terça-feira, 4 de agosto de 2015

Sobre a Geração Beat e os seus precursores norte-americanos


 












Sobre a Geração Beat e os seus precursores norte-americanos:

Emerson, Thoreau, Whitman, John Muir, Jack London,

William Carlos Williams



Um diálogo com Geração Beat [2009] e Os Rebeldes [2014]
 
obras de Claudio Willer [SP, 1940-] poeta, tradutor, crítico literário





      Os Precursores

     Muito foi escrito sobre os ícones da chamada Geração Beat, suas biografias e aventuras, seus escritos e visões, como ousaram contra o conservadorismo, e sobre quem eles influenciaram, enquanto precursores da contracultura. Agora é momento de abordar aqueles que influenciaram os autores da Beat Generation, quais seus autores de cabeceira, com quem dialogavam, com quem duelavam.

     Percebemos que a ênfase dada pelo autor Claudio Willer é aquela nos místicos e gnósticos, nos fundadores de seitas, dados às iluminações místicas. Não aborda aqueles mais inclinados a uma iluminação profana, a la surrealista (como assinala André Breton, e ressalta Walter Benjamin), que se destacam, enquanto cidadãos conscientes, da tutela do Estado massificante e imperialista.


     Aqui veremos as influências no contexto norte-americano, com as teses sobre o ecologismo, a integração do humano com a Natureza (ainda que idealizada), uma fuga da sociedade, baseada em denúncia social, em desencanto com a vida moderna. Assim uma busca de vida transcendental, além do cotidiano rotineiro, um desejo de perambular, desbravar, viajar, com idealização da vida rural ou do Oeste selvagem. Numa vida de nomadismo, sem se prender a compromissos e normas do establishment, ou do status quo, a ouvir o eco do romantismo (ver a figura do 'bom selvagem' de Rousseau), o que leva a um não-conformismo, ao ponto de uma vida transgressora (isto é, para os pregadores da moral vigente).

     Assim, além do misticismo, da gnosis, e do budismo, da cosmovisão zen, do xamanismo, há o contexto da própria literatura norte-americana, além daqueles já apontados como influenciadores, tais como o pensador francês iluminista Jean-Jacques Rousseau [1712-1778], os britânicos românticos William Blake [1757-1827] e Percy B. Shelley [1792-1822], o francês simbolista Arthur Rimbaud [1854-1891], o pensador alemão Friedrich Nietzsche [1844-1900] e o romancista russo Feódor Dostoiévski [1821-1881]. Todos autores de vozes ativas sobre o pensamento e a escrita dos autores da Beat, mas num contexto externo, europeu ou asiático. Mas quais pavimentaram o caminho na própria terra?

     É na própria América que destacamos a importância das obras dos precursores, tais como o pensador Ralph W. Emerson [1803-1882] com seu transcendentalismo, onde a crítica ao racionalismo, ao mundo do trabalho mecanizado, ao cotidiano rotineiro, à economia competitiva, em suma, ao status quo não tendia para o espiritualismo ou misticismo, ou doutrinas religiosas, mas a uma valorização do intuitivo, do idealismo, do pensamento livre, da solidão criativa, para que o indivíduo soubesse olhar além de si mesmo, numa cosmovisão transcendental. É idealismo, não misticismo. Emerson é mais um filósofo do que um guru.

     Ou o poeta e pensador Henry D. Thoreau [1817-1862] com o individualismo, a importância da consciência, busca da solidão, proclamador da 'desobediência civil' [livro homônimo publicado em 1849, depois de sua prisão por se recusar a pagar impostos], onde o cidadão não segue as leis cegamente, mas julga segundo o senso ético do que julga justo. Não é a lei – dado pelo Estado – que faz os homens justos. Respeitar a lei pela lei – ou o Estado por ser Estado – é abrir mão da consciência individual, é ser peça numa engrenagem que leva à guerra e ao imperialismo, nunca à justiça e a paz.

     Até quando o cidadão deve se ser submisso ao poder estatal? Quando deve se revoltar contra a opressão da máquina, que diz agir em prol do 'bem comum'? Deve um cidadão apoiar seu Estado quando há declaração de guerra? Ou deve se manter fiel ao seu pacifismo? Afinal, se uma guerra não é de defesa, é uma ação imperialista. Deve o cidadão se tornar cúmplice de um governo dominador? Aqui, lembremos, trata-se de um contexto de ascensão do domínio norte-americano, depois das guerras de Independência, e logo uma sangrenta guerra civil, de norte contra sul, abolicionistas versus escravocratas, e depois expansão pela América Latina, nos domínios da decadente Espanha.

     Descontente com o poder do Estado, Thoreau decidiu sair da vida civilizada e morar num simples casinha no meio da vida selvagem. Às margens do lago Walden, ele escreveu sua obra [de 1854, chamada Walden ou Vida nos Bosques] onde narra sua vida simples, modesta, sem futilidades, sem comodidades artificiais. Sua recusa em servir aos ditames do Estado é uma forma de anarquismo, de individualismo extremo, que pouco afeta o poder soberano (a menos que exercido por uma coletividade, como fez Mohandas Gandhi [1869-1948] com o povo indiano contra o domínio britânico), antes serve mais como evasão. O que não invalida sua escrita, inspiradora para muitos, que ouvem um chamado para a vida simples e bucólica. Fato é que Thoreau fugia de uma cumplicidade com a ascensão hegemônica dos Estados Unidos da América. [Gary Snyder, segundo o poeta-editor Lawrence Ferlinghetti, era o Thoreau da Geraçao Beat, com seu convite à vida simples, de introspecção, integrada à natureza.]



     Aqueles Estados Unidos, tão proclamados pelo poeta Walt Whitman [1819-1892], em sua derramada poesia livre, plena de idealização da Democracia, não existiriam se mantivessem uma ascensão militarista e imperialista, contra mexicanos, cubanos, porto-riquenhos, panamenhos, filipinos, etc, como se mostrou ainda mais radical após as Grandes Guerras (1914-1918 e 1939-1945), com a posição de grande potência ocidental e mundial (somente Sem título 1'freada' pelos contrapesos russo e chinês), quando abandonaram o isolacionismo e assumiram de fato o proclamado 'destino manifesto' (na Latinoamérica, a figura do 'grande porrete' – big stick – da doutrina Monroe, “América para os americanos”).

      Diante do imperialismo, diante do mundo burguês, aqueles que rejeitam, que se rebelam, que detestam o status quo, podem se voltar para o mundo arcaico, as tradições; ou podem articular revoluções, para a tomada do poder, ou podem ser marginais, rebeldes, solitários ou em grupos. Assim temos os tradicionalistas, ou reacionários; temos os revolucionários, do tipo marxistas, e os rebeldes, ou outsiders. Os jovens da contracultura não eram de direita nem de esquerda, eram marginais, dados mais às artes e estéticas do que comissões e novos governos. [Há os reformistas, mas estes não mudam o status quo, ou se mudam é para continuar o mesmo, pois apenas fazem uma reforma, adiam as crises, sempre 'cedendo os anéis para resguardar os dedos'. Assim são os sindicalistas, os 'pelegos', os populistas, os demagogos, os 'falsos profetas'.]

     Os hipsters, ou hippies, ou anarquistas, ou místicos, em suma, todos não se encaixavam nas polaridades da Guerra Fria, em plena década de 1950, pois causavam suspeitas tanto em revolucionários quanto reacionários. As pregações dos alternativos, dos outsiders, dos mochileiros, dos 'vagabundos iluminados', eram outras. Solitários, ou em grupos, eles falavam de paz, de cosmovisão transcendente, de iluminação, de integração com a Natureza, de respeito ao meio ambiente. Como ser integrado a natura num mundo mecanizado e industrial? Como se voltar para a pureza natural num mundo feito de artificialidades? Seria mais uma utopia?

     Há uma voz precursora para a questão do ambientalismo na pessoa de John Muir [nascido na Escócia, 1838, falecido nos EUA, 1914] que proclamou uma espécie de ecologismo, ou seja, uma volta para a integração do homem na natureza, no sentido de que o homem é parte da natureza, e que se esta for agredida, a agressão pode desequilibrar a própria vida global. Por que o ser humano, civilizado e tecnicamente desenvolvido, se imagina dono da natureza, a ponto de exauri-la em explorações e desmatamentos?

      Por outro lado, por que uma idealização da vida selvagem? Por que dizer que a natureza é melhor que a civilização? Não seria ir para o outro lado? É possível uma nova vida no meio rural, longe das metrópoles? Voltaríamos ao mundo medieval, com a descentralização dos grandes feudos? Ou é possível uma civilização integrada à natureza (como esperam os arautos do 'desenvolvimento sustentável')? São muitas questões, e todas estão nas meditações dos autores da contracultura, que não apenas escreviam, mas ousaram comunidades alternativas, em propriedades rurais, longe do estresse urbano.

     Seja com 'iluminação profana' ou sincretismo religioso (franciscanismo, budismo, orientalismos, misticismos etc) os alternativos, sejam hippies ou outros esotéricos, buscavam alicerçar suas comunidades num pacto com a natureza, com simplicidade, com economia de subsistência, com agricultura doméstica, sem máquinas sem grande produção, sem exploração nem desperdício. Muito se aproximam da vida tal como a concebia Thoreau e Muir, com as subsistências em casebres, longe da sociedade artificial. O que é não-natural é visto com suspeita, como uma degeneração.

      A solução seria a fuga para o Oeste, assim fugir para a amplidão não-desbravada, assim como os imigrantes fugiram da dominação britânica, os dissidentes dos conflitos religiosos dos séculos 16 e 17. A solução seria a vida simples, rústica, selvagem. Com os nativos do Velho Oeste, nos topos das montanhas, nas imensidões do Alasca, nas terras a serem desbravadas [a época aqui é o século 19] longe das cidades povoadas de apressados consumidores de estressados produtores. Um dos precursores do 'chamado da vida selvagem' é o autor Jack London [John Chaney, 1876-1916], de vida aventureira, em busca de vida no mundo não-civilizado. Escreveu Call of the Wild [Chamado do Selvagem], publicado em 1903, onde é melhor viver na rusticidade do que ser um domesticado. A corrida para as lonjuras do gélido Alaska, atrás de ouro ou paz, tem atraído jovens forasteiros e alternativos até a atualidade. [O filme Into the Wild, 2007, do diretor Sean Penn, baseado na obra romance-biografia homônima, 1996, de Jon Krakauer, mostra o quanto a fuga para a selva é ainda atual. Mais em http://www.imdb.com/title/tt0758758/]

     Vida natural, plenitude da forma física, dietas saudáveis, meditação, tudo que contribui para a saúde, as mentes sãs em corpos sãos, ao gerar indivíduos positivos e criativos, sem as neuras da doença e da repressão. É o idealismo do vegetarianismo, da vida simples, até rústica, na qual o cidadão pode pensar e exercer trabalhos braçais. Assim unindo mente e corpo, sem as divisões do trabalho intelectual e físico do sistema capitalista, que separa as pessoas por profissões e cargos, alienando-as.




      Na relação corpo e alma, voltemos a Walt Whitman. Para Whitman, assim também para o poeta Blake, para o pensador Espinosa, o corpo não é menor que a alma, nem a alma superior ao corpo, não há dualismo, uma vez que a alma é a percepção do corpo. Enquanto no budismo o corpo abriga uma alma, que é um espírito reencarnado, em muitos ciclos de encarnação-desencarnação até a purificação, ao alcançar o estado de Nirvana. Sendo o budismo um tipo de orientalismo (junto com o hinduísmo e o taoísmo) que muito influenciou os místicos e os alternativos, mas que somente o assimilaram com mediação (algumas exceções entre os próximos aos Beats, como Snyder e Philip Whalen, que entraram em contato direto e se aprofundaram na escola zen.)

     O autor Willer bem sabe da importância de Whitman para a poesia Beat, assim como é essencial à do romântico místico William Blake. Contra as religiões instituídas, Whitman espera uma 'nova raça de poetas', quando não serão mais necessários os sacerdotes,

A nova raça de poetas”: teria Whitman antecipado os beats? Ou eles justificaram suas tomadas de posição através das mensagens do bardo norte-americano? A resposta é afirmativa, certamente, para Ginsberg, que em tantas ocasiões parafraseou Whitman. […]

Para Blake, Whitman e outros cultores de religiões pessoais, as igrejas organizadas não possibilitam o acesso ao sagrado, porém o sequestram ao institucionalizá-lo e monopolizá-lo, impondo dogmas e a obediência à hierarquia clerical. [WILLER, 2014, p. 43]


      O diálogo de Ginsberg, quando o assunto é a América, é com o poeta Whitman, que idealizava a democracia norte-americana. A América que Ginsberg vivia não é aquela dos poemas de Whitman, confiante no progresso tanto social quanto individual. O descompasso entre idealizado e vivido foi também percebido por Federico García Lorca, poeta espanhol, quando perambulou por Nova York, em 1930. “Ninguém amava as folhas grandes, Ninguém queria ser nuvem, … Nova York de lama, Nova York de espanto e de morte.”

     Cantando o corpo elétrico, Whitman valorizou a sexualidade, não apenas um homossexualismo, mas um autoerotismo, um pansexualismo. O sublime no contato com o outro. Esta pregação do corpo valorizado, sem neuras e culpas, somada aos orientalismos, sem os dogmatismos judaico-cristãos, levou a uma busca de libertação sexual. Ao longos dos anos de 1920 e 1930, com a difusão do jazz na vida boêmia urbana, até a explosão do rock'n'roll nas décadas de 1950 e 1960, ocorreu, ora discreta, ora escandalosa, revolução sexual.

      Os poetas Beats contribuíram muitíssimo para a divulgação do sexo livre, tanto com a literatura quanto com a vida, cheia de aventuras amorosas. Vários parceiros, uma bissexualidade difusa, uma necessidade de afirmação erótica. Não entraremos em biografias e biografemas. Lembremos apenas de um nome: William Burroughs, certamente um leitor do 'psicanalista dissidente' Wilhelm Reich [1897-1957], arauto da libertação sexual, que expandiu, que vulgarizou, que deu em libertinagem. [É conhecido que Burroughs construiu um aparelho acumulador de orgônio etc] Assim uma revolução sexual aconteceu: libertou a libido, e manteve a exploração da mais-valia. Aliviou um lado da repressão, e conservou o outro.

     O texto de Willer é bem esclarecedor sobre este tema da revolução sexual, quando a contracultura está agindo sobre a cultura, até que a contracultura se torna a cultura [hoje é socialmente aceito a liberdade sexual, quem não é promíscuo é conservador, 'careta', pentecostal...] quando difundida,

A propósito da revolução sexual empreendida pelos beats, já havia observado que a destruição dos limites entre pornografia e alta literatura foi promovida por D.H. Lawrence, James Joyce e Henry Miller, cada qual a seu modo, e todos pagando o preço da censura a suas obras. O sexo também já havia sido liberado nos círculos boêmios do começo do século XX, estimulado pela difusão de Freud. Mas nunca, antes, foi tão coletiva como entre os beats. E tão politizada, em consonância com o pensamento de Wilhelm Reich (mas ampliando o repertório de opções e atitudes, com relação ao que propunha o psicanalista dissidente). Snyder chegou a afirmar que “não haverá nenhuma revolução econômica neste mundo que funcione sem uma revolução sexual que a acompanhe” (Snyder, 2005, p. 183) [WILLER, 2014, p. 160]

 
    Além de Whitman, outro poeta norte-americano essencial para a depuração de linguagem dos poetas Beat. Lembramos de William Carlos Williams [1883-1863], um poeta do modernismo e do imagismo, com a concisão ou condensação poética de um Blake, uma Emily Dickinson [1830-1886] ou Paul Celan [1920-1970]. Com uma poesia em imagens fortes, condensadas, que despertam a imaginação do leitor, que é convocado a completar, a criar uma moldura para o poema-quadro.




      Williams era pouco conhecido em seu país, e, ao influenciar o Beats, foi por estes divulgados. O cuidado com a linguagem, a transmissão de imagens, o ritmo e a sonoridade, toda uma estética que foi valorizada, e reprocessada. Como se fossem haikais norte-americanos, em imagens condensadas, metodicamente, como podemos ver em poemas de Corso, Snyder, Kerouac, Robert Creeley, com peças curtas, concisas, mas de forte impacto lírico (ou anti-lírico). [Enquanto poemas de Ginsberg, McClure, Ferlinghetti seguem uma dispersão, uma digressão, verborrágica até, a la Whitman.]

      O poeta Kenneth Rexroth, de San Francisco, dedicou um poema-missiva a Williams, A Letter To William Carlos Williams, trad. por Alexandre Barbosa de Souza e Sergio Cohn [em Poesia Beat, pp. 66-71], como uma peça de admiração & reconhecimento, além de gratidão,

Recorda anos atrás, quando
eu falei que você era o primeiro
grande poeta franciscano desde
a Idade Média? Eu perturbei
o andamento do jantar.
Sua mulher pensou que eu fosse louco.
Contudo, é verdade. E você é 'puro', também,
um verdadeiro clássico, embora sem alarde
quanto a isso – um tanto como
as garotas nas Antologias.

[…]

Hoje em dia, enquanto o prelo se enche
de tagarelas, você segue quieto -
cada ano um maço de quietude,
poemas que não tem nada a dizer,
qual a quietude de George Fox [*],
sentado sempre soa nuvem
de toda as tentações do mundo,
[…]


 

[* George Fox [1624 - 1691, britânico, dissidente religioso, fundador da Society of Friends, com nova forma de fé cristã, mais conhecida como os Quakers. Fonte: Wikipedia]



 
     A importância de Williams pode ser avaliada depois, hoje, com tanto verborragia vazia que se passa por poesia, que se quer poético, mas não passa de ruido, de luta vã, de panfleto descartável, enquanto os verdadeiros poetas sabem o que falar e como falar [talvez não conscientemente...] e nos emocionam até quando não conseguimos compreendê-los.



      Geração Beat?

     Houve uma Geração Beat? Cronologicamente, sim. Assim como houve uma 'lost generation', nas décadas de 1920 e 1930 entre os Estados Unidos e Europa, com os ícones Fitzgerald e Hemingway, Eliot e Dos Passos, Pound e Gertrud Stein; existiu uma geração de autores nas décadas de 1940 e 1950, agregada em torno de Kerouac, Ginsberg, Corso e Rexroth, influenciados por Burroughs e Snyder, acolhendo McClure, Di Prima, Ferlinghetti e Lamantia. Mas, o que – além de serem contemporâneos – ligava os autores Beat? A diversidade de etnias e crenças e ideologias – como o próprio Ginsberg revelava, citado por WILLER, 2010, pp. 20-21 – não seria suficiente para 'implodir' um 'programa' de geração?

Heterodoxia também no modo de os beats se relacionarem com a própria geração beat, tornando voláteis as fronteiras desse movimento. Em várias ocasiões, Ferlinghetti, Burroughs, Lamantia e Solomon procuraram marcar distância, afirmando não serem beats. Por exemplo, Ferlinghetti, em um livro brasileiro de entrevistas com autores norte-americanos: Mas eu mesmo nunca me considerei um membro da geração beat.* O que não impediu Ferlinghetti e Burroughs de figurarem no aqui citado The Beat Book e em tantas outras coletâneas sobre esse movimento. [*LOPES, Rodrigo Garcia. Vozes e visões – panorama da arte e cultura norte-americanas hoje. São Paulo: Iluminuras, 1996.]

 
    Questão também presente em Os Rebeldes, no capítulo 2, sobre a diversidade dos autores Beat, ainda mais quanto a um 'movimento', e depois quanto a uma 'escola literária', vejamos,

Há alguma controvérsia ou variação, conforme a fonte, sobre quem seriam os beats, quais teriam sido os verdadeiros integrantes daquele movimento. Em Geração Beat (Willer, 2009), adotei o elenco arrolado pelo próprio Ginsberg em seu prefácio para The Beat Book. Contudo, autores que estão nessa relação, como Whalen e Ferlinghetti, manifestaram dúvidas quanto a essa inclusão.

Na verdade, houve dois estratos, correspondentes a dois momentos da formação do movimento: um, o primeiro, nova-iorquino, constituído a partir de 1944; outro, já com o acréscimo, dez anos depois, de poetas radicados em São Francisco. [p. 22]

Mas o conjunto dos integrantes da Geração Beat não pode ser considerado uma 'escola' literária. Não houve propriamente um paideuma; ou então foi tão amplo que nele cabiam os narradores realistas a exemplo de Thomas Wolfe, hiper-realistas como Céline, visionários românticos como Blake, e objetivistas como Pound e Williams. [p. 47]


     Creio que o que caracterizou a geração Beat foi antes um denominador comum: a recusa. Eles recusaram o mundo imperialista, a Guerra Fria, o consumismo, o 'american way of life', a cultura ocidental, o cotidiano de fuligens & ameaças. Queriam algo diverso, algo além: tiveram assim um “maior impacto extraliterário” [WILLER, 2014, p. 45] ao manifestarem adiantados o desejo de contracultura. Contracultura? Contra qual cultura? A ocidental da competição, da repressão, das guerras mundiais, da rivalidade bélica, da ameaça nuclear, da bipolaridade ideológica.

      Uma contracultura somente possível numa cultura aberta, isto é, não-ditatorial, ainda que repressora e censurante. [Lembramos das censuras contra obras de Kerouac, Ginsberg e Burroughs, acusadas de 'obscenidades', que geraram longos processos, onde vitoriosos, abriram portas para os novos autores ditos 'iconoclastas'...] Em ditaduras não é possível ser rebelde sem o risco de prisão, tortura e morte. Culturas fechadas – a russa, a chinesa, a árabe – não toleram rebeldia, não concebem qualquer contracultura, a contestação dos próprios princípios. [Ginsberg experimentou na pele a repressão dos sistemas fechados, quando viajou de Cuba para a Europa Oriental, quando sua figura de poeta era uma afronta aos cânones do moralismo, do realismo estalinista.]

      Ditaduras e totalitarismos – fascismo, salazarismo, nazismo, stalinismo, maoísmo – se dedicam a isolar e eliminar contestadores, de modo que não existam pensamentos alternativos. Dogmatismos sufocam todo pensamento que julgam heréticos. Assim o judaísmo perseguiu os apóstolos cristãos, depois o cristianismo prevaleceu sobre o arianismo, o gnosticismo, o pelagianismo, o ortodoxismo, tensionou-se em jesuitismo, em jansenismo, até que a 'cisma' luterana deu vez & voz ao protestantismo (no seio do qual foi gerado outro ramo, o pentecostalismo).

     Em Geração Beat, o autor Willer discute como foi possível a divulgação dos autores Beat, inclusive com aparição nas mídias e demais instrumentos da indústria cultural [Kulturindustrie, conceito dos filósofos Adorno & Horkheimer no capítulo 4 de Dialektik der Aufklärung, Dialética do Esclarecimento, 1944/47],

A condição de astros pop de Ginsberg e outros beats convida à reflexão sobre as relações entre mídia, cultura e sociedade. É certo que os meios de comunicação de massa disseminam estereótipos e promovem a vulgarização da informação. Mas isso não justifica a simplificação segundo a qual tudo o que é assim difundido é intrinsecamente mau, corrompido pelo meio. Mídia e indústrias culturais são instrumentos de dominação; mas não se constituem em sistema fechado. No final dos anos de 1950, Time, Life e programas de TV tiveram que render-se à evidência ao abrirem-se para a beat, disseminando sua influência, por esta haver adquirido a dimensão de um fenômeno da sociedade. Antes de passarem das colunas literárias para as grandes reportagens e as telas, haviam chegado à marca das centenas de milhares de exemplares vendidos. Por isso, era impossível ignorá-los. Sem dúvida, beat e contracultura são beneficiárias do pluralismo burguês, em sociedades relativamente abertas, assim impelindo-as para uma abertura maior ainda. Seriam impossíveis em estados totalitários. Tanto é que, nestes, foram adotadas como símbolos do desejo de mudança, como ocorreu na Tchecoslováquia. [pp. 102-103]


     Assim, a contracultura só é possível num país com certa liberdade – no caso, os EUA – não sendo possível contracultura em países ditatoriais (África do Sul, URSS, China, Cuba, Alemanha Oriental, Coreia do Norte...) - onde a contestação é eliminada. [Lembremos a manifestação dos estudantes em Pequim, em maio-junho de 1989, massacrada, esmagada literalmente com tanques blindados.] Em países de abertura política – de pretensa democracia – é viável se declarar contra o governo. Assim no Reino Unido, na Alemanha Ocidental e nos EUA surgiram ondas de protestos da juventude descontente. Eles se nutriram das vanguardas, leram Hermann Hesse e Arthur Rimbaud, viram o expressionismo como uma 'revolta artística', descobriram o surrealismo como uma 'iluminação profana'.

      Assim a contracultura tem um contexto. É possível falar de contracultura no Brasil? Não seria antes uma 'importação' deslocada? Ou uma 'ideia fora de lugar' [como nos avisa o crítico Roberto Schwarz] que chegou descompassada? Pois nossa industrialização estava quase um século atrasada, somente nos anos de 1960-1970 é que o parque industrial brasileiro alcançou o porte daquele dos norte-americanos na década de 1910. O setor de serviços (o terciário) pouco representava, o sistema financeiro-bancário abarcava apenas os segmentos elitistas (o povo não tinha o crédito à disposição...), nossa imprensa era feudal, com vários coronéis a patrocinarem tabloides de certos seguimentos políticos. Quem lia os livros? Quem produzia os livros? Basicamente cidadãos de classe média-alta, geralmente funcionários públicos, protegidos pelos proprietários e governistas. Em suma, o atraso total em relação à cultura norte-americana.

      Então contra qual cultura se erguia os 'contraculturistas' nacionais? Afinal, não tínhamos aqui a cultura massificante contra a qual os alternativos norte-americanos se manifestaram. Reagiram à cultura feudal? Ou contra os conservadores? Contra os padres & mestres? A geração marginal, os tropicalistas, os tardo-surrealistas, as bandas de rock psicodélico foram a nossa 'contracultura'? Eis uma questão que ainda pesquisaremos mais atentamente.




      Conclusão

     Estudo os poetas da Beat Generation desde 2002, desde a minha primeira leitura de Pé na Estrada / On the Road. As traduções de Claudio Willer, Eduardo Bueno, Leonardo Froés, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Cohn, Luci Collin, as edições da L&PM e da Azougue foram essenciais para os primeiros contatos com as poéticas de Ginsberg, Corso e McClure, depois Snyder, Rexroth e Ferlinghetti, audaciosas & iconoclastas que nos abrem a mente para novas trilhas, ainda que ásperas.

      Minhas leituras de Uivo e On the Road, primeiro em traduções, depois nos originais, me levaram a uma espécie de 'conversão', mas não mística; me deixam em êxtase, não 'transcendental', mas estético; passei por uma iluminação, não esotérica, mas profana. Descobri o que é escrever com o corpo, o que é unir vida & obra. Não numa busca de religiosidade [não há tronos lá no Céu ! ] mas de interioridade, autossondagem, autoconhecimento.

      'Iluminação profana' que experimentei ao ler Folhas de Relva de Whitman ou Lobo da Estepe de Hesse, ou Assim disse Zaratustra de Nietzsche, ou Eu de Augusto dos Anjos; onde, longe de um contato com o transcendente, aconteceu uma ligação do Eu consciente com o Eu profundo, um mergulho, não uma elevação. Ser um corpo, ser uma alma consciente do corpo, não uma reencarnação ou fagulha divina, mas um corpo que pensa & cria, que não é impuro ou inferior, que não é 'pecador' só por existir & desejar.

      Uma iluminação imanente, não um transcender o corpo, mas uma integração corpo e alma, onde esta é percepção daquele, quando não há dogma algum ou complexo de culpa. É apenas deixar o corpo sentir, ser seduzido, e criar com cada parte, cada sentido, plenamente. Somos únicos & unos, semelhantes ainda que múltiplos.


       julho/agosto 2015

aos 60 anos do sarau 6 Poets at 6 Gallery
San Francisco, outubro 1955


Leonardo de Magalhaens


Claudio Willer nasceu em São Paulo em 1940 e é poeta, ensaísta e tradutor, ligado à criação literária mais rebelde, ao surrealismo e geração beat. Acaba de lançar Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014). Outras publicações recentes: Manifestos, 1964-2010, (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat (L&PM Pocket, 2009); Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Publicado em antologias e periódicos no Brasil e em outros países. Doutor em Letras na USP, onde completou pós-doutorado. Também deu cursos, palestras e coordenou oficinas em uma diversidade de instituições culturais. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about .



mais info em

sobre poética de Whitman



sobre a prosa de Kerouac



sobre Os Rebeldes




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Referências

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_______ . Uivo e outros poemas. Trad. Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 2010.

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_______ . Os Vagabundos iluminados. Trad. Ana Ban. Porto Alegre: L&PM, 2007.
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MOISÉS, Carlos Felipe. O Desconcerto do Mundo: do Renascimento ao Surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001.

SCHWARZ, Roberto. As Ideias fora do Lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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by LdeM


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