Poema de ocasião diante da paisagem urbana de Belo Horizonte
(releitura-paródia do poema “Westberlinstadtlandschaftsgelegenheitsgedicht”
do poeta alemão Helmut Heissenbüttel (1921-1996))
quando se desce da estação de metrô ali na Praça da Estação
pode seguir pelo cartão-postal para americano ver
com direito a chafariz luminoso e leões de pedra
mas tome cuidado pois elementos suspeitos
se deslocam pelas calçadas sujas de escarros
pode atravessar um túnel fétido para o bairro
ironicamente chamado Floresta
pode subir para as calçadas dos botecos copo-sujo
para tomar uma caipirinha ou cachaça com groselha
pode folhear revistas com artistas globais ou astros
do esporte ou atrizes grávidas ou goleiro psicopata
pode conversar com os guardas municipais com os
guardas de trânsito com os encarregados de obras
com os vendedores ambulantes com as mulheres da vida
pode ver arte grafiteira fila de táxi promoção de bíblias
CDs gospels empórios de tabaco garrafas de cerveja
pode esperar o ônibus à direita de quem sobe ou
pode chamar o táxi à esquerda de quem desce
vai achar decadente e espectral as fachadas dos prédios
clássicos e gélidas e indiferentes as fachadas dos edifícios
pós-pós-modernos que projetam talos de concreto e vidro
toda a nossa Belô (para os íntimos) é uma enorme
pintura estampada num muro com reboque descascado
projetada do alto da rua Sapucaí sobre a Aarão Reis
tendo em primeiro plano a mancha amarelecida
da vetusta Estação e o Museu de Artes e Ofícios com restos
de engenhos e engenhocas máquinas e maquinários
pode ver a silhueta dos prédios quase arranha-céus
pintados sobre o azul manchado de fuligens
uma atordoante aquarela urbana
enquanto os carros passam ruidosos ensurdecem
o deslizar dos vagões do metrô na entrada da estação central
constante ida e vinda de vagões vultos humanos
pressa sacolas bonés de times ianques livros best-sellers
eis a cidade onde peregrinou Roberto Drummond e Cyro dos Anjos
e Pedro Nava e Emílio Moura e Murilo Rubião e
Adão Ventura e Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos
onde estátuas de escritores petrificados observam
o ir e vir de pressa sacolas pastas de executivos
catadores de papelão biscateiros batedores de carteira
basta atravessar o Viaduro Santa Teresa basta subir a
rua da Bahia basta virar à esquerda no Mercado das Flores
basta de abastecer de informações turísticas
basta atravessar a Rua Goiás basta atravessar a
Avenida Augusto de Lima divisar o Condomínio Maletta
vislumbrar o Castelinho gótico fotografar a
fachada da Imprensa Oficial
subir Bahia e buscar o oásis da Praça da Liberdade
agora centro cultural depois que o Governo Estadual
se mudou para o Country Club, digo, Cidade Administrativa
atento para não ser atropelado na Gonçalves Dias
ou esmagado na João Pinheiro ou assaltado na Bias Fortes
pode se chegar ao cinema-arte ao cinema-alternativo
longe das padronizadas salas de cinema de shopping-center
depois que os bispos e pastores compraram as salas
de cinema espalhadas outrora no hipercentro
Cine Odeon Cinema Brasil Cine Acaiaca
Cine Tupis Pathé Glória Palladium Avenida
pode cruzar a Praça Sete pode sobreviver à Praça
de Rodoviária pode vislumbrar o Acaiaca e as carrancas
dos índios de concreto
pode fazer o sinal-da-cruz diante da fuliginosa
igreja de São José pode deixar uma moedinha
aos pés do mendigo mais próximo
pode esperar o domingo de manhã para caminhar
na feira de artesanato entre mestres da capoeira
entre vendedores de bijouterias entre artistas hippie
de cabelos trançado e chinelas sertanejas
pode peregrinar até a igreja da Boa Viagem
tropeçando em flanelinhas e fezes de pitbulls
turistas chineses ianques argentinos franceses
ingleses portugueses japoneses com câmeras
blusas multicores óculos raybans carteiras cheias
de cartões de crédito e olhares vazados de curiosidade
na exposição de pernas morenas braços tatuados
pés descalços shorts à mostra seios inchados
nádegas transbordantes dentes faiscantes
ou um almoço no PF mais próximo com
direito a uma 'caninha' e uma porção de fritas
com rodelas de cebola e mostarda
ou um hot-dog gorduroso entre as mocinhas de
bolsas floridas e chinelas singelas ou um hamburguer
entre velhinhas com 10% de charme e 90% de cosméticos
entre casais entre beijos e beijocas e outros lugares-comuns
meio ao trânsito que se desvia em ruas vielas becos
e se paralisa em congestionamentos
nas avenidas demolidas e ampliadas
nos viadutos povoados de mendigos e putas
fedendo a mijo e vômito nas brumas noturnas
de fumaça e fumacê
eis o tráfico de drogas e corrupção a olhos vistos
só não vê quem não quer ou foi cegado pelos
cacos de vidros ou ácidos sufúricos dos meninos e meninas
de rua anjos e demônios vítimas e carrascos
Belô é uma aldeia grande, os transeuntes dizem,
as mulheres traficam informações sobre casais
e infidelidades e comentam as compras de
fim-de-ano entre promessas de mercadorias
e satisfação garantida
entre os olhares de vendedores de compradores
de vencedores de perdedores de endinheirados
e excluídos
pode ser que Vossa Senhoria se reconheça numa
foto desbotada de um sonho positivista-modernista
a cidade planejada de Aarão Reis e que ficou
só na ideia e no papel
com seu tabuleiro de xadrez infestado de restos
humanos roedores baratas ratazanas assombrosas
e guardas relapsos e bandidos geniais e loiras
fantasmais e cemitérios-metrópoles de arte funérea
cidade-capital isolada entre cidades-dormitório
e cidades-industriais e cidades-penitenciárias
e cidades-turísticas e cidades-museu
com novas chaminés e novas senzalas e novas
casas grandes e novos cortiços e
Gruta da Maquiné igreja de São Francisco de Assis
Lagoa dos Ingleses Mina de Morro Velho
Aeroporto de Confins Museu da Inconfidência
Casa dos Contos Palácio dos Governadores
igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
Santuário dos Senhor Bom Jesus de Matosinhos
Adro dos Profetas em Congonhas
Matriz de Nossa Senhora da Assunção
enquanto a vida barroca se resguarda no mundo
pós-moderno de celulares e note-books e ipods
se resguarda entre fibras ópticas os despachos
de esquinas em bairros de classe média média
e ciganas que trazem os amantes em 24 horas
e pais-de-santo que curam e amaldiçoam mediante
uma generosa oferenda
pode Vossa Excelência vagar confortavelmente
em busca de diversão mulheres travestis boates motéis
ao longo de avenidas interregionais alamedas escuras
anéis rodoviários alças viárias marginais
obras superfaturadas de polpiticos da situação
e da oposição de direita e de esquerda de centro
e de conveniência
nisto que chamamos de cidade
mas não passsa de suburbanismo
gaiola de loucos neurotizados e psicopatas
em potencial basta que subam num carro importado
e passem por cima de sinais placas radares pedestres
guardas com bloquinho de multa na mão
a velocidade espasmódica da modernidade doentia
incapaz de digerir a História ou se deixar digerir
pela História com ou sem Ordem e Progresso
na deformidade de cobiça de eternidade e efemeridade
querendo o Céu e o Crédito & Débito o Paraíso e condomínio de luxo
a Redenção e o iate em Búzios o Trono do Altíssimo
e a casa de campo com varanda colonial
neste vale entre mar de morros que chamaram
de Belo Horizonte
mas nem se vê horizonte nenhum
nem que Vossa Santidade suba ao morro
à Praça do Papa onde cada polegada é
'propriedade particular – não entre'
onde paga-se para respirar o ar e a fuligem
e o privilégio de ser envenenado pelo carro
último modelo de marca nipônica
e mesmo que se descrevesse todo o guia turístico
de nossa bela vertical capital
Vossa Sapiência ainda se permitirá acreditar
que tudo não passa de um cartão-postal
que é vendido por alguns reais – entre 10 e 15
dependendo do estabelecimento comercial -
com imagem propagandística de 'cidade com o melhor
nível de vida' ou algo assim – que a vida não para
os problemas não acabam nem vão acabar
pois alguém precisa lucrar e precisa haver outra eleição.
BH, 28nov & 02dez10
Leonardo de Magalhaens
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