domingo, 16 de janeiro de 2011

sobre O Amanuense Belmiro - de Cyro dos Anjos




sobre O Amanuense Belmiro (1937)
romance de Cyro dos Anjos (MG, 1906-RJ, 1994)


O Eu no Olhar dos Outros


            A narrativa enquanto testemunho, enquanto fala de si-mesmo, pode ser aquela do confessional, do drama íntimo, ou aquela do drama externo que reflete (ou nele é projetado) uma angústia interna. Em ambos o Narrador procura descrever-se, seja nas próprias palavras (e conceitos), seja nas perspectivas dos outros (os opositores, coadjuvantes, etc)

            As formas de 'diário' ou 'memórias' são as mais comuns, quando há um tom confessional, sendo o primeiro, mais 'presentificado' (usa mais o tempo presente), enquanto o segundo usa mais construções no pretérito (um passado relembrado/recuperado), variando assim a distância entre um eu-de-hoje e eu-de-ontem.

            Pode-se narrar sobre si-mesmo, falando de si-mesmo, mas igualmente ao narrar a vida dos outros. A voz narrativa sendo memoralista, numa 'paródia' de 'diários'. Assim é o romance “O Amanuense Belmiro”, do mineiro Cyro dos Anjos, que mistura diário e memórias, ao retratar a vida na jovem Belo Horizonte dos anos 20 e 30, ao mesmo tempo que relembra (e compara) com a vida rural (a representar os belorizontinos de origem provinciana) O que mostra uma certa influência de Machado de Assis, de “Memorial de Aires”, ao situar-se entre dois ícones da 'memoralística': Marcel Proust e Pedro Nava.

            Assim como percebido nas obras de Proust e Nava, há toda uma 'miscelânea' de discursos literários e (quase) ficcionais, sendo um quase-romance que é uma quase-diário, que é quase-memórias... Toda aquela sensação (e angústia) de fuga do tempo, toda uma vontade de agarrar a existência nas foto-narrativas da memória, do re-contar para re-vivenciar. O eu-de-hoje desesperado para re-encontrar com o eu-de-ontem, ou resgatar uma identidade que se perde dia a dia. Há um narrador ('Belmiro sofisticado') que escreve e confessa sobre um protagonista (ele-mesmo-de-outrora) ('Belmiro patético') que viveu, sentiu, fantasiou num tempo já passado – e perdido.

            Outra obra na tessitura de referências (e lembranças) é “A Náusea”, diário existencialista publicado por Jean-Paul Sartre, e assinado por Antoine Roquetin, principalmente no trecho abaixo,onde Belmiro desabafa lamentações:

“Volto a preocupar-me com a velha questão: que vim fazer neste mundo? Até agora nada realizei. E, para diante, são menores as possibilidades de qualquer realização. Serei, mesmo, apenas o tal arbusto da chapada?”(p. 220)

numa referência ao 'caniço pensante' de Pascal? (“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante”, L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant. Pensées /Pensamentos)

            Retrata a fragilidade física e mental do homem, quando o saber traz infelicidade. De repente, é melhor ser mesmo ignorante e 'curtir a vida': “ignorância é meia felicidade” (p. 222)

            Considerando-se o período da narrativa – do natal de 1934, passando pelo carnaval de 1935, a intentona comunista, até o início de 1936, num momento de transição – a capital sai da província e se instalavanuma das primeiras cidades planejadas do Brasil, e o êxodo ruralcuidava em encher a cidade planificada para um 'número ideal'de habitantes. Há todo um saudosismo do tempo do campo (em Vila Caraíba) : evidenciando o ser urbano versus o ser rústico, rural, campestre. O urbano poluído de pensares em constraste com o rural cheio de energias.



Os Outros


            As personas, as personagens, os Outros, são igualmente importantes para situarem (e criarem) o Eu por contraste (Eu que não sou o Outro), pois Belmiro sabe que é indeciso e sem convicções, apenas quando se compara com o metafísico Silviano e com o revolucionário Redelvim. Aliás, são as opções políticas (lembramos que os anos 20 e 30 foram de radicalização política-ideológica que levou a eclosão da Segunda Grande Guerra, 1939-1945),


“Passaram ao terreno da política. Desde muito, as discussões vêm azedando nossa pequena roda e vejo que ela não tardará a dissolver-se, pois há forças de repulsão, mais que afinidades, entre estes inquietos companheiros. Enquanto o Glicério e Silviano se inclinam para o fascismo, Redelvim e Jandira tendem para a esquerda. Só eu e o Florêncio ficamos calados, à margem.” (p.53)


            Metafísico, nietzschiano, obcecado com o 'mito faústico', mitomaníaco, Silviano é um desafio para Belmiro (assim como Sancho Pança tenta entender Don Quixote, Watson tenta entender Sherlock, assim como Emilio tenta compreender Stefano, em Senilidade, de Italo Svevo, ou Serenus se intriga com Adrien, em Doktor Faustus, de Thomas. Mann ), uma incógnita que o protagonista nunca soluciona. Assim o olhar de Belmiro desce aos demais, mais 'simples', como é o caso de Glicério, o arrivista, sem a erudição de Silviano ou o fervor de Redelvim, mas preocupado em 'frequentar as rodas sociais', e acaba abandonando a literatura em prol de uma carreira burguesa.

            Assim, a identidade de Belmiro é dada pelos outros: para Redelvim, Belmiro é céptico, pequeno burguês; para Silviano é um 'sentimentalóide plebeu'. Mas todos se enganam, pois Belmiro é mais um 'sem-rumos', igual a um Don Quixote, um João Ternura (do romance homônimo de Aníbal Machado), não um agente de uma ou outra ideologia. Como é caso dos amigos, sempre buscando um 'front' onde se situar. Até a Literatura tem uma face ideológica, como pode se ver na posição dos poetas, a ser revista na República Socialista, por Redelvim: “Os poetas (são) 'traficantes de tóxicos', sustentados pelo capitalismo para entorpecer o espírito de rebeldia das massas...” (p. 89)

            O que Belmiro não aceita é um mundo fechado em 'definições', como desejam as ideologias (p.ex. 'quem não é de esquerda é de direita', e vice-versa),


“Por que hão de classificar os homens em categorias ou segundo doutrinas? O grande erro é pretender prendê-los a um sistema rígido. Socialismo, individualismo, isso aquilo. // As ideias de um homem podem não comportar-se dentro dessas divisões arbitrárias. (...) O que é injusto é quererem extorquir de nós uma definição, quando nós a procuramos, em vão, sem a encontrarmos.” (p. 112)


            Belmiro quer escrever 'memórias' mas acaba por escrever 'romance' (p. 95), onde as lembranças são transmutadas em 'ficções', e os Outros são, de fato, projeções do Eu, e que fogem ao controle: “Estive refletindo, esta tarde, em que, no romance, como na vida, os personagens é que se nos impõem. A razão está com Monsieur Gide: eles nascem e crescem por si, procuram o autor, insinuam-se-lhe no espírito.” e também,


 “Não se trata, aqui, de romance. É um livro sentimental, de memórias. Tal circunstância nada altera, porém, a situação. Na verdade, dentro do nosso espírito as recordações se transformam em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, caa vez mais romance. Romance trágico, romance cômico, romance disparatado, conforme cada um de nós, monstros imaginativos, é trágico, cômico ou absurdo.”


            Em contraste com o romance (que é idealização, ficção), o diário não é romance, é um painel da vida complicada. As notas de pensamentos soltos e existencialistas, de um 'burocrata lírico' é que acabam por salvar Belmiro, quando da eclosão da Intentona Comunista, em fins de 1935. O delegado ao ler as notas (o romance em-si) só encontra um 'cidadão inofensivo'. E realmente, Belmiro mesmo se compara a Don Quixote, o “Cavaleiro da Triste Figura”, na tentativa de “dar sentido a uma vida sem sentido”, a perseguir uma Donzela Arabela, além de moinhos de vento.

            Qual a solução? No terceiro parágrafo da obra está a fala de Silviano: “A solução é a conduta católica”, ou seja, não podendo ter tudo, renuncia-se a tudo. Refugia-se num mosteiro. É a mesma solução encontrada pelo narrador-protagonista (que também escreve um 'diário') de “O Braço Direito”, de Otto Lara Resende, e pelo Eduardo de “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. “A conduta católica, repetiu. Isto é, fugir da vida no que ela tem de excitante.” Caso contrário, viver a vida é fazer 'concessão à Besta'. (Na metáfora, entenda-se 'aos prazeres da carne')

            Todo um dilema existencial que torna-se ironia e sarcasmo em “Hilda Furacão”, romance do também mineiro Roberto Drummond, onde o padreco vê-se seduzido pela 'figura pecaminosa' da jovem prostituta, que 'devora' os homens na zona boêmia.

            Ao contrário de muitos outros, convertidos ou des-convertidos, para Cyro dos Anjos, o Belmiro, a literatura é uma 'tábua de salvação', “Venho da rua oprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico” (p. 198), o que está no contra-ponto de um Carlos Drummond de Andrade, a escrever; “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”, onde a Escrita surge como um obstáculo a realização pessoal, tolhendo energias vitais do Autor, mera sombra de um Texto.


            É este o fenômeno do observar-se: uma segmentação do Eu: o eu-de-agora, na plateia, vê o eu-de-ontem lá no palco. A Escrita surge como a descrição de si-mesmo, em comparação (e atrito e conflito) com os Outros. Assim o aposentado Conselheiro Aires do “Memorial de Aires”, que tal um Ricardo Reis pessoano dedica-se a observar o 'espetáculo da vida'. Estes incentivam (e desafiam) a um olhar no espelho (do tipo: “serei o que eles pensam que eu sou”?)


“Já não encontro, no ato de escrever, a satisfação de outros tempos. Pouco há, também, que escrever. Continuar a acompanhar a vida dos outros? Isso seria interminável. A vida dos amigos apenas se me revelou quando incidiu na minha. Jamais entrei nos seus domínios íntimo, e se mergulhei a fundo em Silviano, foi porque nele encontrei possíveis itinerários para as minhas incertezas. Só conhecemos, aliás, a vida alheia pelos seus pontos de incidência com a nossa: o mais é conjetura ou romance. Não tenciono escrever romance.”
                                                                                          (pp. 209/210)


            Nem a vida, nem a Escrita parece ser favoráveis ao desiludido Belmiro, sem amigos sem a donzela idealizada, “Já não é donzela, nem Arabela.” (p. 226) Sua razão de existência (será a construção do Eu? A preocupação com os Outros? A conquista de uma companheira? Uma carreira de ascensão social?) é sempre problematizada e deixada em suspenso (em 'sursis' existencial), uma vez que Belmiro não aceita as rotulações e definições externas, os meandros do circo social que ele ironiza com amargura. Sem os amigos, preocupados com seus êxitos e fracassos pessoais, sobra a companhia do humilde Carolino, serviçal na repartição. “Que faremos, Carolino amigo?

            O narrador Belmiro (ou o autor Cyro dos Anjos) não resolve plenamente nenhuma das questões levantadas (afinal, responder seria decidir-se por um dos lados, e perder-se-ía o tom 'dialogístico') e deixa o leitor dentro do redemoinho de perspectivas, nenhuma delas totalizando, nenhuma delas servindo de 'guia'. Resta apenas o homem que hesita, o Hamlet dentro de cada pensador.



nov/09

Leonardo de Magalhaens




REFERÊNCIAS


ANJOS, Cyro dos Anjos. O Amanuense Belmiro. Rio de Janeiro: Globo, 2006.


SANTOS, Luis Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, Tempo e Espaços Ficcionais. Martins Fonte, 2001.

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