segunda-feira, 10 de agosto de 2015

As Imagens Surrealistas em Paranoia de Roberto Piva / P1


 





Sobre surrealismo em Paranoia [1963; 2000]
 
poemas de Roberto Piva [1937 - 2010]


 


As Imagens Surrealistas em Paranoia de Roberto Piva





Não é o medo da loucura que nos forçará a deixar a meio-pau a bandeira da imaginação” André Breton (Primeiro Manifesto Surrealista)



RESUMO

Este trabalho objetiva identificar na obra Paranoia (1963) do poeta paulista Roberto Piva (1937-2010) as marcas intertextuais que demonstrem sua inserção no contexto da poética brasileira que dialoga com a vanguarda surrealista (originária das décadas de 1920/1930), além de situar o estilo da poética de Piva.

Palavras-chave: Poesia; Surrealismo; Intertextualidade; Roberto Piva



      A poética de Piva é plural. Permite várias leituras que destacam camada após camada na poesia de Paranoia, ora a linguagem, ora o homoerotismo, ora a transgressão, ora a blasfêmia, ora a descrição da metrópole, a 'cidade-sucata', ora a geração de jovens amigos poetas, ora a busca da espiritualidade xamânica, em poemas densos de referências e intertextos. A dificuldade está em 'integrar' todos os estratos de sua escrita, uma vez que o sujeito poético é, em si-mesmo, múltiplo e contraditório. É tensionado entre a vontade de confessar e de ofender, de descrever e de deformar.


      Nesse artigo, destaca-se uma das camadas, as marcas do surrealismo, ou seja, as marcas da vanguarda surrealista no estilo e nas imagens de Piva, além do método paranoico-crítico do pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989), que integrava representação e alucinação, confissão e delírio, vida urbana e mundo onírico.

     Há um possível rastro de simbolismo nos poemas de Piva, como na escrita de um Cruz e Sousa (1861-1898) ou de um Augusto dos Anjos (1884-1914), quando se percebe uma distinção, quase uma personificação das sensações, estados emocionais, abstrações, quando não é uma loucura, um delírio, mas a Loucura, ou o Delírio. Assim encontramos a Beleza, a Apoteose, a Seriedade, a Bondade, a Piedade, a Pureza Estagnada, o Espírito Puro, o Fôlego, o Tédio, o Tempo, a Vida, a Eternidade, a Morte Absoluta, o Abismo, a Noite, o Caos. São abstrações quase corporificadas, entes metafísicos que circulam nas peripécias do sujeito poético. Ele dialoga com elas, blasfema contra elas.

     É de se lembrar que o uso de maiúsculas é evidente na poesia do poeta Beat norte-americano Allen Ginsberg (1926-1997), quando em seu poema-uivo Howl (1955/1956) ele proclama, dentre outras metafísicas, as presenças de Heaven, Eternity, Time, Absolute Reality, Space, Mind, Soul, Nightmares, Angels, Epiphanies. Certamente, Piva, poeta e entusiasta, e Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta, foram leitores e tradutores dos poetas norte-americanos da geração Beat e a divulgarem nos círculos literários de São Paulo, e posteriormente, no resto do Brasil, com outras traduções, principalmente de Howl por Willer e de On the Road, de Jack Kerouac, por Eduardo Bueno (1958-).

     Há em Paranoia de Piva um surrealismo ao adentrar o mundo onírico, em alucinações, com suas características de deslocamento e condensação, ou seja, metáfora e metonímia (segundo a leitura psicanalítica de Jacques Lacan (1901-1981), a relacionar processos oníricos com as figuras de linguagem, pois acreditava que o “inconsciente se estrutura enquanto linguagem” ), contudo, o surrealismo piviano é temperado com ironia, entre analogias e metáforas, recheada de delírios e imagens sobrepostas ou desfocadas.

     Uma poética que parte de descrições, referências geográficas deslocadas em alucinações. Ou seja, surgem a partir do referencial, do vivenciado, mas sofrem uma deformação com as tonalidades do ser subjetivo. É o seu uso do método “paranoico-crítico”, como professava Dalí, a pretender trazer até a Arte os delírios da paranoia. Não por acaso a obra de Piva é intitulada com base neste transtorno psicológico.

      A poética de Piva (e gradativamente após Paranoia) é um desafio à racionalidade iluminista, uma voz que clama no deserto midiático, lá ignorado tanto por Direitas quanto Esquerdas, um marginal até para os rotulados marginais, não por escrita 'marginal' (ao contrário, pois demonstra erudição) mas por ser marginalizado, a situar-se tal qual os poetas da chamada Geração Beat, nos Estados Unidos, durante as décadas de 1950 e 1960, contra o mundo ocidental, mais dados ao romantismo inicial, à magia do Oriente, ao clamor surrealista. Melhor seguir o sonho e a fantasia do que um mundo tecnocrata que comercializa a guerra, que mercantiliza a destruição em massa, que sistematiza os genocídios.

      Roberto Piva se considerava um poeta na cidade, mais do que um poeta porta-voz da cidade, antes ele preferiria viver no campo, numa negação do mundo pós-industrial, num novo bucolismo de viés xamânico. Daí ser inexato situá-lo entre os flâneurs, ao estilo de Charles Baudelaire (1821-1867), ou Cesário Verde (1855-1886). Há então ânsia de bucolismo? Sim, mas não na obra Paranoia, mergulhada na selva-de-concreto urbana. Como já dissera Piva em entrevista, “Paranoia foi a forma que encontrei para exorcizar a cidade e o câncer urbano das pessoas.”




 
Os Surrealistas

     Os artistas surrealistas, desde os anos 1920, sempre lembraram em escritos, manifestos e proclamações que o surrealismo não se restringia apenas ao campo da Arte, mas ao todo da vida, ao integrar vivência e criação. O importante era apresentar ao 'homem desperto', alienado e domesticado, as perspectivas do 'homem adormecido', pleno de sensações não reprimidas. E o movimento muito menos se limitaria à literatura, à escrita automática, uma vez que o 'registro' dos devaneios e sonhos em imagens sempre foi uma forte expressão do grupo, com pintores que ficaram mais famosos que os escritores. Pintores como o francês Francis Picabia (1879-1953), o alemão Max Ernst (1891-1976), o belga René Magritte (1898-1967) e o espanhol Dalí.

     São notáveis as marcas do Simbolismo, do Dadaísmo e Expressionismo na produção do Surrealismo, que apresentava o mundo dos sonhos e dos devaneios, em reação ao Futurismo, que exaltava o mundo das máquinas e da velocidade. Semelhantes aos poetas de outras vanguardas, os surrealistas proclamavam uma lista de precursores, como que anunciadores da 'boa nova' do Surrealismo, como se havendo uma continuidade de 'visionários' que se estendia deste o bardo florentino Dante Alighieri (1265-1321) passando pelo poeta místico inglês William Blake (1757-1827), os poetas-videntes alemães Novalis (Georg Philipp Friedrich, 1772-1801) e Friedrich Hölderlin (1770-1843), e o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) e chegando aos poetas 'videntes', os 'poètes maudits', Charles Baudelaire (1821-1867), Arthur Rimbaud (1854-1891) e o Conde de Lautréamont (Isidore Ducasse, 1846-1870). As influências são reconhecidas em várias obras dos vanguardistas, evidenciando o quanto havia de tradição na inovação.

     Muitos autores surrealistas se destacaram, seja na prosa ou na poesia, ou unindo ambas, em longos e alucinados poemas em prosa, em narrativas um tanto absurdas e m enredos descontínuos, desordenados, à deriva dos delírios. Alguns se destacam pela influência que exerceram sobre outros artistas, surrealistas ou não. Outros foram além do rótulo 'surrealista', tais como Paul Éluard (1895-1952), com sua poética amorosa, multimetafórica, ou Antonin Artaud (1896-1948), conhecido pela loucura de sua obra e vida, ou Jacques Prévert (1908-1977) e Raymond Queneau (1903-1976) que seguiram outras vertentes, ou mesmo Georges Bataille (1897-1962), que se destacou como pensador, em obras a destacar o valor transgressivo das poéticas.

     Assim, dos poetas surrealistas que podemos mencionar, dentre vários que deixaremos ao largo, a maioria é de origem francesa, dispostos ao redor da figura centrípeta de André Breton, autor de poemas, romances e manifestos (os mencionados Manifestos Surrealistas de 1924 e de 1930), lembraremos daqueles que foram apropriados nas obras dos poetas surrealistas latino-americanos, segundo as pesquisas do poeta Floriano Martins, tais como o mexicano Octavio Paz (1914-1998), o chileno Vicente Huidobro (1893-1948), o peruano Cesar Vallejo (1892-1938), e os brasileiros Roberto Piva e Claudio Willer, mais próximos de nosso estudo. Assim merecem ser lembrados o pré-surrealista, poeta simbolista e dramaturgo (do que seria depois o Teatro do Absurdo) Alfred Jarry (1873-1907), Philippe Soulpault (1897-1990), Louis Aragon (1897-1982), Pierre Revérdy (1889-1960), Benjamin Péret (1899-1959), René Crevel (1900-1935), Robert Desnos (1900-1945), além do mencionado Artaud.

     Na condição de vanguardistas os poetas se voltam para a criação e para a autoanálise, em metapoemas que desvelam os anseios da 'juventude revoltada' (a 'jeunesse revoltée', segundo Claude Abastado) num vórtice de aceitação e rejeição, pois ao se exporem geram escândalos, e mais transgressões que geram mais fama e mais deslocamento. Tantas leituras e referências que demonstram a dívida que os jovens surrealistas tinham com os românticos, os simbolistas, os decadentistas, os expressionistas, os 'malditos', os dadaístas, os cubistas, seja consciente ou inconscientemente. As poéticas de Revérdy e Péret evidenciam uma posição do poeta diante da escrita, as motivações, as buscas , os desencontros, enquanto Aragon, Crevel e Desnos se deixam levar mais pelos devaneios descritivos-deformados, que não faltam em Artaud, autor de uma dramaturgia 'de choque'.

     Na defesa da vanguarda surrealista, André Breton se tornava mais formalista, exigente e até autoritário, o que provocava rupturas e dissensões. A dificuldade, até impasse, está em conciliar a liberdade do fazer artístico com os imperativos das ideologias partidárias. Em que proporção a Arte deve servir aos objetivos panfletários? A ênfase seria dada sobre o modo de fazer ou sobre a mensagem? O poeta deve se preocupar com suas confissões ou com os debates políticos de sua época?




 
Surrealistas no Brasil

     A vanguarda surrealista é de predominância francesa, de ambiente francês, contexto cultural europeu, pós-Primeira Grande Guerra (1914-1918), com as denúncias dos horrores dos conflitos imperialistas, dos desatinos políticos e econômicos que assolaram a autocentrada civilização europeia ocidental. Esta característica de produto cultural exógeno faz levantar uma questão: será que a vanguarda surrealista no Brasil foi um exemplo de “ideia fora de lugar” (bem diagnosticado pelo crítico Roberto Schwarz em relação ao Liberalismo na época do Império) quando se percebe que o surrealismo na Europa foi uma reação ao racionalismo tecnocrata-imperialista, sendo que no contexto brasileiro sempre convivemos com o irracionalismo. O surrealismo no Brasil seria redundante? Temos uma ordem positivista, mas uma desordem tropicalista.

     Tivemos, contudo, uma poética de construção, uma poesia-concreta, pensada, arquitetada, ao estilo João Cabral de Melo Neto (1920-1999) ou dos irmãos Campos (Augusto, 1931- e Haroldo, 1929-2003). Havia ânsia de desenvolvimentismo, de construção, de ampliar o processo civilizatório, não criticá-lo, não desafiá-lo, mas, antes, integrar-se à crescente expansão do capitalismo global, com suas vantagens, e desvantagens. É preciso olhar em que contexto cultural o surrealismo entrou, com certo atraso, após uma leve influência sobre a primeira geração de modernistas nos anos de 1930, tais como Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Murilo Mendes (1901-1975) e Jorge de Lima (1893-1953), uma vez que o tom surrealista possibilitava expressar imagens da tradição, das lendas, do caos social, do misticismo religioso.

     Uma época de liberalismo e desenvolvimentismo, quando surgia o poeta Roberto Piva e seu Paranoia, no início dos anos de 1960, após a passagem do populismo do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), o JK, e a chegada do populismo janguista, do presidente João Goulart (1919-1976), o Jango, expulso pelo Golpe Civil-Militar de 1964, que instalou um regime autoritário, de moldes centralistas direitistas, anticomunistas, contra os sindicatos e a livre expressão, até a volta à democracia em 1985. Assim foi na segunda metade da década de 1960, e em radicalização repressora na década de 1970.

     Para melhor se entender o contexto cultural recorremos ao crítico Benedito Nunes (2009) com seu ensaio A Recente Poesia Brasileira: Expressão e Forma, onde evidencia o 'fantasma do autoritarismo' que assombrou esta geração, cheia de suspeitas quanto a cultura ocidental,

Com a virada política de 1964, malogrando essa participação, na atmosfera do 

medo às ideias, de repúdio à inteligência e de desencanto relativamente à 

função libertadora da poesia – atmosfera que acompanhou o regime militar, 

sinônimo de portas fechadas - , houve o enfraquecimento, o abandono, 

quando não o desprezo, da tradição moderna pela geração típica dos anos 

1970: os poetas decepcionados com a cultura, que parecia reproduzir o 

fantasma do autoritarismo, os poetas que cultivaram uma atitude de 

transgressão a todos os códigos, fazendo da poesia linguagem de negação e 

de exclusão por excelência – linguagem que ficava à margem das instituições, 
 
e que resguardava a marginalização a que se expunham ou a que haviam sido 

relegados. (2009, p. 160)

 
o que mostra o quanto de resistência foi necessária para Piva se manter publicável e atuante numa situação nacional de censura e violência. Os poetas se marginalizavam e eram marginalizados, suas obras sem lugar no mercado. É preciso criar um 'mercado paralelo', em vendas e trocas por conta própria, imprimindo artesanalmente, em cópias de mimeógrafo, o que deu nome a esta geração de resistentes. (Uma resistência cultural, enquanto outros resistiam com armas.)

     Numa época assim, de pós-populismo, de autoritarismo, de censura e violência, Paranoia seria uma obra paranoica? Uma obra a refletir um estado mental de claustrofobia e horror? Num momento de vertigem diante do pesadelo nuclear? Percebe-se todo um clima apocalíptico devido à Guerra Fria, quando as superpotências Estados Unidos e União Soviética se ameaçavam com seus arsenais. [Em 1962, o episódio da Crise dos Mísseis, quando o governo soviético foi acusado de instalar mísseis na ilha de Cuba, que se proclamara socialista.] Afinal, o título da obra se refere a um transtorno de caráter psicológico, segundo consta em qualquer volume de Psicologia, onde Paranoia é classificada como um tipo de Psicose (doença mental grave com alucinações), um distúrbio mental com ocorrência de delírios persecutórios ou mania de perseguição.

     No quadro da paranoia, o doente consegue se imaginar constantemente em situações de perigo, sob ameaça alheia, a distorcer até acontecimentos banais como reais ataques à sua pessoa. Mais: o doente se convence da perseguição com um afastamento da realidade. E já que são ilusões, há uma fuga da racionalidade, isto é, do controle da razão, o que acontece em outras doenças do tipo psicose, como a esquizofrenia (demência precoce), com algumas reações paranoicas. No mais, a paranoia pode ser crônica e progredir até a necessidade de uma internação, quando infelizmente a possibilidade de sucesso da psicoterapia é muito remota.

     A flertar com a loucura, o desmembramento do sujeito, meio paranoico e consciente, assim se situa Roberto Piva enquanto poeta-criador, ao saber-se paranoicamente ciente, como diz em seu manifesto Minotauro dos Minutos, contra o penico estreito da Lógica, contra as bordadeiras de poesia, ao ajudar-nos a situar sua obra como surrealista, mas não de simples nonsense, ou absurdo. Mas de resistência e transgressão. Tecida de devaneios que revelam símbolos, até arquétipos, como esperava Gaston Bachelard, para quem não adianta explicar, ou querer analisar com outras abstrações, antes “explicar o devaneio pelo devaneio”.

     Em seus devaneios, o poeta encontra outros poetas, seus mestres de tantas leituras. Piva, enquanto poeta-leitor, convive em andanças textualmente com poetas e pensadores, vozes vitalistas e iconoclastas, não só os surrealistas, mas, sobretudo, os inclassificáveis, tais como Dante, Lautréamont, Dostoiévski, Whitman, Rimbaud, Freud, Breton, Robert Desnos, Garcia Lorca, Ferenczi, Monnerot, Kafka, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Artaud, Allen Ginsberg, Gregory Corso, Burroughs, Kerouac, Lamantia, Ferlinghetti, dentre tantos outros. Uma sucessão de autores desde a Idade Média até meados do século 20.

     Desde os seus quatro primeiros manifestos, publicados em 1962, com o coletivo Os que viram a carcaça, Piva se evidencia entre oposições, mesmo entre tensões, vivendo entre o campo e a cidade; entre o flâneur e o xamã; entre o confessional e o iconoclasta; entre o lírico e o grotesco; entre a consciência e a paranoia; entre o aristocrata e o libertário; entre a tradição e a vanguarda. Já inaugura suas metáforas corrosivas em Bules, bílis e bolas, onde conclama que devemos é se entregar ao desregramento, bem ao estilo de Rimbaud (confessado em sua carta, denominada “do vidente” ) pois é fato que somos deliciosamente desorganizados. Assim em A máquina de matar o tempo muitas ironias, pois queremos amigos que não sejam sérios, mas sim contra os gabinetes, contra as borboletas douradas, contra a poesia das Arcadas. Também em A catedral da desordem mais oposições/tensões, sendo contra Hegel por Artaud, pois está contra a Lógica pela Magia, e contra a mente pelo corpo, para no final bombardear contra tudo por Lautréamont, ao se identificar com o mundo paranoico de Maldoror.

... 


continua ...


dez/14

Leonardo de Magalhaens


(Leonardo Magalhães Silva)


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