Fonte
da imagem [Willer e livro] :
http://www.outraspalavras.net/outroslivros/loja/os-rebeldes-geracao-beat-e-anarquismo-mistico/
Sobre
a Geração
Beat
e os seus precursores norte-americanos:
Emerson,
Thoreau, Whitman, John Muir, Jack London,
William
Carlos Williams
Um
diálogo com Geração
Beat
[2009] e Os
Rebeldes
[2014]
obras
de Claudio Willer [SP, 1940-] poeta, tradutor, crítico literário
Os
Precursores
Muito
foi escrito sobre os ícones da chamada Geração
Beat,
suas biografias e aventuras, seus escritos e visões, como ousaram
contra o conservadorismo, e sobre quem eles influenciaram, enquanto
precursores da contracultura. Agora é momento de abordar aqueles que
influenciaram os autores da Beat
Generation,
quais seus autores de cabeceira, com quem dialogavam, com quem
duelavam.
Percebemos
que a ênfase dada pelo autor Claudio Willer é aquela nos místicos
e gnósticos, nos fundadores de seitas, dados às iluminações
místicas. Não aborda aqueles mais inclinados a uma iluminação
profana,
a
la
surrealista (como assinala André Breton, e ressalta Walter
Benjamin), que se destacam, enquanto cidadãos conscientes, da tutela
do Estado massificante e imperialista.
Aqui
veremos as influências no
contexto norte-americano, com as teses sobre o ecologismo, a
integração do humano com a Natureza (ainda que idealizada), uma
fuga da sociedade, baseada em denúncia social, em desencanto
com a vida moderna. Assim uma busca de vida transcendental, além do
cotidiano rotineiro, um desejo de perambular, desbravar, viajar, com
idealização da vida rural ou do Oeste selvagem. Numa vida de
nomadismo, sem se prender a compromissos e normas do establishment,
ou do status quo,
a ouvir o eco do romantismo (ver a figura do 'bom selvagem' de
Rousseau), o que leva a um não-conformismo, ao ponto de uma vida
transgressora (isto é, para os pregadores da moral vigente).
Assim,
além do misticismo, da gnosis,
e do budismo, da cosmovisão zen,
do xamanismo, há o contexto da própria literatura norte-americana,
além daqueles já apontados como influenciadores, tais como o
pensador francês iluminista Jean-Jacques Rousseau [1712-1778], os
britânicos românticos William Blake [1757-1827] e Percy B. Shelley
[1792-1822], o francês simbolista Arthur Rimbaud [1854-1891], o
pensador alemão Friedrich Nietzsche [1844-1900] e o romancista russo
Feódor Dostoiévski [1821-1881]. Todos autores de vozes ativas sobre
o pensamento e a escrita dos autores da Beat,
mas num contexto externo, europeu ou asiático. Mas quais
pavimentaram o caminho na própria terra?
É
na própria América que destacamos a importância das obras dos
precursores, tais como o pensador Ralph W. Emerson [1803-1882] com
seu transcendentalismo,
onde a crítica ao racionalismo, ao mundo do trabalho mecanizado, ao
cotidiano rotineiro, à economia competitiva, em suma, ao status
quo
não tendia para o espiritualismo ou misticismo, ou doutrinas
religiosas, mas a uma valorização do intuitivo, do idealismo, do
pensamento livre, da solidão criativa, para que o indivíduo
soubesse olhar além de si mesmo, numa cosmovisão transcendental. É
idealismo, não misticismo. Emerson é mais um filósofo do que um
guru.
Ou
o poeta e pensador Henry D. Thoreau [1817-1862] com o individualismo,
a importância da consciência, busca da solidão, proclamador da
'desobediência civil' [livro homônimo publicado em 1849, depois de
sua prisão por se recusar a pagar impostos], onde o cidadão não
segue as leis cegamente, mas julga segundo o senso ético do que
julga justo. Não é a lei – dado pelo Estado – que faz os homens
justos. Respeitar a lei pela lei – ou o Estado por ser Estado – é
abrir mão da consciência individual, é ser peça numa engrenagem
que leva à guerra e ao imperialismo, nunca à justiça e a paz.
Até
quando o cidadão deve se ser submisso ao poder estatal? Quando deve
se revoltar contra a opressão da máquina, que diz agir em prol do
'bem comum'? Deve um cidadão apoiar seu Estado quando há declaração
de guerra? Ou deve se manter fiel ao seu pacifismo? Afinal, se uma
guerra não é de defesa, é uma ação imperialista. Deve o cidadão
se tornar cúmplice de um governo dominador? Aqui, lembremos,
trata-se de um contexto de ascensão do domínio norte-americano,
depois das guerras de Independência, e logo uma sangrenta guerra
civil, de norte contra sul, abolicionistas versus escravocratas, e
depois expansão pela América Latina, nos domínios da decadente
Espanha.
Descontente
com o poder do Estado, Thoreau decidiu sair da vida civilizada e
morar num simples casinha no meio da vida selvagem. Às margens do
lago Walden, ele escreveu sua obra [de 1854, chamada Walden
ou Vida nos Bosques]
onde narra sua vida simples, modesta, sem futilidades, sem
comodidades artificiais. Sua recusa em servir aos ditames do Estado é
uma forma de anarquismo, de individualismo extremo, que pouco afeta o
poder soberano (a menos que exercido por uma coletividade, como fez
Mohandas Gandhi [1869-1948] com o povo indiano contra o domínio
britânico), antes serve mais como evasão. O que não invalida sua
escrita, inspiradora para muitos, que ouvem um chamado para a vida
simples e bucólica. Fato é que Thoreau fugia de uma cumplicidade
com a ascensão hegemônica dos Estados Unidos da América. [Gary
Snyder, segundo o poeta-editor Lawrence Ferlinghetti, era o Thoreau
da Geraçao Beat,
com seu convite à vida simples, de introspecção, integrada à
natureza.]
Aqueles
Estados Unidos, tão proclamados pelo poeta Walt Whitman [1819-1892],
em sua derramada poesia livre, plena de idealização da Democracia,
não existiriam se mantivessem uma ascensão militarista e
imperialista, contra mexicanos, cubanos, porto-riquenhos, panamenhos,
filipinos, etc, como se mostrou ainda mais radical após as Grandes
Guerras (1914-1918 e 1939-1945), com a posição de grande potência
ocidental e mundial (somente Sem título 1'freada' pelos contrapesos
russo e chinês), quando abandonaram o isolacionismo e assumiram de
fato o proclamado 'destino
manifesto'
(na Latinoamérica, a figura do 'grande porrete' – big
stick
– da doutrina
Monroe,
“América para os americanos”).
Diante
do imperialismo, diante do mundo burguês, aqueles que rejeitam, que
se rebelam, que detestam o status
quo,
podem se voltar para o mundo arcaico, as tradições; ou podem
articular revoluções, para a tomada do poder, ou podem ser
marginais, rebeldes, solitários ou em grupos. Assim temos os
tradicionalistas, ou reacionários; temos os revolucionários, do
tipo marxistas, e os rebeldes, ou outsiders.
Os jovens da contracultura não eram de direita nem de esquerda, eram
marginais, dados mais às artes e estéticas do que comissões e
novos governos. [Há os reformistas, mas estes não mudam o status
quo,
ou se mudam é para continuar o mesmo, pois apenas fazem uma reforma,
adiam as crises, sempre 'cedendo os anéis para resguardar os dedos'.
Assim são os sindicalistas, os 'pelegos', os populistas, os
demagogos, os 'falsos profetas'.]
Os
hipsters,
ou hippies,
ou anarquistas, ou místicos, em suma, todos não se encaixavam nas
polaridades da Guerra
Fria,
em plena década de 1950, pois causavam suspeitas tanto em
revolucionários quanto reacionários. As pregações dos
alternativos, dos outsiders,
dos mochileiros, dos 'vagabundos iluminados', eram outras.
Solitários, ou em grupos, eles falavam de paz, de cosmovisão
transcendente, de iluminação, de integração com a Natureza, de
respeito ao meio ambiente. Como ser integrado a natura
num mundo mecanizado e industrial? Como se voltar para a pureza
natural num mundo feito de artificialidades? Seria mais uma utopia?
Há
uma voz precursora para a questão do ambientalismo
na pessoa de John Muir [nascido na Escócia, 1838, falecido nos EUA,
1914] que proclamou uma espécie de ecologismo,
ou seja, uma volta para a integração do homem na natureza, no
sentido de que o homem é parte da natureza, e que se esta for
agredida, a agressão pode desequilibrar a própria vida global. Por
que o ser humano, civilizado e tecnicamente desenvolvido, se imagina
dono da natureza, a ponto de exauri-la em explorações e
desmatamentos?
Por
outro lado, por que uma idealização da vida selvagem? Por que dizer
que a natureza é melhor
que a civilização? Não seria ir para o outro lado? É possível
uma nova vida no meio rural, longe das metrópoles? Voltaríamos ao
mundo medieval, com a descentralização dos grandes feudos? Ou é
possível uma civilização integrada à natureza (como esperam os
arautos do 'desenvolvimento sustentável')? São muitas questões, e
todas estão nas meditações dos autores da contracultura,
que não apenas escreviam, mas ousaram comunidades alternativas, em
propriedades rurais, longe do estresse urbano.
Seja
com 'iluminação profana' ou sincretismo religioso (franciscanismo,
budismo, orientalismos, misticismos etc) os alternativos, sejam
hippies
ou outros esotéricos, buscavam alicerçar suas comunidades num pacto
com a natureza, com simplicidade, com economia de subsistência, com
agricultura doméstica, sem máquinas sem grande produção, sem
exploração nem desperdício. Muito se aproximam da vida tal como a
concebia Thoreau e Muir, com as subsistências em casebres, longe da
sociedade artificial. O que é não-natural é visto com suspeita,
como uma degeneração.
A
solução seria a fuga para o Oeste, assim fugir para a amplidão
não-desbravada, assim como os imigrantes fugiram da dominação
britânica, os dissidentes dos conflitos religiosos dos séculos 16 e
17. A solução seria a vida simples, rústica, selvagem. Com os
nativos do Velho Oeste, nos topos das montanhas, nas imensidões do
Alasca, nas terras a serem desbravadas [a época aqui é o século
19] longe das cidades povoadas de apressados consumidores de
estressados produtores. Um dos precursores do 'chamado da vida
selvagem' é o autor Jack London [John Chaney, 1876-1916], de vida
aventureira, em busca de vida no mundo não-civilizado. Escreveu Call
of the Wild
[Chamado do Selvagem], publicado em 1903, onde é melhor viver na
rusticidade do que ser um domesticado. A corrida para as lonjuras do
gélido Alaska, atrás de ouro ou paz, tem atraído jovens
forasteiros e alternativos até a atualidade. [O filme Into
the Wild,
2007, do diretor Sean Penn, baseado na obra romance-biografia
homônima, 1996, de Jon Krakauer, mostra o quanto a fuga para a selva
é ainda atual. Mais em http://www.imdb.com/title/tt0758758/]
Vida
natural, plenitude da forma física, dietas saudáveis, meditação,
tudo que contribui para a saúde, as mentes
sãs em corpos sãos,
ao gerar indivíduos positivos e criativos, sem as neuras da doença
e da repressão. É o idealismo do vegetarianismo, da vida simples,
até rústica, na qual o cidadão pode pensar e exercer trabalhos
braçais. Assim unindo mente e corpo, sem as divisões do trabalho
intelectual e físico do sistema capitalista, que separa as pessoas
por profissões e cargos, alienando-as.
Na
relação corpo e alma, voltemos a Walt Whitman. Para Whitman, assim
também para o poeta Blake, para o pensador Espinosa, o corpo não é
menor que a alma, nem a alma superior ao corpo, não há dualismo,
uma vez que a alma é a percepção do corpo. Enquanto no budismo o
corpo abriga uma alma, que é um espírito reencarnado, em muitos
ciclos de encarnação-desencarnação até a purificação, ao
alcançar o estado de Nirvana. Sendo o budismo um tipo de
orientalismo (junto com o hinduísmo e o taoísmo) que muito
influenciou os místicos e os alternativos, mas que somente o
assimilaram com mediação (algumas exceções entre os próximos aos
Beats,
como Snyder e Philip Whalen, que entraram em contato direto e se
aprofundaram na escola zen.)
O
autor Willer bem sabe da importância de Whitman para a poesia Beat,
assim como é essencial à do romântico místico William Blake.
Contra as religiões instituídas, Whitman espera uma 'nova raça de
poetas', quando não serão mais necessários os sacerdotes,
“A
nova raça de poetas”: teria Whitman antecipado os beats? Ou eles
justificaram suas tomadas de posição através das mensagens do
bardo norte-americano? A resposta é afirmativa, certamente, para
Ginsberg, que em tantas ocasiões parafraseou Whitman. […]
Para
Blake, Whitman e outros cultores de religiões pessoais, as igrejas
organizadas não possibilitam o acesso ao sagrado, porém o
sequestram ao institucionalizá-lo e monopolizá-lo, impondo dogmas e
a obediência à hierarquia clerical. [WILLER, 2014, p. 43]
O
diálogo de Ginsberg, quando o assunto é a América, é com o poeta
Whitman, que idealizava a democracia norte-americana. A América que
Ginsberg vivia não é aquela dos poemas de Whitman, confiante no
progresso tanto social quanto individual. O descompasso entre
idealizado e vivido foi também percebido por Federico García Lorca,
poeta espanhol, quando perambulou por Nova York, em 1930. “Ninguém
amava as folhas grandes, Ninguém queria ser nuvem, … Nova York de
lama, Nova York de espanto e de morte.”
Cantando
o corpo elétrico, Whitman valorizou a sexualidade, não apenas um
homossexualismo, mas um autoerotismo, um pansexualismo. O sublime no
contato com o outro. Esta pregação do corpo valorizado, sem neuras
e culpas, somada aos orientalismos, sem os dogmatismos
judaico-cristãos, levou a uma busca de libertação sexual. Ao
longos dos anos de 1920 e 1930, com a difusão do jazz
na vida boêmia urbana, até a explosão do rock'n'roll
nas décadas de 1950 e 1960, ocorreu, ora discreta, ora escandalosa,
revolução sexual.
Os
poetas Beats
contribuíram muitíssimo para a divulgação do sexo livre, tanto
com a literatura quanto com a vida, cheia de aventuras amorosas.
Vários parceiros, uma bissexualidade difusa, uma necessidade de
afirmação erótica. Não entraremos em biografias e biografemas.
Lembremos apenas de um nome: William Burroughs, certamente um leitor
do 'psicanalista dissidente' Wilhelm Reich [1897-1957], arauto da
libertação sexual, que expandiu, que vulgarizou, que deu em
libertinagem. [É conhecido que Burroughs construiu um aparelho
acumulador de orgônio etc] Assim uma revolução sexual aconteceu:
libertou a libido, e manteve a exploração da mais-valia. Aliviou
um lado da repressão, e conservou o outro.
O
texto de Willer é bem esclarecedor sobre este tema da revolução
sexual, quando a contracultura está agindo sobre a cultura, até que
a contracultura se torna a cultura [hoje é socialmente aceito a
liberdade sexual, quem não é promíscuo é conservador, 'careta',
pentecostal...] quando difundida,
A
propósito da revolução sexual empreendida pelos beats, já havia
observado que a destruição dos limites entre pornografia e alta
literatura foi promovida por D.H. Lawrence, James Joyce e Henry
Miller, cada qual a seu modo, e todos pagando o preço da censura a
suas obras. O sexo também já havia sido liberado nos círculos
boêmios do começo do século XX, estimulado pela difusão de Freud.
Mas nunca, antes, foi tão coletiva como entre os beats. E tão
politizada, em consonância com o pensamento de Wilhelm Reich (mas
ampliando o repertório de opções e atitudes, com relação ao que
propunha o psicanalista dissidente). Snyder chegou a afirmar que “não
haverá nenhuma revolução econômica neste mundo que funcione sem
uma revolução sexual que a acompanhe” (Snyder, 2005, p. 183)
[WILLER, 2014, p. 160]
Além
de Whitman, outro poeta norte-americano essencial para a depuração
de linguagem dos poetas Beat. Lembramos de William Carlos Williams
[1883-1863], um poeta do modernismo e do imagismo, com a concisão ou
condensação poética de um Blake, uma Emily Dickinson [1830-1886]
ou Paul Celan [1920-1970]. Com uma poesia em imagens fortes,
condensadas, que despertam a imaginação do leitor, que é convocado
a completar, a criar uma moldura para o poema-quadro.
Williams
era pouco conhecido em seu país, e, ao influenciar o Beats,
foi por estes divulgados. O cuidado com a linguagem, a transmissão
de imagens, o ritmo e a sonoridade, toda uma estética que foi
valorizada, e reprocessada. Como se fossem haikais
norte-americanos, em imagens condensadas, metodicamente, como podemos
ver em poemas de Corso, Snyder, Kerouac, Robert Creeley, com peças
curtas, concisas, mas de forte impacto lírico (ou anti-lírico).
[Enquanto poemas de Ginsberg, McClure, Ferlinghetti seguem uma
dispersão, uma digressão, verborrágica até, a
la
Whitman.]
O
poeta Kenneth Rexroth, de San Francisco, dedicou um poema-missiva a
Williams, A
Letter To William Carlos Williams,
trad. por Alexandre Barbosa de Souza e Sergio Cohn [em Poesia
Beat,
pp. 66-71], como uma peça de admiração & reconhecimento, além
de gratidão,
Recorda
anos atrás, quando
eu
falei que você era o primeiro
grande
poeta franciscano desde
a
Idade Média? Eu perturbei
o
andamento do jantar.
Sua
mulher pensou que eu fosse louco.
Contudo,
é verdade. E você é 'puro', também,
um
verdadeiro clássico, embora sem alarde
quanto
a isso – um tanto como
as
garotas nas Antologias.
[…]
Hoje
em dia, enquanto o prelo se enche
de
tagarelas, você segue quieto -
cada
ano um maço de quietude,
poemas
que não tem nada a dizer,
qual
a quietude de George Fox [*],
sentado
sempre soa nuvem
de
toda as tentações do mundo,
[…]
[*
George Fox [1624 - 1691, britânico, dissidente religioso, fundador
da Society
of Friends,
com nova forma de fé cristã, mais conhecida como os Quakers.
Fonte: Wikipedia]
A
importância de Williams pode ser avaliada depois, hoje, com tanto
verborragia vazia que se passa por poesia, que se quer poético, mas
não passa de ruido, de luta vã, de panfleto descartável, enquanto
os verdadeiros poetas sabem o que falar e como falar [talvez não
conscientemente...] e nos emocionam até quando não conseguimos
compreendê-los.
Geração
Beat?
Houve
uma Geração
Beat?
Cronologicamente, sim. Assim como houve uma 'lost
generation',
nas décadas de 1920 e 1930 entre os Estados Unidos e Europa, com os
ícones Fitzgerald e Hemingway, Eliot e Dos Passos, Pound e Gertrud
Stein; existiu uma geração de autores nas décadas de 1940 e 1950,
agregada em torno de Kerouac, Ginsberg, Corso e Rexroth,
influenciados por Burroughs e Snyder, acolhendo McClure, Di Prima,
Ferlinghetti e Lamantia. Mas, o que – além de serem contemporâneos
– ligava os autores Beat?
A diversidade de etnias e crenças e ideologias – como o próprio
Ginsberg revelava, citado por WILLER, 2010, pp. 20-21 – não seria
suficiente para 'implodir' um 'programa' de geração?
Heterodoxia
também no modo de os beats se relacionarem com a própria geração
beat, tornando voláteis as fronteiras desse movimento. Em várias
ocasiões, Ferlinghetti, Burroughs, Lamantia e Solomon procuraram
marcar distância, afirmando não serem beats. Por exemplo,
Ferlinghetti, em um livro brasileiro de entrevistas com autores
norte-americanos: Mas
eu mesmo nunca me considerei um membro da geração beat.*
O que não impediu Ferlinghetti e Burroughs de figurarem no aqui
citado The
Beat Book
e em tantas outras coletâneas sobre esse movimento. [*LOPES, Rodrigo
Garcia. Vozes
e visões – panorama da arte e cultura norte-americanas hoje.
São Paulo: Iluminuras, 1996.]
Questão
também presente em Os
Rebeldes,
no capítulo 2, sobre a diversidade dos autores Beat,
ainda mais quanto a um 'movimento', e depois quanto a uma 'escola
literária', vejamos,
Há
alguma controvérsia ou variação, conforme a fonte, sobre quem
seriam os beats, quais teriam sido os verdadeiros integrantes daquele
movimento. Em Geração Beat (Willer, 2009), adotei o elenco arrolado
pelo próprio Ginsberg em seu prefácio para The Beat Book. Contudo,
autores que estão nessa relação, como Whalen e Ferlinghetti,
manifestaram dúvidas quanto a essa inclusão.
Na
verdade, houve dois estratos, correspondentes a dois momentos da
formação do movimento: um, o primeiro, nova-iorquino, constituído
a partir de 1944; outro, já com o acréscimo, dez anos depois, de
poetas radicados em São Francisco. [p. 22]
Mas
o conjunto dos integrantes da Geração Beat não pode ser
considerado uma 'escola' literária. Não houve propriamente um
paideuma;
ou então foi tão amplo que nele cabiam os narradores realistas a
exemplo de Thomas Wolfe, hiper-realistas como Céline, visionários
românticos como Blake, e objetivistas como Pound e Williams. [p. 47]
Creio
que o que caracterizou a geração
Beat
foi antes um denominador comum: a recusa. Eles recusaram o mundo
imperialista, a Guerra Fria, o consumismo, o 'american
way of life',
a cultura ocidental, o cotidiano de fuligens & ameaças. Queriam
algo diverso, algo além: tiveram assim um “maior impacto
extraliterário” [WILLER, 2014, p. 45] ao manifestarem adiantados o
desejo de contracultura. Contracultura? Contra qual cultura? A
ocidental da competição, da repressão, das guerras mundiais, da
rivalidade bélica, da ameaça nuclear, da bipolaridade ideológica.
Uma
contracultura somente possível numa cultura aberta, isto é,
não-ditatorial, ainda que repressora e censurante. [Lembramos das
censuras contra obras de Kerouac, Ginsberg e Burroughs, acusadas de
'obscenidades', que geraram longos processos, onde vitoriosos,
abriram portas para os novos autores ditos 'iconoclastas'...] Em
ditaduras não é possível ser rebelde sem o risco de prisão,
tortura e morte. Culturas fechadas – a russa, a chinesa, a árabe –
não toleram rebeldia, não concebem qualquer contracultura, a
contestação dos próprios princípios. [Ginsberg experimentou na
pele a repressão dos sistemas fechados, quando viajou de Cuba para a
Europa Oriental, quando sua figura de poeta era uma afronta aos
cânones do moralismo, do realismo estalinista.]
Ditaduras
e totalitarismos – fascismo, salazarismo, nazismo, stalinismo,
maoísmo – se dedicam a isolar e eliminar contestadores, de modo
que não existam pensamentos alternativos. Dogmatismos sufocam todo
pensamento que julgam heréticos. Assim o judaísmo perseguiu os
apóstolos cristãos, depois o cristianismo prevaleceu sobre o
arianismo, o gnosticismo, o pelagianismo, o ortodoxismo, tensionou-se
em jesuitismo, em jansenismo, até que a 'cisma' luterana deu vez &
voz ao protestantismo (no seio do qual foi gerado outro ramo, o
pentecostalismo).
Em
Geração
Beat,
o autor Willer discute como foi possível a divulgação dos autores
Beat, inclusive com aparição nas mídias e demais instrumentos da
indústria cultural [Kulturindustrie,
conceito dos filósofos Adorno & Horkheimer no capítulo 4 de
Dialektik
der Aufklärung, Dialética do Esclarecimento,
1944/47],
A
condição de astros pop de Ginsberg e outros beats convida à
reflexão sobre as relações entre mídia, cultura e sociedade. É
certo que os meios de comunicação de massa disseminam estereótipos
e promovem a vulgarização da informação. Mas isso não justifica
a simplificação segundo a qual tudo o que é assim difundido é
intrinsecamente mau, corrompido pelo meio. Mídia e indústrias
culturais são instrumentos de dominação; mas não se constituem em
sistema fechado. No final dos anos de 1950, Time,
Life
e programas de TV tiveram que render-se à evidência ao abrirem-se
para a beat, disseminando sua influência, por esta haver adquirido a
dimensão de um fenômeno da sociedade. Antes de passarem das colunas
literárias para as grandes reportagens e as telas, haviam chegado à
marca das centenas de milhares de exemplares vendidos. Por isso, era
impossível ignorá-los. Sem dúvida, beat e contracultura são
beneficiárias do pluralismo burguês, em sociedades relativamente
abertas, assim impelindo-as para uma abertura maior ainda. Seriam
impossíveis em estados totalitários. Tanto é que, nestes, foram
adotadas como símbolos do desejo de mudança, como ocorreu na
Tchecoslováquia. [pp. 102-103]
Assim,
a contracultura só é possível num país com certa liberdade – no
caso, os EUA – não sendo possível contracultura em países
ditatoriais (África do Sul, URSS, China, Cuba, Alemanha Oriental,
Coreia do Norte...) - onde a contestação é eliminada. [Lembremos a
manifestação dos estudantes em Pequim, em maio-junho de 1989,
massacrada, esmagada literalmente com tanques blindados.] Em países
de abertura política – de pretensa democracia – é viável se
declarar contra o governo. Assim no Reino Unido, na Alemanha
Ocidental e nos EUA surgiram ondas de protestos da juventude
descontente. Eles se nutriram das vanguardas, leram Hermann Hesse e
Arthur Rimbaud, viram o expressionismo como uma 'revolta artística',
descobriram o surrealismo como uma 'iluminação profana'.
Assim
a contracultura tem um contexto. É possível falar de contracultura
no Brasil? Não seria antes uma 'importação' deslocada? Ou uma
'ideia
fora de lugar'
[como nos avisa o crítico Roberto Schwarz] que chegou descompassada?
Pois nossa industrialização estava quase um século atrasada,
somente nos anos de 1960-1970 é que o parque industrial brasileiro
alcançou o porte daquele dos norte-americanos na década de 1910. O
setor de serviços (o terciário) pouco representava, o sistema
financeiro-bancário abarcava apenas os segmentos elitistas (o povo
não tinha o crédito à disposição...), nossa imprensa era feudal,
com vários coronéis a patrocinarem tabloides de certos seguimentos
políticos. Quem lia os livros? Quem produzia os livros? Basicamente
cidadãos de classe média-alta, geralmente funcionários públicos,
protegidos pelos proprietários e governistas. Em suma, o atraso
total em relação à cultura norte-americana.
Então
contra qual cultura se erguia os 'contraculturistas' nacionais?
Afinal, não tínhamos aqui a cultura massificante contra a qual os
alternativos norte-americanos se manifestaram. Reagiram à cultura
feudal? Ou contra os conservadores? Contra os padres & mestres? A
geração marginal, os tropicalistas, os tardo-surrealistas, as
bandas de rock
psicodélico foram a nossa 'contracultura'? Eis uma questão que
ainda pesquisaremos mais atentamente.
Conclusão
Estudo
os poetas da Beat
Generation
desde 2002, desde a minha primeira leitura de Pé
na Estrada
/ On
the Road.
As traduções de Claudio Willer, Eduardo Bueno, Leonardo Froés,
Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Cohn, Luci Collin, as edições da L&PM
e da Azougue
foram essenciais para os primeiros contatos com as poéticas de
Ginsberg, Corso e McClure, depois Snyder, Rexroth e Ferlinghetti,
audaciosas & iconoclastas que nos abrem a mente para novas
trilhas, ainda que ásperas.
Minhas
leituras de Uivo
e On
the Road,
primeiro em traduções, depois nos originais, me levaram a uma
espécie de 'conversão', mas não mística; me deixam em êxtase,
não 'transcendental', mas estético; passei por uma iluminação,
não esotérica, mas profana.
Descobri o que é escrever com o corpo, o que é unir vida &
obra. Não numa busca de religiosidade [não há tronos lá no Céu !
] mas de interioridade, autossondagem, autoconhecimento.
'Iluminação
profana'
que experimentei ao ler Folhas
de Relva
de Whitman ou Lobo
da Estepe
de Hesse, ou Assim
disse Zaratustra
de Nietzsche, ou Eu
de Augusto dos Anjos; onde, longe de um contato com o transcendente,
aconteceu uma ligação do Eu consciente com o Eu
profundo,
um mergulho, não uma elevação. Ser um corpo, ser uma alma
consciente do corpo, não uma reencarnação ou fagulha divina, mas
um corpo que pensa & cria, que não é impuro ou inferior, que
não é 'pecador' só por existir & desejar.
Uma
iluminação imanente,
não um transcender o corpo, mas uma integração corpo e alma, onde
esta é percepção
daquele, quando não há dogma algum ou complexo de culpa. É apenas
deixar o corpo sentir, ser seduzido, e criar com cada parte, cada
sentido, plenamente. Somos únicos & unos, semelhantes ainda que
múltiplos.
julho/agosto
2015
aos
60 anos do sarau 6
Poets at 6 Gallery
San
Francisco, outubro 1955
Leonardo
de Magalhaens
Claudio Willer nasceu em São
Paulo em 1940 e é poeta, ensaísta e tradutor, ligado à criação
literária mais rebelde, ao surrealismo e geração beat. Acaba de
lançar Os
rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico
(L&PM, 2014). Outras publicações recentes: Manifestos,
1964-2010,
(Azougue, 2013), Um
obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia
(Civilização Brasileira, 2010); Geração
Beat (L&PM
Pocket, 2009); Estranhas
Experiências,
poesia (Lamparina, 2004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack
Kerouac e Antonin Artaud. Publicado em antologias e periódicos no
Brasil e em outros países. Doutor em Letras na USP, onde completou
pós-doutorado. Também deu cursos, palestras e coordenou oficinas em
uma diversidade de instituições culturais. Mais em
http://claudiowiller.wordpress.com/about
.
Fonte:
http://www.outraspalavras.net/outroslivros/loja/os-rebeldes-geracao-beat-e-anarquismo-mistico/
mais
info em
sobre
poética de Whitman
sobre
a prosa de Kerouac
sobre
Os Rebeldes
Visitem
a Beat
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by LdeM
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