quarta-feira, 30 de novembro de 2016

vitrines - poema by LdeM







vitrines



Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

'A Flor e a Náusea' [Carlos Drummond de Andrade]



pelas ruas corações jovens mergulhados em dúvidas
anseios solitários despertos na névoa
fissuras em suas almas inquietas
sentindo as lágrimas fluirem em miséria comum


vivendo em círculos o cidadão sonãmbulo
aprende e passa adiante a repressão
em mil padrões já enraizados
as mesmas mentiras e vendidas farsas
a surgirem como novíssima verdade


rangendo os dentes, ruminando as mesmas aflições
faces orvalhadas pela cruel insônia
deformadas por íntimo tormento
ilusões jogadas no cassino das ambições


contemplamos as vitrines iluminadas
o brilho de fina seda boquitas rubras
velhas promessas ordns murmuradas
esquecemos o peso da desigualdade
sedamos a temida amargura da queda


pelas ruas passeiam sólidas mágoas recolhidas
vidas sem sentido encaram a realidade
crianças sem lar regurgitam o fel
num piscar de olhos o punhalar da boca faminta


aceitando a servidão sob sorrisos
velhos clamores que compreendemos
manipulando os egos sensíveis
afastando qualquer dúvida e senso
degustar preconceitos de berço à cova


brisas metálicas redemoinham o lixo das praças
desvelam as imagens da corrupção
por trás dos sorrisos dos cartazes
um inocente cidadão ressona com sangue nas mãos.




versão: 30nov16



leonardo de magalhaens







segunda-feira, 21 de novembro de 2016

3 poemas de VINICIUS LIMA em Animais Floridos







VINICIUS LIMA




jornalista, ensaísta, tradutor e poeta


Londrina / Paraná




          "sou um vagabundo sujo de fuligem e pés alados
          sou uma tempestade perdida dentro de um missal"





o menino percorre a floresta de sonhos
os carvalhos choram suas seivas
e o menino atravessa a noite
com os olhos minando besouros
sombras iluminam a ponte oxidada
madeira negra suspensa no ar
sob o rio prateado
as águas lambem as mãos
queimam e se renovam
enquanto cavalos bebem o torrão de luz
que de dentro do menino brota



...







eu não semeio os cavalos
nem sangro a erra com fé ou ferro
aqui tudo brota do sonho da libélula
o vento das árvores sopra meus olhos
suave seiva que escorre entre os dedos
e penteia os cabelos
comecei a escutar o idioma das plantas
que atravessa meu fõlego
e lambe minha língua:
"a vida nasce e morre dentro do olho rochoso"
e o perfume do musgo me atravessa






...





erguer um muro entre o que existo e o que invento
                                              pra depois demolir
imaginação é um cão caçando o próprio vulto
os espectros de luz dançam na parede
                                           e dentro de minha cicatriz
os mortos desviam-me o olhar pois estremeço
                                        como folha ou denso arbusto no
outono azul
com as mãos pra trás cruzadas nas costas
                                         a sombra esconde seus tentáculos
expande limites até os grãos invisíveis do ar
                                                     colhidos pela língua
torrão energético dormente no núcleo animal





em Animais Floridos / Anome, 2016






mais em http://www.mallarmargens.com/2013/05/6-poemas-de-vinicius-lima.html



quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O CARVALHO E O CANIÇO - fábula de La Fontaine







imagem : pintura de Gustave Doré [sec. 19]




 
O  CARVALHO  E  O  CANIÇO




La Fontaine [sec. 17]




- Bem podes te queixar da Natureza,
disse o Carvalho ao tímido Caniço.
- Ela, em vez de te dar a fortaleza
de um carvalho, te fez assim, magriço.
Até mesmo um pardal, que nada pesa,
te faz curvar a espinha, facilmente.
Já eu, de fronte erguida e com nobreza,
enfrento o furacão galhardamente!


- Por teres tão bondoso coração
sentes pena de mim - disse o Caniço.
- Mas não precisa tal preocupação,
uma vez que, mostrando-me submisso,
enfrento com vantagem o furacão:
vergo e não quebro. Tu, enquanto isso,
corres o risco de quebrar.



                                  E então
um vento forte passou a soprar,
tudo arrastando no seu turbilhão.
O Caniço vergou-se sem quebrar.
Já o Carvalho, sem poder vergar,
foi arrancado e desabou no chão.




Às vezes ter bom jogo de cintura
é mais vantagem que musculatura.





trad. Ferreira Gullar





in Fábulas de La Fontaine / Revan, 1997.









Le Chêne et le Roseau


Le Chêne un jour dit au roseau :
Vous avez bien sujet d'accuser la Nature ;
Un Roitelet  pour vous est un pesant fardeau.
            Le moindre vent qui d'aventure
            Fait rider la face de l'eau,
            Vous oblige à baisser la tête :
Cependant que mon front, au Caucase pareil,
Non content d'arrêter les rayons du soleil,
            Brave l'effort de la tempête.
Tout vous est aquilon ; tout me semble zéphir .
Encor si vous naissiez à l'abri du feuillage
            Dont je couvre le voisinage,
            Vous n'auriez pas tant à souffrir :
            Je vous défendrais de l'orage ;
            Mais vous naissez le plus souvent
Sur les humides bords des Royaumes du vent.
La Nature envers vous me semble bien injuste.
 Votre compassion, lui répondit l'Arbuste ,
Part d'un bon naturel ; mais quittez ce souci.
     Les vents me sont moins qu'à vous redoutables.
Je plie, et ne romps pas. Vous avez jusqu'ici
            Contre leurs coups épouvantables
            Résisté sans courber le dos ;
Mais attendons la fin. Comme il disait ces mots,
Du bout de l'horizon accourt avec furie
            Le plus terrible des enfants
Que le Nord eût porté jusque-là dans ses flancs.
            L'Arbre tient bon ; le Roseau plie.
            Le vent redouble ses efforts,
            Et fait si bien qu'il déracine
Celui de qui la tête au ciel était voisine,
Et dont les pieds touchaient à l'empire des morts.




sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Mais um dia [fragmentos] by Carlos Felipe Moisés








CARLOS FELIPE MOISÉS




Mais um dia
  (fragmentos)



Um tiro no escuro, louca
disparada do carro a zunir
dentro da noite,
um piscar de olhos --
e a luz do novo dia ilumina
a oficina do corpo.
O mesmo corpo feito de alma nua,
sangue e humores vários.
Um novo dia igual aos dez mil
novecentos e cinqüenta já percorridos,
gastos à mesa dos bares,
a acumular nas retinas
a imagem velha dos insetos
roendo a carcaça do dia,
jogada na calçada.
                           Insetos
assustados, à espera do bote,
à espera do berro, à espera
do sapo que os engole
          (engoliu!)
e eles não sabem e seguem,
a roer as migalhas grudadas
nas tripas do batráquio.
           Dez mil
novecentos e cinqüenta dias
consumidos à distância,
no silêncio do quarto onde rodopia,
há trinta anos,
a mesma velha inútil melodia.
Rodopia nada!
                  Explode
em gumes,
não resiste ao punho cerrado
que rompe a vidraça
e atravessa a neblina,
só para alcançar no arbusto em frente
o bago murcho que volta
e se espreme entre os dentes
e verte uma gota,
                      uma só,
a gota perdida
do ódio por tudo e por nada.
Ódio só afago,
inofensivo, guardado no fogo
brando em que me afago
há dez mil
novecentos e cinqüenta dias.
 





em http://www.jornaldepoesia.jor.br/cfm3p.html#maisumdia





mais em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_felipe_moises.html