terça-feira, 25 de janeiro de 2011

sobre "João Ternura" - de Aníbal Machado



sobre “João Ternura” (1965)
romance de Aníbal Machado (1894-1964)



A apoteose trágica do Homem Cordial



            A figura do Homem Cordial, lembrada e discutida pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil” (1936), deriva de uma expressão do escritor Ribeiro Couto, também usada por Cassiano Ricardo, segundo informa o próprio Holanda, no sentido de uma 'glorificação' do 'pacato cidadão', de caráter brando e cheio de polidez. (1)

            Sendo simpático e modesto, em suma, 'cordial', o brasileiro evita violências e despreza as guerras (2), aceita pacificamente as mudanças e respeita as autoridades. Como poderia ser diferente no país onde a questão do trabalho é 'caso de polícia' e as revoluções são feitas 'de-cima-para-baixo'?

            No embate entre as forças tradicionalistas rurais feudais e os grupos urbanos quase-modernos, os cidadãos 'cordiais' procuram formar suas personalidades numa sociedade dita 'democrática' ocidental, porém mantendo laços de parentescos, saudades do paternalismo, medo de assumir o controle da própria vida, ânsia por produtos (e ideias) importadas. Deslocados, nunca adaptados, marginalizados, sempre excluídos, os 'cordiais' pagam o preço da sua 'cordialidade', ao acreditarem na 'cordialidade' dos 'homens importantes'. Uma ilusória 'polidez', toda falsa, a encobrir a famosa afronta: “Você sabe com quem você está falando?”(3)

            O homem 'cordial' sofre para ser 'cordial' no país dos 'homens cordiais'. Assim é o aventurado e desventurado Quixote modernista provinciano brasileiro João Ternura, o carismático protagonista do romance (de mesmo nome) do mineiro (de Sabará) Aníbal Machado, que dedicou décadas e angústias a escrita da obra (que foi publicada postumamente), destilando fina ironia e espírito ímpar de observação.

            Acompanhamos João Ternura praticamente desde o útero, o nascimento messiânico do herói, o conturbado e paradisíaco seio da família, a sexualidade em descoberta, os erros e acertos, o crescimento e constrangimento na vida da província, o desejo de conhecer outras terras. Tudo em blocos em fragmento, em suspiros, em desabafos, registrando em flashes a vida e as vicissitudes de João Ternura, tentando entender que 'mundo louco é este' em que veio cair. Uma ação que é elogiada hoje pode ser reprovada amanhã, um desejo incentivado ontem, pode ser sufocado hoje.

            Ele deseja 'liberdade'. Então o que faz? Vai para a cidade grande! Que auto-engano! Nas multidões do Rio de Janeiro à beira-mar Ternura somente encontra solidão. Nem o 'parente na cidade' é grande ajuda. Conselhos e reprovações não faltam: Ternura precisa “ter presença” e “respeitar as autoridades”. Importante: “Fale devagar. E com firmeza, mesmo que não tenha nenhuma convicção.”


            Conselhos que devem ajudar o pobre provinciano na dificuldade em adaptar-se a cidade de vida tumultuada recheada por uma multidão de anônimos, numa maré desassossegada do mar de faces. A ligação com a província e o passado? Sim, as lembranças, as saudades, e as cartas que a mãe ainda insiste em enviar, na espera de que o filho seja ajuizado, “Muito juízo, sim, meu amor?”, pois, mesmo à distância, a família educa e formata o indivíduo – não para mudar o mundo – mas para confortavelmente se encaixar, e 'ir levando a vida'.

            Claramente, o primo urbano passa a evitar o primo provinciano, enquanto os 'homens importantes' estão por perto. Ternura a se perguntar: “Os filhos dos importantes são também importantes?” (p. 117) Quem são os 'importantes'? “São os donos de fábricas, de bancos. Eles nunca vão para a guerra, mas mandam a gente ir. São quase divinos...” (p. 118) A constante ânsia, a sexualidade vulgar da cidade, onde homens e (principalmente) as mulheres são 'objetos' de admiração e cobiça. O desejo é incentivado, aumentado, canalizado para o consumo, deixando o cidadão em permanente insatisfação. “Depois que eu cheguei, aumentou a minha fome de tudo. Acho que ainda não peguei o jeito de viver aqui.” (p. 119)


            O 'homem cordial' não quer lutas, não quer lutar. Nem sabe porque está lutando! “Ternura disparou os primeiros tiros. Sem direção certa, só por disparar. Muito pesada a arma que lhe deram.” (pp. 123/24) Animados por uma 'excitação patriótica' os soldados trocam tiros, se matam, vivem um acontecimento (que depois será 'histórico'), “Com que delícia o mundo gratifica os seus heróis!” (p. 129) E quando a 'poeira abaixa', “A multidão festejava a vitória. Os que não se bateram a comemoravam com violência maior.” (p. 130) Mas quem lutou ainda tem dúvidas : “- Ó sergipano, pra que lado mesmo que nós estávamos combatendo?” (p. 130)

            Se os soldados não sabem – pobres ignaros, os nossos heróis! - as novas autoridades sabem muito bem! “Às duas da madrugada, sob a chuvinha miúda, acabava de nascer a República Nova. Seus numerosos padrinhos foram aparecendo e se apresentando.” (p. 131) Assim é a nossa (nossa?) Revolução de 1930, uma revolução quase-burguesa, algo trabalhista, feita de cima-para-baixo, “Façamos a revolução antes que o povo a faça”, teria dito o Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos.

            Mas a crueldade da cidade vai 'enquadrando' o singelo Ternura. “Ternura fingia interessar-se pela conversa dos homens. Espantava-se do calor com que se interessavam por coisas insignificantes. Invejava-lhes a segurança de viver, a alegria quase imbecil. E, sem presença, apagava-se.” (p. 136) Enquanto isso, mais cartas da mãe: uma voz que vem do mundo antigo... Um 'canto de sereia' para que Ternura retorne ao lar... (Quem se lembra da pequena Dorothy, em “O Mágico de OZ”, de L. F. Baum? Aquela que dizia, sempre saudosista, “Não há lugar igual a nossa casa”(there's no place like home) Saudosita, sim. Cada vez mais perdido: quando mais se adapta ao meio urbano, mais Ternura perde o Eu singelo do menino provinciano. “As coisas perdiam a consistência, fugiam. Ninguém lhe dava atenção, ninguém dava atenção a ninguém. Sentia-se à margem, como nos primeiros tempos depois da chegada.”(p.140)

            Na cidade que se assemelha a um labirinto, encontramos cenas dignas de um Kafka! Surreais e alegóricas, tal aquela em que Ternura vai ao banco na pretensão de trocar um cheque. O que ele encontra? Um mundo normatizado, burocrático, asséptico, artificial, todo um espaço ao qual o cidadão (alienado!) não tem qualquer acesso. Qualquer semelhança com “O Processo” e “O Castelo” é mera coincidência?)

            As pressões se acumulam de todos os lados. Os amigos, são outro exemplo. Tentam exercer uma influência sobre o pobre Ternura, cada um com suas perspectivas e manias. E Ternura sempre a reagir: “-Que é que vocês estão pensando? Que não sou um ser humano, mas um autômato, uma coisa?” (p. 168) Até porque a vida automática da cidade vem sempre cobrar seu preço! O tempo é dinheiro ('time is money!') e tudo funciona em torno do dinheiro. Que movimenta a vida acelerada da metrópole (que angustia em contraste com a 'vida besta' da província, segundo Drummon de Andrade)

            As passagens das ruas lembram algo de Baudelaire, mas principalmente do estilo do “João do Rio”, onde as ruas têm nomes, sobrenomes, sentimentos, ambiências, misérias, dramas, alegrias. Assim o espaço é sempre relativizado, comparado (outro destaque são as lendas e utopias da Amazônia – que tanto influenciaram Mário de Andrade, em “Macunaíma”, e Antonio Callado, em “Quarup”, por exemplo)

            Percebemos que João Ternura é realmente o 'nosso' Don Quixote, o 'nosso' Príncipe Michkin, é ele o fraco a se compadecer dos outros fracos, é o Viramundo, é o que prefere a solidão a tornar-se cúmplice da injustiça do mundo. (um contraponto é Nietzsche: não há 'bem' nem 'mal' – o mundo é assim mesmo: os fortes dominam, os fracos obedecem). O amigo Manuel é franco e direto:

 -Se você inventa de querer bancar o D. Quixote, vai ser um nunca acabar de surras. Tem muita gente apanhando na vida, Ternura. Em cada esquina há pelo menos meia dúzia de desgraçados precisando de socorro. Os 'fortes são estúpidos em geral, e pisam nos fracos. E você não tem o tipo nem a bravura de D. Quixote para defender os fracos.” (p. 203)

            A parte VI – a fase claramente modernista – é a apoteose do romance de Aníbal Machado , quando o carnaval no Rio de Janeiro faz cair as 'máscaras' da vida cotidiana e os médicos se tornam monstros, e os monstros usam fantasias de médicos. “Os gestos são livres e quase não há roupa!”e “Abaixo a lóooogica!”, os motes para o longo desfile de bizarrices, em nome de alguma crença ou ideologia, em busca de fiéis e fanáticos.

            Há toda uma paródia aqui: os discursos ironizam os academicismos, os arcaismos, os solecismos, os barbarismos. Ironiza os manifestos comunista, modernistas, futuristas, dadaístas, o que seja! Seja no tópico “Campo X Cidade”: “-Senhores, mais vacas e menos chaminés! Chega de arranha-céus! Chega de geometrias! Chega de asfixias!” (p. 226)

            Em época de Manifestos, a ironia é de todo válida! Por exemplo, o “Manifesto dos Não-Nascidos” (p. 233), “É verdade que não invejamos a vida que levais, tão posta à que sonhávamos. Mas bem que queríamos viver... oh, se queríamos!...” ou então, “o texto de um telegrama do futuro”: “Estamos fazendo força para te alcançar stop demora motivo últimas resistências antiga estrutura social bem como safadeza má-fé demagogia stop...” Manifestos e manifestos: não importa o 'teor': os manifestantes são prontamente perseguidos pelos 'agentes da Ordem Política e Social'. A Ordem precisa ser mantida! Então, os absurdos: o orador que discursa contra a “falta de silêncio” - enquanto ele mesmo está a quebrar o silêncio!

            Assim, o carnaval deixa trans-bordar tudo o que foi reprimido ao longo do ano normativo, normalpata, burocratizado. A vida que não pode ser vivida é re-criada em três dias de liberdade – ou melhor, 'libertinagem'. “A suspensão provisória das proibições leva o povo a praticar tudo o que secretamente deseja fazer durante o ano;” (p. 245). A lógica da Repressão cria um povo dividido entre corpo (instinto) e civilização (ordem), que ora vai a um extremo (libertinagem) a outro (ditadura). Assim diz Josias, o estudante reformista, “nós somos uns neuróticos, incapazes de encontrar os caminhos que levam à alegria de viver.” (p. 245) Neuróticos? Sim, todos. Personagens, povo, os leitores.

            As personagens são neuróticas por expressarem 'contigências', ao serem construídas por circunstâncias (“eu sou eu e minhas circunstâncias”, disse Ortega y Gasset), na representação de personalidades compartimentadas, incapazes de real diálogo. (Não chegam a ser 'alegóricas' ou 'caricaturais' como aquelas de Machado de Assis ou Lima Barreto)

            Se destacam Arouca, o subversivo, um socialista sério e taciturno, tentando explicar as razões de o povo aceitar a opressão; Silepse, o ser místico, a reclamar a 'volta a Deus' (e vai ficando agressivo, fanático, ao bradar aos demais: “Destruíram Deus?!... Bravos!”, como a dizer: 'vocês mataram Deus e então? O que fazer?'); Matias, o mais realista, 'pé no chão', a dizer que Ternura vive fora da realidade; Manuel, o prático, aquele que paga suas contas e respeita as regras, possui uma gráfica, tem clientes, um nome a zelar, assim não teoriza, vive em conformidade.

            Claramente, Ternura é o mais 'torturado', no sentido que encontramos em Dostoiévski (o ser que vivem em 'auto-tortura'). Até a quase-morte do protagonista é irônica e trágica, com uma visão do Inferno a lembrar Dante, ou Lautréamont, ou James Joyce, ou Umberto Eco, um Inferno cheio de zombadores, julgando sem-piedade, ao lado de um deus que ri! Deus vê a miséria humana e ri! (destaque para as páginas 268 a 276) O pobre 'homem cordial' morre e nem assim tem 'cordialidade' – vai para o outro mundo e é vaiado na eternidade!

            O romance de Aníbal Machado vem mostrar a impossibilidade de ser 'cordial' solitariamente na sociedade dos 'homens cordiais', onde aquele cheio de boa-vontade é logo explorado e humilhado pelos demais. Ser 'bom' – ao tentar apagar o incêndio com uma gota d'água – é arriscar-se a ser chamuscado, apedrejado, crucificado – seja por ação dos 'cruéis' ou dos 'indiferentes'. O que dói no romance é justamente essa descrença na 'boa-vontade' do coletivo. E que Ternura consiga despertar apenas desprezo ou compaixão. O que se equivale: acabamos por desprezar aqueles dignos de compaixão.


ago/set/09

revisão: nov/10

por Leonardo de Magalhaens





notas:


(1) “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o 'homem cordial'. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definitivo do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos patrões do convívio humano, informado no meio rural e patriarcal.” (“Raízes do Brasil”, pp. 146/47)


(2) “Não ambicionamos o prestígio de país conquistador e detestamos notoriamente as soluções violentas. Desejamos ser o povo mais brando e o mais comportado do mundo. (...) Tudo isso são feições bem características do nosso aparelhamento político, que se empenha em desarmar todas as expressões menos harmônicas de nossa sociedade, em negar toda espontaneidade nacional.” (“Raízes do Brasil”, p. 177)


(3) Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.” e também “E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo”(“Raízes do Brasil”, p. 147)



 
REFERÊNCIAS


COUTINHO, Afrânio. (org.) A Literatura no Brasil. Vol. 5 – Era Modernista. São Paulo: Global, 2004.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MACHADO, Aníbal M. João Ternura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. 10ª ed.


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Alma do Vinho E Recolhimento - Baudelaire



 
Charles Baudelaire


 
A Alma do Vinho


Assim a alma do vinho cantava nas garrafas:
'Homem desamparado, a ti ofereço, de verdade,
Desta prisão de vidro que agora me abafa,
Um canto de luz e de fraternidade!

'Sei o quanto é preciso, na colina de chamas,
De trabalho, suor e sol abrasante
Para me gerar a vida e dar-me a alma,
Mas não serei ingrato ou tratante,

'Pois muito me alegra quando desço
Goela adentro dum homem cansado,
E que doce tumba é o peito que aqueço,
Bem melhor do que nas adegas guardado.

'Ouvirás ecoar as cantigas aos domingos
E a esperança que canta em meu peito?
Juntos a mesa celebram todos comigo,
Poderás me louvar e estarei satisfeito;

'Eu acendo os olhos da mulher feliz;
Ao teu filho concedo força e vigor
E serei para esse atleta o que quis:
O óleo que fortalece todo lutador.

'Serei bebido, tal natural ambrosia,
Grão precioso cultivado pelo Semeador,
Para que nasça do nosso amor a poesia
Que aos Céus se eleverá tal uma rara flor.


trad./ transc. Leonardo de Magalhaens


 

L'Âme du Vin (CVII)


Un soir, l'âme du vin chantait dans les bouteilles:
«Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité!

Je sais combien il faut, sur la colline en flamme,
De peine, de sueur et de soleil cuisant
Pour engendrer ma vie et pour me donner l'âme;
Mais je ne serai point ingrat ni malfaisant,

Car j'éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d'un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.

Entends-tu retentir les refrains des dimanches
Et l'espoir qui gazouille en mon sein palpitant?
Les coudes sur la table et retroussant tes manches,
Tu me glorifieras et tu seras content;

J'allumerai les yeux de ta femme ravie;
À ton fils je rendrai sa force et ses couleurs
Et serai pour ce frêle athlète de la vie
L'huile qui raffermit les muscles des lutteurs.

En toi je tomberai, végétale ambroisie,
Grain précieux jeté par l'éternel Semeur,
Pour que de notre amour naisse la poésie
Qui jaillira vers Dieu comme une rare fleur!»


Les Fleurs du Mal


reler ao som de






Charles Baudelaire


 
Recolhimento

Cuidado, minha dor, seja mais tranquila.
Tu reclamas a Tarde; eis aqui, ela vem:
Uma atmosfera obscura envolve a vila,
A alguns traz a paz, a outros entretem.

Enquanto dos mortais a multidão vil,
Sob o açoite do Prazer, carrasco vilão,
Vai colher remorsos em festa servil,
Venha, minha dor, leve-me pela mão,

Longe de todos. Veja os tempos defuntos
Nas bordas do céu, em vestes surradas;
Emergir das águas o Pesar profundo;

O sol agoniza, luz enfim declinada;
E, tal um longo lençol no Oriente,
Ouça, querida, a doce Noite fremente.


trad/ transc. Leonardo de Magalhaens

 


Recueillement (CLIV)


 
Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille.
Tu réclamais le Soir; il descend; le voici:
Une atmosphère obscure enveloppe la ville,
Aux uns portant la paix, aux autres le souci.

Pendant que des mortels la multitude vile,
Sous le fouet du Plaisir, ce bourreau sans merci,
Va cueillir des remords dans la fête servile,
Ma Douleur, donne-moi la main; viens par ici,

Loin d'eux. Vois se pencher les défuntes Années,
Sur les balcons du ciel, en robes surannées;
Surgir du fond des eaux le Regret souriant;

Le soleil moribond s'endormir sous une arche,
Et, comme un long linceul traînant à l'Orient,
Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche.


Les Fleurs du Mal


domingo, 16 de janeiro de 2011

sobre O Amanuense Belmiro - de Cyro dos Anjos




sobre O Amanuense Belmiro (1937)
romance de Cyro dos Anjos (MG, 1906-RJ, 1994)


O Eu no Olhar dos Outros


            A narrativa enquanto testemunho, enquanto fala de si-mesmo, pode ser aquela do confessional, do drama íntimo, ou aquela do drama externo que reflete (ou nele é projetado) uma angústia interna. Em ambos o Narrador procura descrever-se, seja nas próprias palavras (e conceitos), seja nas perspectivas dos outros (os opositores, coadjuvantes, etc)

            As formas de 'diário' ou 'memórias' são as mais comuns, quando há um tom confessional, sendo o primeiro, mais 'presentificado' (usa mais o tempo presente), enquanto o segundo usa mais construções no pretérito (um passado relembrado/recuperado), variando assim a distância entre um eu-de-hoje e eu-de-ontem.

            Pode-se narrar sobre si-mesmo, falando de si-mesmo, mas igualmente ao narrar a vida dos outros. A voz narrativa sendo memoralista, numa 'paródia' de 'diários'. Assim é o romance “O Amanuense Belmiro”, do mineiro Cyro dos Anjos, que mistura diário e memórias, ao retratar a vida na jovem Belo Horizonte dos anos 20 e 30, ao mesmo tempo que relembra (e compara) com a vida rural (a representar os belorizontinos de origem provinciana) O que mostra uma certa influência de Machado de Assis, de “Memorial de Aires”, ao situar-se entre dois ícones da 'memoralística': Marcel Proust e Pedro Nava.

            Assim como percebido nas obras de Proust e Nava, há toda uma 'miscelânea' de discursos literários e (quase) ficcionais, sendo um quase-romance que é uma quase-diário, que é quase-memórias... Toda aquela sensação (e angústia) de fuga do tempo, toda uma vontade de agarrar a existência nas foto-narrativas da memória, do re-contar para re-vivenciar. O eu-de-hoje desesperado para re-encontrar com o eu-de-ontem, ou resgatar uma identidade que se perde dia a dia. Há um narrador ('Belmiro sofisticado') que escreve e confessa sobre um protagonista (ele-mesmo-de-outrora) ('Belmiro patético') que viveu, sentiu, fantasiou num tempo já passado – e perdido.

            Outra obra na tessitura de referências (e lembranças) é “A Náusea”, diário existencialista publicado por Jean-Paul Sartre, e assinado por Antoine Roquetin, principalmente no trecho abaixo,onde Belmiro desabafa lamentações:

“Volto a preocupar-me com a velha questão: que vim fazer neste mundo? Até agora nada realizei. E, para diante, são menores as possibilidades de qualquer realização. Serei, mesmo, apenas o tal arbusto da chapada?”(p. 220)

numa referência ao 'caniço pensante' de Pascal? (“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante”, L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant. Pensées /Pensamentos)

            Retrata a fragilidade física e mental do homem, quando o saber traz infelicidade. De repente, é melhor ser mesmo ignorante e 'curtir a vida': “ignorância é meia felicidade” (p. 222)

            Considerando-se o período da narrativa – do natal de 1934, passando pelo carnaval de 1935, a intentona comunista, até o início de 1936, num momento de transição – a capital sai da província e se instalavanuma das primeiras cidades planejadas do Brasil, e o êxodo ruralcuidava em encher a cidade planificada para um 'número ideal'de habitantes. Há todo um saudosismo do tempo do campo (em Vila Caraíba) : evidenciando o ser urbano versus o ser rústico, rural, campestre. O urbano poluído de pensares em constraste com o rural cheio de energias.



Os Outros


            As personas, as personagens, os Outros, são igualmente importantes para situarem (e criarem) o Eu por contraste (Eu que não sou o Outro), pois Belmiro sabe que é indeciso e sem convicções, apenas quando se compara com o metafísico Silviano e com o revolucionário Redelvim. Aliás, são as opções políticas (lembramos que os anos 20 e 30 foram de radicalização política-ideológica que levou a eclosão da Segunda Grande Guerra, 1939-1945),


“Passaram ao terreno da política. Desde muito, as discussões vêm azedando nossa pequena roda e vejo que ela não tardará a dissolver-se, pois há forças de repulsão, mais que afinidades, entre estes inquietos companheiros. Enquanto o Glicério e Silviano se inclinam para o fascismo, Redelvim e Jandira tendem para a esquerda. Só eu e o Florêncio ficamos calados, à margem.” (p.53)


            Metafísico, nietzschiano, obcecado com o 'mito faústico', mitomaníaco, Silviano é um desafio para Belmiro (assim como Sancho Pança tenta entender Don Quixote, Watson tenta entender Sherlock, assim como Emilio tenta compreender Stefano, em Senilidade, de Italo Svevo, ou Serenus se intriga com Adrien, em Doktor Faustus, de Thomas. Mann ), uma incógnita que o protagonista nunca soluciona. Assim o olhar de Belmiro desce aos demais, mais 'simples', como é o caso de Glicério, o arrivista, sem a erudição de Silviano ou o fervor de Redelvim, mas preocupado em 'frequentar as rodas sociais', e acaba abandonando a literatura em prol de uma carreira burguesa.

            Assim, a identidade de Belmiro é dada pelos outros: para Redelvim, Belmiro é céptico, pequeno burguês; para Silviano é um 'sentimentalóide plebeu'. Mas todos se enganam, pois Belmiro é mais um 'sem-rumos', igual a um Don Quixote, um João Ternura (do romance homônimo de Aníbal Machado), não um agente de uma ou outra ideologia. Como é caso dos amigos, sempre buscando um 'front' onde se situar. Até a Literatura tem uma face ideológica, como pode se ver na posição dos poetas, a ser revista na República Socialista, por Redelvim: “Os poetas (são) 'traficantes de tóxicos', sustentados pelo capitalismo para entorpecer o espírito de rebeldia das massas...” (p. 89)

            O que Belmiro não aceita é um mundo fechado em 'definições', como desejam as ideologias (p.ex. 'quem não é de esquerda é de direita', e vice-versa),


“Por que hão de classificar os homens em categorias ou segundo doutrinas? O grande erro é pretender prendê-los a um sistema rígido. Socialismo, individualismo, isso aquilo. // As ideias de um homem podem não comportar-se dentro dessas divisões arbitrárias. (...) O que é injusto é quererem extorquir de nós uma definição, quando nós a procuramos, em vão, sem a encontrarmos.” (p. 112)


            Belmiro quer escrever 'memórias' mas acaba por escrever 'romance' (p. 95), onde as lembranças são transmutadas em 'ficções', e os Outros são, de fato, projeções do Eu, e que fogem ao controle: “Estive refletindo, esta tarde, em que, no romance, como na vida, os personagens é que se nos impõem. A razão está com Monsieur Gide: eles nascem e crescem por si, procuram o autor, insinuam-se-lhe no espírito.” e também,


 “Não se trata, aqui, de romance. É um livro sentimental, de memórias. Tal circunstância nada altera, porém, a situação. Na verdade, dentro do nosso espírito as recordações se transformam em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, caa vez mais romance. Romance trágico, romance cômico, romance disparatado, conforme cada um de nós, monstros imaginativos, é trágico, cômico ou absurdo.”


            Em contraste com o romance (que é idealização, ficção), o diário não é romance, é um painel da vida complicada. As notas de pensamentos soltos e existencialistas, de um 'burocrata lírico' é que acabam por salvar Belmiro, quando da eclosão da Intentona Comunista, em fins de 1935. O delegado ao ler as notas (o romance em-si) só encontra um 'cidadão inofensivo'. E realmente, Belmiro mesmo se compara a Don Quixote, o “Cavaleiro da Triste Figura”, na tentativa de “dar sentido a uma vida sem sentido”, a perseguir uma Donzela Arabela, além de moinhos de vento.

            Qual a solução? No terceiro parágrafo da obra está a fala de Silviano: “A solução é a conduta católica”, ou seja, não podendo ter tudo, renuncia-se a tudo. Refugia-se num mosteiro. É a mesma solução encontrada pelo narrador-protagonista (que também escreve um 'diário') de “O Braço Direito”, de Otto Lara Resende, e pelo Eduardo de “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. “A conduta católica, repetiu. Isto é, fugir da vida no que ela tem de excitante.” Caso contrário, viver a vida é fazer 'concessão à Besta'. (Na metáfora, entenda-se 'aos prazeres da carne')

            Todo um dilema existencial que torna-se ironia e sarcasmo em “Hilda Furacão”, romance do também mineiro Roberto Drummond, onde o padreco vê-se seduzido pela 'figura pecaminosa' da jovem prostituta, que 'devora' os homens na zona boêmia.

            Ao contrário de muitos outros, convertidos ou des-convertidos, para Cyro dos Anjos, o Belmiro, a literatura é uma 'tábua de salvação', “Venho da rua oprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico” (p. 198), o que está no contra-ponto de um Carlos Drummond de Andrade, a escrever; “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”, onde a Escrita surge como um obstáculo a realização pessoal, tolhendo energias vitais do Autor, mera sombra de um Texto.


            É este o fenômeno do observar-se: uma segmentação do Eu: o eu-de-agora, na plateia, vê o eu-de-ontem lá no palco. A Escrita surge como a descrição de si-mesmo, em comparação (e atrito e conflito) com os Outros. Assim o aposentado Conselheiro Aires do “Memorial de Aires”, que tal um Ricardo Reis pessoano dedica-se a observar o 'espetáculo da vida'. Estes incentivam (e desafiam) a um olhar no espelho (do tipo: “serei o que eles pensam que eu sou”?)


“Já não encontro, no ato de escrever, a satisfação de outros tempos. Pouco há, também, que escrever. Continuar a acompanhar a vida dos outros? Isso seria interminável. A vida dos amigos apenas se me revelou quando incidiu na minha. Jamais entrei nos seus domínios íntimo, e se mergulhei a fundo em Silviano, foi porque nele encontrei possíveis itinerários para as minhas incertezas. Só conhecemos, aliás, a vida alheia pelos seus pontos de incidência com a nossa: o mais é conjetura ou romance. Não tenciono escrever romance.”
                                                                                          (pp. 209/210)


            Nem a vida, nem a Escrita parece ser favoráveis ao desiludido Belmiro, sem amigos sem a donzela idealizada, “Já não é donzela, nem Arabela.” (p. 226) Sua razão de existência (será a construção do Eu? A preocupação com os Outros? A conquista de uma companheira? Uma carreira de ascensão social?) é sempre problematizada e deixada em suspenso (em 'sursis' existencial), uma vez que Belmiro não aceita as rotulações e definições externas, os meandros do circo social que ele ironiza com amargura. Sem os amigos, preocupados com seus êxitos e fracassos pessoais, sobra a companhia do humilde Carolino, serviçal na repartição. “Que faremos, Carolino amigo?

            O narrador Belmiro (ou o autor Cyro dos Anjos) não resolve plenamente nenhuma das questões levantadas (afinal, responder seria decidir-se por um dos lados, e perder-se-ía o tom 'dialogístico') e deixa o leitor dentro do redemoinho de perspectivas, nenhuma delas totalizando, nenhuma delas servindo de 'guia'. Resta apenas o homem que hesita, o Hamlet dentro de cada pensador.



nov/09

Leonardo de Magalhaens




REFERÊNCIAS


ANJOS, Cyro dos Anjos. O Amanuense Belmiro. Rio de Janeiro: Globo, 2006.


SANTOS, Luis Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, Tempo e Espaços Ficcionais. Martins Fonte, 2001.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

diante da paisagem urbana de BH




Poema de ocasião diante da paisagem urbana de Belo Horizonte

(releitura-paródia do poema “Westberlinstadtlandschaftsgelegenheitsgedicht
do poeta alemão Helmut Heissenbüttel (1921-1996))


quando se desce da estação de metrô ali na Praça da Estação
    pode seguir pelo cartão-postal para americano ver
    com direito a chafariz luminoso e leões de pedra
mas tome cuidado pois elementos suspeitos
     se deslocam pelas calçadas sujas de escarros
pode atravessar um túnel fétido para o bairro
      ironicamente chamado Floresta
pode subir para as calçadas dos botecos copo-sujo
      para tomar uma caipirinha ou cachaça com groselha
pode folhear revistas com artistas globais ou astros
     do esporte ou atrizes grávidas ou goleiro psicopata
pode conversar com os guardas municipais com os
     guardas de trânsito com os encarregados de obras
      com os vendedores ambulantes com as mulheres da vida
pode ver arte grafiteira fila de táxi promoção de bíblias
      CDs gospels empórios de tabaco garrafas de cerveja
pode esperar o ônibus à direita de quem sobe ou
     pode chamar o táxi à esquerda de quem desce
vai achar decadente e espectral as fachadas dos prédios
     clássicos e gélidas e indiferentes as fachadas dos edifícios
     pós-pós-modernos que projetam talos de concreto e vidro
toda a nossa Belô (para os íntimos) é uma enorme
      pintura estampada num muro com reboque descascado
projetada do alto da rua Sapucaí sobre a Aarão Reis
     tendo em primeiro plano a mancha amarelecida
     da vetusta Estação e o Museu de Artes e Ofícios com restos
     de engenhos e engenhocas máquinas e maquinários
pode ver a silhueta dos prédios quase arranha-céus
     pintados sobre o azul manchado de fuligens
uma atordoante aquarela urbana
enquanto os carros passam ruidosos ensurdecem
     o deslizar dos vagões do metrô na entrada da estação central
constante ida e vinda de vagões vultos humanos
     pressa sacolas bonés de times ianques livros best-sellers
eis a cidade onde peregrinou Roberto Drummond e Cyro dos Anjos
    e Pedro Nava e Emílio Moura e Murilo Rubião e
     Adão Ventura e Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos
onde estátuas de escritores petrificados observam
     o ir e vir de pressa sacolas pastas de executivos
     catadores de papelão biscateiros batedores de carteira
basta atravessar o Viaduro Santa Teresa basta subir a
     rua da Bahia basta virar à esquerda no Mercado das Flores
basta de abastecer de informações turísticas
     basta atravessar a Rua Goiás basta atravessar a
      Avenida Augusto de Lima divisar o Condomínio Maletta
      vislumbrar o Castelinho gótico fotografar a
      fachada da Imprensa Oficial
subir Bahia e buscar o oásis da Praça da Liberdade
    agora centro cultural depois que o Governo Estadual
    se mudou para o Country Club, digo, Cidade Administrativa
atento para não ser atropelado na Gonçalves Dias
    ou esmagado na João Pinheiro ou assaltado na Bias Fortes
pode se chegar ao cinema-arte ao cinema-alternativo
    longe das padronizadas salas de cinema de shopping-center
    depois que os bispos e pastores compraram as salas
    de cinema espalhadas outrora no hipercentro
    Cine Odeon Cinema Brasil Cine Acaiaca
    Cine Tupis Pathé Glória Palladium Avenida
pode cruzar a Praça Sete pode sobreviver à Praça
    de Rodoviária pode vislumbrar o Acaiaca e as carrancas
    dos índios de concreto
pode fazer o sinal-da-cruz diante da fuliginosa
    igreja de São José pode deixar uma moedinha
     aos pés do mendigo mais próximo
pode esperar o domingo de manhã para caminhar
    na feira de artesanato entre mestres da capoeira
    entre vendedores de bijouterias entre artistas hippie 
    de cabelos trançado e chinelas sertanejas
pode peregrinar até a igreja da Boa Viagem
    tropeçando em flanelinhas e fezes de pitbulls
turistas chineses ianques argentinos franceses
    ingleses portugueses japoneses com câmeras
    blusas multicores óculos raybans carteiras cheias
    de cartões de crédito e olhares vazados de curiosidade
    na exposição de pernas morenas braços tatuados
    pés descalços shorts à mostra seios inchados
    nádegas transbordantes dentes faiscantes
ou um almoço no PF mais próximo com
    direito a uma 'caninha' e uma porção de fritas
    com rodelas de cebola e mostarda
ou um hot-dog gorduroso entre as mocinhas de
    bolsas floridas e chinelas singelas ou um hamburguer
    entre velhinhas com 10% de charme e 90% de cosméticos
    entre casais entre beijos e beijocas e outros lugares-comuns
meio ao trânsito que se desvia em ruas vielas becos
     e se paralisa em congestionamentos
nas avenidas demolidas e ampliadas
    nos viadutos povoados de mendigos e putas
    fedendo a mijo e vômito nas brumas noturnas
    de fumaça e fumacê
eis o tráfico de drogas e corrupção a olhos vistos
    só não vê quem não quer ou foi cegado pelos
    cacos de vidros ou ácidos sufúricos dos meninos e meninas
    de rua anjos e demônios vítimas e carrascos
Belô é uma aldeia grande, os transeuntes dizem,
    as mulheres traficam informações sobre casais
    e infidelidades e comentam as compras de
    fim-de-ano entre promessas de mercadorias
    e satisfação garantida
entre os olhares de vendedores de compradores
    de vencedores de perdedores de endinheirados
    e excluídos
pode ser que Vossa Senhoria se reconheça numa
foto desbotada de um sonho positivista-modernista
    a cidade planejada de Aarão Reis e que ficou
    só na ideia e no papel
com seu tabuleiro de xadrez infestado de restos
    humanos roedores baratas ratazanas assombrosas
    e guardas relapsos e bandidos geniais e loiras
    fantasmais e cemitérios-metrópoles de arte funérea
cidade-capital isolada entre cidades-dormitório
    e cidades-industriais e cidades-penitenciárias
    e cidades-turísticas e cidades-museu
    com novas chaminés e novas senzalas e novas
    casas grandes e novos cortiços e
Gruta da Maquiné igreja de São Francisco de Assis
   Lagoa dos Ingleses Mina de Morro Velho
   Aeroporto de Confins Museu da Inconfidência
   Casa dos Contos Palácio dos Governadores
    igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
    Santuário dos Senhor Bom Jesus de Matosinhos
    Adro dos Profetas em Congonhas
    Matriz de Nossa Senhora da Assunção
enquanto a vida barroca se resguarda no mundo
    pós-moderno de celulares e note-books e ipods
    se resguarda entre fibras ópticas os despachos
    de esquinas em bairros de classe média média
    e ciganas que trazem os amantes em 24 horas
    e pais-de-santo que curam e amaldiçoam mediante
    uma generosa oferenda
pode Vossa Excelência vagar confortavelmente
    em busca de diversão mulheres travestis boates motéis
    ao longo de avenidas interregionais alamedas escuras
    anéis rodoviários alças viárias marginais
obras superfaturadas de polpiticos da situação
    e da oposição de direita e de esquerda de centro
    e de conveniência
nisto que chamamos de cidade
mas não passsa de suburbanismo
gaiola de loucos neurotizados  e psicopatas
    em potencial basta que subam num carro importado
     e passem por cima de sinais placas radares pedestres
     guardas com bloquinho de multa na mão
a velocidade espasmódica da modernidade doentia
    incapaz de digerir a História ou se deixar digerir
     pela História com ou sem Ordem e Progresso
na deformidade de cobiça de eternidade e efemeridade
    querendo o Céu e o Crédito & Débito o Paraíso e condomínio de luxo
    a Redenção e o iate em Búzios o Trono do Altíssimo
    e a casa de campo com varanda colonial
neste vale entre mar de morros que chamaram
     de Belo Horizonte
mas nem se vê horizonte nenhum
     nem que Vossa Santidade suba ao morro
     à Praça do Papa onde cada polegada é
      'propriedade particular – não entre'
onde paga-se para respirar o ar e a fuligem
     e o privilégio de ser envenenado pelo carro
     último modelo de marca nipônica
e mesmo que se descrevesse todo o guia turístico
      de nossa bela vertical capital
Vossa Sapiência ainda se permitirá acreditar
    que tudo não passa de um cartão-postal
    que é vendido por alguns reais – entre 10 e 15
    dependendo do estabelecimento comercial -
    com imagem propagandística de 'cidade com o melhor
    nível de vida' ou algo assim – que a vida não para
    os problemas não acabam nem vão acabar
pois alguém precisa lucrar e precisa haver outra eleição.



BH, 28nov & 02dez10


Leonardo de Magalhaens