terça-feira, 25 de janeiro de 2011

sobre "João Ternura" - de Aníbal Machado



sobre “João Ternura” (1965)
romance de Aníbal Machado (1894-1964)



A apoteose trágica do Homem Cordial



            A figura do Homem Cordial, lembrada e discutida pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil” (1936), deriva de uma expressão do escritor Ribeiro Couto, também usada por Cassiano Ricardo, segundo informa o próprio Holanda, no sentido de uma 'glorificação' do 'pacato cidadão', de caráter brando e cheio de polidez. (1)

            Sendo simpático e modesto, em suma, 'cordial', o brasileiro evita violências e despreza as guerras (2), aceita pacificamente as mudanças e respeita as autoridades. Como poderia ser diferente no país onde a questão do trabalho é 'caso de polícia' e as revoluções são feitas 'de-cima-para-baixo'?

            No embate entre as forças tradicionalistas rurais feudais e os grupos urbanos quase-modernos, os cidadãos 'cordiais' procuram formar suas personalidades numa sociedade dita 'democrática' ocidental, porém mantendo laços de parentescos, saudades do paternalismo, medo de assumir o controle da própria vida, ânsia por produtos (e ideias) importadas. Deslocados, nunca adaptados, marginalizados, sempre excluídos, os 'cordiais' pagam o preço da sua 'cordialidade', ao acreditarem na 'cordialidade' dos 'homens importantes'. Uma ilusória 'polidez', toda falsa, a encobrir a famosa afronta: “Você sabe com quem você está falando?”(3)

            O homem 'cordial' sofre para ser 'cordial' no país dos 'homens cordiais'. Assim é o aventurado e desventurado Quixote modernista provinciano brasileiro João Ternura, o carismático protagonista do romance (de mesmo nome) do mineiro (de Sabará) Aníbal Machado, que dedicou décadas e angústias a escrita da obra (que foi publicada postumamente), destilando fina ironia e espírito ímpar de observação.

            Acompanhamos João Ternura praticamente desde o útero, o nascimento messiânico do herói, o conturbado e paradisíaco seio da família, a sexualidade em descoberta, os erros e acertos, o crescimento e constrangimento na vida da província, o desejo de conhecer outras terras. Tudo em blocos em fragmento, em suspiros, em desabafos, registrando em flashes a vida e as vicissitudes de João Ternura, tentando entender que 'mundo louco é este' em que veio cair. Uma ação que é elogiada hoje pode ser reprovada amanhã, um desejo incentivado ontem, pode ser sufocado hoje.

            Ele deseja 'liberdade'. Então o que faz? Vai para a cidade grande! Que auto-engano! Nas multidões do Rio de Janeiro à beira-mar Ternura somente encontra solidão. Nem o 'parente na cidade' é grande ajuda. Conselhos e reprovações não faltam: Ternura precisa “ter presença” e “respeitar as autoridades”. Importante: “Fale devagar. E com firmeza, mesmo que não tenha nenhuma convicção.”


            Conselhos que devem ajudar o pobre provinciano na dificuldade em adaptar-se a cidade de vida tumultuada recheada por uma multidão de anônimos, numa maré desassossegada do mar de faces. A ligação com a província e o passado? Sim, as lembranças, as saudades, e as cartas que a mãe ainda insiste em enviar, na espera de que o filho seja ajuizado, “Muito juízo, sim, meu amor?”, pois, mesmo à distância, a família educa e formata o indivíduo – não para mudar o mundo – mas para confortavelmente se encaixar, e 'ir levando a vida'.

            Claramente, o primo urbano passa a evitar o primo provinciano, enquanto os 'homens importantes' estão por perto. Ternura a se perguntar: “Os filhos dos importantes são também importantes?” (p. 117) Quem são os 'importantes'? “São os donos de fábricas, de bancos. Eles nunca vão para a guerra, mas mandam a gente ir. São quase divinos...” (p. 118) A constante ânsia, a sexualidade vulgar da cidade, onde homens e (principalmente) as mulheres são 'objetos' de admiração e cobiça. O desejo é incentivado, aumentado, canalizado para o consumo, deixando o cidadão em permanente insatisfação. “Depois que eu cheguei, aumentou a minha fome de tudo. Acho que ainda não peguei o jeito de viver aqui.” (p. 119)


            O 'homem cordial' não quer lutas, não quer lutar. Nem sabe porque está lutando! “Ternura disparou os primeiros tiros. Sem direção certa, só por disparar. Muito pesada a arma que lhe deram.” (pp. 123/24) Animados por uma 'excitação patriótica' os soldados trocam tiros, se matam, vivem um acontecimento (que depois será 'histórico'), “Com que delícia o mundo gratifica os seus heróis!” (p. 129) E quando a 'poeira abaixa', “A multidão festejava a vitória. Os que não se bateram a comemoravam com violência maior.” (p. 130) Mas quem lutou ainda tem dúvidas : “- Ó sergipano, pra que lado mesmo que nós estávamos combatendo?” (p. 130)

            Se os soldados não sabem – pobres ignaros, os nossos heróis! - as novas autoridades sabem muito bem! “Às duas da madrugada, sob a chuvinha miúda, acabava de nascer a República Nova. Seus numerosos padrinhos foram aparecendo e se apresentando.” (p. 131) Assim é a nossa (nossa?) Revolução de 1930, uma revolução quase-burguesa, algo trabalhista, feita de cima-para-baixo, “Façamos a revolução antes que o povo a faça”, teria dito o Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos.

            Mas a crueldade da cidade vai 'enquadrando' o singelo Ternura. “Ternura fingia interessar-se pela conversa dos homens. Espantava-se do calor com que se interessavam por coisas insignificantes. Invejava-lhes a segurança de viver, a alegria quase imbecil. E, sem presença, apagava-se.” (p. 136) Enquanto isso, mais cartas da mãe: uma voz que vem do mundo antigo... Um 'canto de sereia' para que Ternura retorne ao lar... (Quem se lembra da pequena Dorothy, em “O Mágico de OZ”, de L. F. Baum? Aquela que dizia, sempre saudosista, “Não há lugar igual a nossa casa”(there's no place like home) Saudosita, sim. Cada vez mais perdido: quando mais se adapta ao meio urbano, mais Ternura perde o Eu singelo do menino provinciano. “As coisas perdiam a consistência, fugiam. Ninguém lhe dava atenção, ninguém dava atenção a ninguém. Sentia-se à margem, como nos primeiros tempos depois da chegada.”(p.140)

            Na cidade que se assemelha a um labirinto, encontramos cenas dignas de um Kafka! Surreais e alegóricas, tal aquela em que Ternura vai ao banco na pretensão de trocar um cheque. O que ele encontra? Um mundo normatizado, burocrático, asséptico, artificial, todo um espaço ao qual o cidadão (alienado!) não tem qualquer acesso. Qualquer semelhança com “O Processo” e “O Castelo” é mera coincidência?)

            As pressões se acumulam de todos os lados. Os amigos, são outro exemplo. Tentam exercer uma influência sobre o pobre Ternura, cada um com suas perspectivas e manias. E Ternura sempre a reagir: “-Que é que vocês estão pensando? Que não sou um ser humano, mas um autômato, uma coisa?” (p. 168) Até porque a vida automática da cidade vem sempre cobrar seu preço! O tempo é dinheiro ('time is money!') e tudo funciona em torno do dinheiro. Que movimenta a vida acelerada da metrópole (que angustia em contraste com a 'vida besta' da província, segundo Drummon de Andrade)

            As passagens das ruas lembram algo de Baudelaire, mas principalmente do estilo do “João do Rio”, onde as ruas têm nomes, sobrenomes, sentimentos, ambiências, misérias, dramas, alegrias. Assim o espaço é sempre relativizado, comparado (outro destaque são as lendas e utopias da Amazônia – que tanto influenciaram Mário de Andrade, em “Macunaíma”, e Antonio Callado, em “Quarup”, por exemplo)

            Percebemos que João Ternura é realmente o 'nosso' Don Quixote, o 'nosso' Príncipe Michkin, é ele o fraco a se compadecer dos outros fracos, é o Viramundo, é o que prefere a solidão a tornar-se cúmplice da injustiça do mundo. (um contraponto é Nietzsche: não há 'bem' nem 'mal' – o mundo é assim mesmo: os fortes dominam, os fracos obedecem). O amigo Manuel é franco e direto:

 -Se você inventa de querer bancar o D. Quixote, vai ser um nunca acabar de surras. Tem muita gente apanhando na vida, Ternura. Em cada esquina há pelo menos meia dúzia de desgraçados precisando de socorro. Os 'fortes são estúpidos em geral, e pisam nos fracos. E você não tem o tipo nem a bravura de D. Quixote para defender os fracos.” (p. 203)

            A parte VI – a fase claramente modernista – é a apoteose do romance de Aníbal Machado , quando o carnaval no Rio de Janeiro faz cair as 'máscaras' da vida cotidiana e os médicos se tornam monstros, e os monstros usam fantasias de médicos. “Os gestos são livres e quase não há roupa!”e “Abaixo a lóooogica!”, os motes para o longo desfile de bizarrices, em nome de alguma crença ou ideologia, em busca de fiéis e fanáticos.

            Há toda uma paródia aqui: os discursos ironizam os academicismos, os arcaismos, os solecismos, os barbarismos. Ironiza os manifestos comunista, modernistas, futuristas, dadaístas, o que seja! Seja no tópico “Campo X Cidade”: “-Senhores, mais vacas e menos chaminés! Chega de arranha-céus! Chega de geometrias! Chega de asfixias!” (p. 226)

            Em época de Manifestos, a ironia é de todo válida! Por exemplo, o “Manifesto dos Não-Nascidos” (p. 233), “É verdade que não invejamos a vida que levais, tão posta à que sonhávamos. Mas bem que queríamos viver... oh, se queríamos!...” ou então, “o texto de um telegrama do futuro”: “Estamos fazendo força para te alcançar stop demora motivo últimas resistências antiga estrutura social bem como safadeza má-fé demagogia stop...” Manifestos e manifestos: não importa o 'teor': os manifestantes são prontamente perseguidos pelos 'agentes da Ordem Política e Social'. A Ordem precisa ser mantida! Então, os absurdos: o orador que discursa contra a “falta de silêncio” - enquanto ele mesmo está a quebrar o silêncio!

            Assim, o carnaval deixa trans-bordar tudo o que foi reprimido ao longo do ano normativo, normalpata, burocratizado. A vida que não pode ser vivida é re-criada em três dias de liberdade – ou melhor, 'libertinagem'. “A suspensão provisória das proibições leva o povo a praticar tudo o que secretamente deseja fazer durante o ano;” (p. 245). A lógica da Repressão cria um povo dividido entre corpo (instinto) e civilização (ordem), que ora vai a um extremo (libertinagem) a outro (ditadura). Assim diz Josias, o estudante reformista, “nós somos uns neuróticos, incapazes de encontrar os caminhos que levam à alegria de viver.” (p. 245) Neuróticos? Sim, todos. Personagens, povo, os leitores.

            As personagens são neuróticas por expressarem 'contigências', ao serem construídas por circunstâncias (“eu sou eu e minhas circunstâncias”, disse Ortega y Gasset), na representação de personalidades compartimentadas, incapazes de real diálogo. (Não chegam a ser 'alegóricas' ou 'caricaturais' como aquelas de Machado de Assis ou Lima Barreto)

            Se destacam Arouca, o subversivo, um socialista sério e taciturno, tentando explicar as razões de o povo aceitar a opressão; Silepse, o ser místico, a reclamar a 'volta a Deus' (e vai ficando agressivo, fanático, ao bradar aos demais: “Destruíram Deus?!... Bravos!”, como a dizer: 'vocês mataram Deus e então? O que fazer?'); Matias, o mais realista, 'pé no chão', a dizer que Ternura vive fora da realidade; Manuel, o prático, aquele que paga suas contas e respeita as regras, possui uma gráfica, tem clientes, um nome a zelar, assim não teoriza, vive em conformidade.

            Claramente, Ternura é o mais 'torturado', no sentido que encontramos em Dostoiévski (o ser que vivem em 'auto-tortura'). Até a quase-morte do protagonista é irônica e trágica, com uma visão do Inferno a lembrar Dante, ou Lautréamont, ou James Joyce, ou Umberto Eco, um Inferno cheio de zombadores, julgando sem-piedade, ao lado de um deus que ri! Deus vê a miséria humana e ri! (destaque para as páginas 268 a 276) O pobre 'homem cordial' morre e nem assim tem 'cordialidade' – vai para o outro mundo e é vaiado na eternidade!

            O romance de Aníbal Machado vem mostrar a impossibilidade de ser 'cordial' solitariamente na sociedade dos 'homens cordiais', onde aquele cheio de boa-vontade é logo explorado e humilhado pelos demais. Ser 'bom' – ao tentar apagar o incêndio com uma gota d'água – é arriscar-se a ser chamuscado, apedrejado, crucificado – seja por ação dos 'cruéis' ou dos 'indiferentes'. O que dói no romance é justamente essa descrença na 'boa-vontade' do coletivo. E que Ternura consiga despertar apenas desprezo ou compaixão. O que se equivale: acabamos por desprezar aqueles dignos de compaixão.


ago/set/09

revisão: nov/10

por Leonardo de Magalhaens





notas:


(1) “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o 'homem cordial'. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definitivo do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos patrões do convívio humano, informado no meio rural e patriarcal.” (“Raízes do Brasil”, pp. 146/47)


(2) “Não ambicionamos o prestígio de país conquistador e detestamos notoriamente as soluções violentas. Desejamos ser o povo mais brando e o mais comportado do mundo. (...) Tudo isso são feições bem características do nosso aparelhamento político, que se empenha em desarmar todas as expressões menos harmônicas de nossa sociedade, em negar toda espontaneidade nacional.” (“Raízes do Brasil”, p. 177)


(3) Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.” e também “E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo”(“Raízes do Brasil”, p. 147)



 
REFERÊNCIAS


COUTINHO, Afrânio. (org.) A Literatura no Brasil. Vol. 5 – Era Modernista. São Paulo: Global, 2004.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MACHADO, Aníbal M. João Ternura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. 10ª ed.


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