segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

diante da paisagem urbana de BH




Poema de ocasião diante da paisagem urbana de Belo Horizonte

(releitura-paródia do poema “Westberlinstadtlandschaftsgelegenheitsgedicht
do poeta alemão Helmut Heissenbüttel (1921-1996))


quando se desce da estação de metrô ali na Praça da Estação
    pode seguir pelo cartão-postal para americano ver
    com direito a chafariz luminoso e leões de pedra
mas tome cuidado pois elementos suspeitos
     se deslocam pelas calçadas sujas de escarros
pode atravessar um túnel fétido para o bairro
      ironicamente chamado Floresta
pode subir para as calçadas dos botecos copo-sujo
      para tomar uma caipirinha ou cachaça com groselha
pode folhear revistas com artistas globais ou astros
     do esporte ou atrizes grávidas ou goleiro psicopata
pode conversar com os guardas municipais com os
     guardas de trânsito com os encarregados de obras
      com os vendedores ambulantes com as mulheres da vida
pode ver arte grafiteira fila de táxi promoção de bíblias
      CDs gospels empórios de tabaco garrafas de cerveja
pode esperar o ônibus à direita de quem sobe ou
     pode chamar o táxi à esquerda de quem desce
vai achar decadente e espectral as fachadas dos prédios
     clássicos e gélidas e indiferentes as fachadas dos edifícios
     pós-pós-modernos que projetam talos de concreto e vidro
toda a nossa Belô (para os íntimos) é uma enorme
      pintura estampada num muro com reboque descascado
projetada do alto da rua Sapucaí sobre a Aarão Reis
     tendo em primeiro plano a mancha amarelecida
     da vetusta Estação e o Museu de Artes e Ofícios com restos
     de engenhos e engenhocas máquinas e maquinários
pode ver a silhueta dos prédios quase arranha-céus
     pintados sobre o azul manchado de fuligens
uma atordoante aquarela urbana
enquanto os carros passam ruidosos ensurdecem
     o deslizar dos vagões do metrô na entrada da estação central
constante ida e vinda de vagões vultos humanos
     pressa sacolas bonés de times ianques livros best-sellers
eis a cidade onde peregrinou Roberto Drummond e Cyro dos Anjos
    e Pedro Nava e Emílio Moura e Murilo Rubião e
     Adão Ventura e Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos
onde estátuas de escritores petrificados observam
     o ir e vir de pressa sacolas pastas de executivos
     catadores de papelão biscateiros batedores de carteira
basta atravessar o Viaduro Santa Teresa basta subir a
     rua da Bahia basta virar à esquerda no Mercado das Flores
basta de abastecer de informações turísticas
     basta atravessar a Rua Goiás basta atravessar a
      Avenida Augusto de Lima divisar o Condomínio Maletta
      vislumbrar o Castelinho gótico fotografar a
      fachada da Imprensa Oficial
subir Bahia e buscar o oásis da Praça da Liberdade
    agora centro cultural depois que o Governo Estadual
    se mudou para o Country Club, digo, Cidade Administrativa
atento para não ser atropelado na Gonçalves Dias
    ou esmagado na João Pinheiro ou assaltado na Bias Fortes
pode se chegar ao cinema-arte ao cinema-alternativo
    longe das padronizadas salas de cinema de shopping-center
    depois que os bispos e pastores compraram as salas
    de cinema espalhadas outrora no hipercentro
    Cine Odeon Cinema Brasil Cine Acaiaca
    Cine Tupis Pathé Glória Palladium Avenida
pode cruzar a Praça Sete pode sobreviver à Praça
    de Rodoviária pode vislumbrar o Acaiaca e as carrancas
    dos índios de concreto
pode fazer o sinal-da-cruz diante da fuliginosa
    igreja de São José pode deixar uma moedinha
     aos pés do mendigo mais próximo
pode esperar o domingo de manhã para caminhar
    na feira de artesanato entre mestres da capoeira
    entre vendedores de bijouterias entre artistas hippie 
    de cabelos trançado e chinelas sertanejas
pode peregrinar até a igreja da Boa Viagem
    tropeçando em flanelinhas e fezes de pitbulls
turistas chineses ianques argentinos franceses
    ingleses portugueses japoneses com câmeras
    blusas multicores óculos raybans carteiras cheias
    de cartões de crédito e olhares vazados de curiosidade
    na exposição de pernas morenas braços tatuados
    pés descalços shorts à mostra seios inchados
    nádegas transbordantes dentes faiscantes
ou um almoço no PF mais próximo com
    direito a uma 'caninha' e uma porção de fritas
    com rodelas de cebola e mostarda
ou um hot-dog gorduroso entre as mocinhas de
    bolsas floridas e chinelas singelas ou um hamburguer
    entre velhinhas com 10% de charme e 90% de cosméticos
    entre casais entre beijos e beijocas e outros lugares-comuns
meio ao trânsito que se desvia em ruas vielas becos
     e se paralisa em congestionamentos
nas avenidas demolidas e ampliadas
    nos viadutos povoados de mendigos e putas
    fedendo a mijo e vômito nas brumas noturnas
    de fumaça e fumacê
eis o tráfico de drogas e corrupção a olhos vistos
    só não vê quem não quer ou foi cegado pelos
    cacos de vidros ou ácidos sufúricos dos meninos e meninas
    de rua anjos e demônios vítimas e carrascos
Belô é uma aldeia grande, os transeuntes dizem,
    as mulheres traficam informações sobre casais
    e infidelidades e comentam as compras de
    fim-de-ano entre promessas de mercadorias
    e satisfação garantida
entre os olhares de vendedores de compradores
    de vencedores de perdedores de endinheirados
    e excluídos
pode ser que Vossa Senhoria se reconheça numa
foto desbotada de um sonho positivista-modernista
    a cidade planejada de Aarão Reis e que ficou
    só na ideia e no papel
com seu tabuleiro de xadrez infestado de restos
    humanos roedores baratas ratazanas assombrosas
    e guardas relapsos e bandidos geniais e loiras
    fantasmais e cemitérios-metrópoles de arte funérea
cidade-capital isolada entre cidades-dormitório
    e cidades-industriais e cidades-penitenciárias
    e cidades-turísticas e cidades-museu
    com novas chaminés e novas senzalas e novas
    casas grandes e novos cortiços e
Gruta da Maquiné igreja de São Francisco de Assis
   Lagoa dos Ingleses Mina de Morro Velho
   Aeroporto de Confins Museu da Inconfidência
   Casa dos Contos Palácio dos Governadores
    igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
    Santuário dos Senhor Bom Jesus de Matosinhos
    Adro dos Profetas em Congonhas
    Matriz de Nossa Senhora da Assunção
enquanto a vida barroca se resguarda no mundo
    pós-moderno de celulares e note-books e ipods
    se resguarda entre fibras ópticas os despachos
    de esquinas em bairros de classe média média
    e ciganas que trazem os amantes em 24 horas
    e pais-de-santo que curam e amaldiçoam mediante
    uma generosa oferenda
pode Vossa Excelência vagar confortavelmente
    em busca de diversão mulheres travestis boates motéis
    ao longo de avenidas interregionais alamedas escuras
    anéis rodoviários alças viárias marginais
obras superfaturadas de polpiticos da situação
    e da oposição de direita e de esquerda de centro
    e de conveniência
nisto que chamamos de cidade
mas não passsa de suburbanismo
gaiola de loucos neurotizados  e psicopatas
    em potencial basta que subam num carro importado
     e passem por cima de sinais placas radares pedestres
     guardas com bloquinho de multa na mão
a velocidade espasmódica da modernidade doentia
    incapaz de digerir a História ou se deixar digerir
     pela História com ou sem Ordem e Progresso
na deformidade de cobiça de eternidade e efemeridade
    querendo o Céu e o Crédito & Débito o Paraíso e condomínio de luxo
    a Redenção e o iate em Búzios o Trono do Altíssimo
    e a casa de campo com varanda colonial
neste vale entre mar de morros que chamaram
     de Belo Horizonte
mas nem se vê horizonte nenhum
     nem que Vossa Santidade suba ao morro
     à Praça do Papa onde cada polegada é
      'propriedade particular – não entre'
onde paga-se para respirar o ar e a fuligem
     e o privilégio de ser envenenado pelo carro
     último modelo de marca nipônica
e mesmo que se descrevesse todo o guia turístico
      de nossa bela vertical capital
Vossa Sapiência ainda se permitirá acreditar
    que tudo não passa de um cartão-postal
    que é vendido por alguns reais – entre 10 e 15
    dependendo do estabelecimento comercial -
    com imagem propagandística de 'cidade com o melhor
    nível de vida' ou algo assim – que a vida não para
    os problemas não acabam nem vão acabar
pois alguém precisa lucrar e precisa haver outra eleição.



BH, 28nov & 02dez10


Leonardo de Magalhaens


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