieira para o Brasil Colonial no esperma aventureiro de um triestino, proletário de rei, alfaiate de Dom João 6º.

Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo. Servi à burguesia sem nela crer. Como o cortesão explorado cortava as roupas ridículas do Regente.”


Porém ao manter o foco numa personagem – no caso, o Serafim Ponte Grande - em narrativa que mescla 1ª com 3ª pessoa – o Autor mostra por contraponto – por efeito de imagem-fundo – a moldura nacional. Serafim não representa o 'brasileiro', assim como o Jeca Tatu é uma imagem do caboclo, do 'caipira'. Seria mais uma representação da classe média alta – quem se envolve com cultura, arte e literatura? Quem viaja em transatlântico? Quem vai flanar  pelos boulevards parisienses? Quem se passa por 'barão'? Entenda-se. O Serafim é um 'tipo' e concentra um tom de crítica, na qual não poupa a si-mesmo – autocrítica é o que não falta aos 'modernistas'.

Crítica à classe social dominante, ao modelo de país, ao atraso cultural (entenda-se, em relação à Europa), crítica ao artista pouco engajado, tudo isto se mistura no tom irônico-cínico-amargo de “Serafim Ponte Grande”, que não poupa a imagem do país, envolto em hipocrisia e alienação. As personagens tem pouco ou nenhum caráter – por exemplo o Pinto Calçudo lembra algo de Macunaíma, sem a alegoria deste último – pois servem mais à 'carnavalização'.

A pastiche, a paródia, o chiste, a piada percorrem toda a narrativa – fragmentada, caótica, cubista, mais sugestiva que descritiva – aliando a crítica ao riso. (Estilo que a teledramaturgia brasileira identifica em Machado de Assis, como um velho dado ao deboche, pura e simplesmente.) Serafim não pode ser levado a sério – e nem ele se leva. Interpreta personagens – o burguês, o literato, o barão no cruzeiro marítimo, o viajante-peregrino no Egito, na Palestina (onde vem a descobrir que “Cristo nasceu na Bahia” (!). A própria paisagem mundial está em referência ao 'eixo' brasileiro-paulista. Na Palestina “fazia uma lua paulista” ou o quarto de hotel lembrava “um hotel de São João del Rei” - ou seja, o viajante carrega o país consigo.

O País que ele ama e odeia. Reverencia e ironiza. País que vale um a luta? As revoltas paulistas – em 1924, 1930 e 1932 – mostram uma insatisfação depois de uma era de 'política do café com leite' – quando as elites de São Paulo e Minas Gerais se alternam no poder federal – além de uma noção de perda do poder – os paulistas se sentem como uma 'locomotiva' e desejam liderar o país não apenas economicamente, mas sobretudo politicamente. A visão de Brasil é uma visão de São Paulo-liderando-o-Brasil.

“Um vento de insânia passou por São Paulo. Os desequilíbrios saíram para fora como doidos soltos. A princípio nas janelas, depois nas soleiras das portas. O meu país está doente há muito tempo. Sofre de incompetência cósmica. Modéstia à parte, eu mesmo sou um símbolo nacional. Tenho um canhão e não sei atirar. Quantas revoluções serão necessárias para a reabilitação balística de todos os brasileiros?” (p. 76)

e também,


“Os paulistas vão e voltam, bonecos cheios de sangue.

Mas a revolução é uma porrada mestra nesta cidade do dinheiro a prêmio. S. Paulo ficou nobre, com todas as virtudes das cidades bombardeadas.

Assoviam ninhos nas telhas. Na distância, metralhadoras metralham pesadamente.” (p. 76)


Em trechos que parecem confundir criatura e criador – Personagem e Autor – a impotência política (ou balística) da personagem parece refletir a aquela do próprio Oswald, sempre pronto para a 'batalha'. Afinal, ser 'vanguarda' não é nada fácil. É ser (e estar)  linha de frente (front) a receber de peito aberto os primeiros petardos dos leitores e dos críticos. Enquanto os primeiros podem ser 'benevolentes',os segundos são agudos e inclementes. (2)

Num segundo momento da narrativa temos uma viagem transatlântica. No palco do tombadilho, nas cabines, se desenrola  todo um drama-folhetim. O talento picaresco de Pinto Calçudo – o secretário bajulador que define Serafim como “o meu prezado colega e particular amigo” - acaba por 'roubar a cena' em mil peripécias a bordo, e , assim, o protagonista não hesita em expulsá-lo. É que o romance zomba do romance.

“Na noite estrepitosa Serafim passeia para cá e para lá. Chegam-lhe os ruídos da farra de despedida em que a voz nasal de Pinto Calçudo tudo domina, produzindo balbúrdia e riso.

(...)

Mas Serafim insiste; dirige-se atrás dele até o reservado dos homens e grita-lhe:

- Diga-me uma coisa. Quem é neste livro o personagem principal? Eu ou você?

Pinto Calçudo como única resposta solta com toda a força um traque, pelo que é imediatamente posto para fora do romance.” (pp. 98-99) 



A narrativa se concentra, então, em Serafim, que é uma espécie flâneur na Avenue des Champes Elysées, em Paris, cenário dos poemas modernos de um Charles Baudelaire. O lírico se mescla ao prosaico no mundo 'progressista' da Cidade-Luz que fascina o homem provinciano advindo da terra dos cafezais – como realmente fascinou ao Autor, que devorou a cultura europeia e voltou ao Brasil para melhor digeri-la.

A consciência de brasileiro-paulista aflora em contato com o estrangeiro. A identidade que surge em contraponto. Para se sentir melhor brasileiro basta passar uma temporada na Europa, parece. Num diálogo meio teatral, Serafim se apresenta, enquanto não francês, diante de um mal-entendido (“Eu não sou de França, Excelência!”),

Serafim - São Paulo é a minha cidade natal.

Salomão - A Chicago da América do sul. Mas nunca me convencerá que a sua desenvoltura que tão preciosa torna a sua estadia entre nós, é originária do Anhangabáu! Guarde para desespero de sua modéstia esta pequena verdade: o meu amigo vem de Florença. E sabe de que Florença? Da dos Médici!” (pp. 113-114)


A presença do brasileiro no exterior – seja Europa, ou atualmente EUA – faz surgir uma identidade por contraste, torna-se brasileiro ou se perceber não-francês, não-alemão, ou não-norte-americano. Ao se conhecer a cultura alheia, paramos para pensar na própria cultura. O que faz um alemão ser diferente de um francês? E um brasileiro diferente de um francês? Há uma tradição, há uma História que todos os brasileiros compartilham. Um conjunto de símbolos que transcendem o meio paulista, nordestino, amazônico – deve haver uma 'identidade nacional', uma 'nacionalidade'. Mesmo que atrasada em relação ao capitalismo dos 'países desenvolvidos'.

Um folclore indígena, uma mitologia africana, uma colonização lusitana, eis uma nova 'raça' a despontar. Serafim passa a meditar sobre o 'ser brasileiro' durante um baile – 'dancing metaphysique' – onde na mente do 'herói' se mesclam elementos da cultura europeia (baile, glamour, peles, 'fêmeas brancas') e da afro-brasileira (favela, florestas, mulatas, 'animais de todas as Áfricas'),

“Ora, ele é da raça vadia que passa o dia na voz do violão. Sambas e queixumes. Tanguinhos de cozinheira. Valsas das cidades.

-Meu caro amigo, o Barsil é isso. Daqui a vinte anos os Estados Unidos nos imitarão.” (p.122)

Duas ironias em uma. Primeira, o modo cínico de dizer 'raça vadia' que vive de modinhas de violão. Para quem leu “Memórias de um Sargento de Milícias” (de Manuel Antônio de Almeida), “O Cortiço” (de Aluízio de Azevedo) e “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (de Lima Barreto) há de lembrar as cenas onde surgem as 'modinhas ' de viola. Gente sem disciplina, o tipo brasileiro que só pensa em se divertir, ou a pândega que destrói toda a virtude do lusitano que vem enriquecer, ou ainda o símbolo da cultura nacional em contraponto às sinfonias europeias (contraponto que somente foi desfeito com as composições 'eruditas-populares' de um Villa-Lobos com suas 'Bachianas brasileiras').

Segunda, a ideia de que a superpotência em ascensão – os Estados Unidos da América – de certa forma gostaria de imitar  uma nação subdesenvolvida da América Latina. Ou que a cultura puritana  conservadora ianque de alguma forma invejaria a cultura afro-lusitana carnavalizada brasileira. (No máximo atraímos turistas para o Carnaval, ou exportamos Carmem Miranda, símbolo do tropical-em-frutífero-exotismo.)

De súbito, em sua saga, Serafim sofre um colapso com tantos fragmentos de civilização e barbárie, de tecnologia moderna e guerra moderna, de miríades de coisas e seres-coisas que transbordam no mundo dito civilizado. (Assim o Futurismo era uma tentativa de tentar 'digerir' tanta informação. Basta uma leitura atenta de poemas de Marinetti, Maiakovski e Fernando Pessoa-Álvaro de Campos, com odes extensas e radicais, onde o conhecimento cognitivo e inconsciente do mundo vem a transbordar.


“Relógios imperturbáveis, arcangélicos, oscilogrfam ameaças interplanetárias. No silêncio monumental a morte se espirala nos transformadores. Até parece a precisão dos tangos.

De repente a aláo de Serafim afunda numa cabina, salta pelo arame agudo, finca a cabeça na atmosfera, atravessa os azuis, as tempestades, as neves, os bolchevismos, escala o Everest, passa guerras, crimes, crimeias, festas antagônicas e comunica-se com Pompeque do outro lado estrelado do oceano atmosférico.

Raça dos apólogos de Machado de Assis, nunca! Dos batuques. Das batotas.

Ele é apenas o que os jesuítas estragaram – magro, desconfiado e inocente no Concerto das Nações enriquecidas pela Reforma.

Mas é o paladar mesmo da aventura.” (pp. 122-123)


No mundo de avanços tecnológicos e ambições imperialistas, o antigo 'paraíso tropical' (exportador de pau-brasil e indígenas, e importador de escravos africanos ) procura se encaixar no mundo que se globaliza. Será um modo de inserção a curar os males do atraso? Atraso no qual muitos dizem ver uma culpa do 'espírito de contra-reforma', ou o catolicismo motivador de atraso, em comparação com o calvinismo-luteranismo dos protestantes anglicanos anglo-saxões brancos – WASP - que souberam aproveitar os 'bens' do capitalismo (é a tese de Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de 1904, onde o sociólogo alemão examina as relações entre fé religiosa e organização econômica). No mais, soa irônico o “Estados Unidos do Brasil” – nominação de nossa Nação até meados dos anos 60, até o regime militar.

Da Europa, o 'herói' segue para o Oriente – em 'Os Esplendores do Oriente' – na busca de aventuras mediterrâneas, ou travessias de desertos, ou peregrinações na 'terra santa'. Daí o caráter de saga, por mais carnavalizada que seja. Há referências fartas quanto ao Reich (império alemão), aos turcos (Kemal Paxá), aristocracia russa, presença francesa e inglesa na Palestina, exploração dos turistas, comércio de relíquias no turismo religioso, ao pé do Muro das Lamentações ou do Santo Sepulcro. É quando surgem as ironias - “Cristo  nasceu na Bahia” – daí não haver “nenhum Santo Sepulcro”.  

Enquanto isso – em pleno turismo religioso, o 'herói' – tal um Macunaíma – continua em tentativas de sedução de donzelas deslumbradas. O carnal parece imperar sobre um possível espiritual. A busca por relíquias – ou algo semelhante – se perde em cruzeiros marítimos cheios de promessas de prazeres e seduções de gula e luxúria. Pois o “nosso herói tende ao anarquismo enrugado. / O Brasil dos morros da infância que lhe ofertava a insistência dos mais feijões, dos mais biscoitos – dá-lhe o amor no regresso.” (p. 150)


É o regresso que sobra ao herói em plena saga para fora de sua terra. Ele retornará – mas transmutado. Como convém aos heróis de sagas. Se em tudo ele vê coisas brasileiras – pois em plena Palestina a lua lembra o luar paulista e um quarto de hotel lembra um quarto de hotel do interior de Minas Gerais! - nada mais a esperar que o retorno do herói à sua pátria. É o fim de Serafim.

Fiel ao manifesto de seu ideal antropofágico, o romance-saga de Oswald de Andrade finda num cruzeiro marítimo para lá de sui generis, com a liberação de tudo aquilo que a civilização (Kultur) nega. Destruindo na base o 'mal-estar na civilização' (como argumenta o estudo de Freud), os passageiros – e marinheiros – liberam o lado não-civilizado, isto é, o animal que somos. Derrubam a ditadura do smoking e da elegância. Decidem viver sem roupas, em libertinagem sexual. Recusam a vida civilizada e preferem vagar sem rumos pelos oceanos, telegrafando ameaça de 'peste' a bordo. Consideram-se a “humanidade liberada”, na “base do humano futuro, uma sociedade anônima de base priápica” (p. 160) . É uma manifestação de 'contracultura', de vida indígena – ou hippie - numa prévia (ainda mais radical) do 'tropicalismo' que a cultura nacional conhecerá nos anos 60 e 70.




nov/10



Leonardo de Magalhaens






Notas



(1) Sobre a conjuntura econômica agindo sobre a produção cultural, o poeta e crítico Haroldo de Campos usa um argumento marxista em seu texto sobre a obra de Oswald, “Uma Poética da Radicalidade”, onde relaciona o modernismo ao quadro imediatamente anterior e posterior à Primeira Guerra Mundial.

“Começou a despontar uma 'economia propriamente nacional' (como nunca existira antes no Brasil), 'condicionada sobretudo pela constituição e ampliação de um mercado interno, isto é, o desenvolvimento do fator consumo, praticamente imponderável no conjunto do sistema anterior, em que prevalece o elemento produção”. A abolição dos escravos, a imigração maciça de trabalhadores europeus, o progresso tecnológico dos transportes e comunicações, contam-se, ainda, entre as causas determinantes dessa nova economia em germinação. [citação de Caio Prado Junior, 'História Econômica do Brasil'] Evidentemente que estes processos haveriam de repercutir, sob a forma de conflito, na linguagem dessa sociedade em transformação, e se entenda aqui linguagem no seu duplo aspecto: de meio técnico, ao nível da infra-estrutura produtiva, sujeito aos progressos da técnica; e – na obra de arte dada – de manifestação da superestrutra ideológica. [...]”


(2) A Crítica sempre parece meio século atrasada em relação à Obra de Arte. (Daí os verdadeiros críticos serem aqueles artistas-ensaístas, tais como Poe, Baudelaire, Sartre, Eliot, Pound, Borges, Octavio Paz, Calvino, dentre outros, que são criadores e, ao mesmo tempo, bons leitores, exímios observadores.






REFERÊNCIAS



ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande.
          São Paulo: Globo, 2004.

BONASSI, Fernando. 15 Cenas de descobrimento de Brasis.
   In: MORICONI, Italo (org.) Os cem melhores contos brasileiros
    do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados: as
            primeiras expedições ao Brasil.
             Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

CAMPOS, Haroldo de. “Uma Poética da Radicalidade
     In: ANDRADE, Oswald de. Poesias Reunidas.
    Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

COUTINHO, Afrânio. (org.) A Literatura no Brasil.
Vol. 5. Era Modernista. São Paulo: Global, 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26a. ed.
   São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

___________ . Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento
e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. 6ª ed.


TORERO, José Roberto, e PIMENTA, Marcus Aurelius.
           Terra Papagalli.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.    





pesquisa na Internet - links



Nosso velho modernismo
Gerson Valle
disponível on-line em


O modernismo em Serafim Ponte Grande
Cinthia de Oliveira Andrade


Ensaio interpretativo de Oswald de Andrade
Fabio Della Paschoa Rodrigues
disponível on-line em


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Um comentário:

  1. Sim, os trechos sucedem sem ligação. Estou na terceira tentativa de ler esse livro. Estudei sobre ele e simplesmente amei, mas uau... é complexo DEMAIS haha!

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