A
poética nômade de Ruy Cinatti
Leonardo
Magalhães
Fale
/ UFMG
Biografia
básica
Ruy
Cinatti (1915-1986), poeta, além de botânico, engenheiro-agrônomo
e etnólogo, tendo estudado em Lisboa (Portugal) e Oxford (Reino
Unido), viveu em viagens por colônias portuguesas (Estado do
Ultramar) na África e na Ásia, durante as décadas de 1930 a 1960.
Cinatti defende os interesses portugueses, mas ciente das condições
precárias dos colonos e nativos, a sofrerem com a política
imperialista. O poeta, um 'católico militante', integrava-se ao
'catolicismo social' que, em discurso de conservadorismo, baseava
ideologicamente o nacionalismo português, o salazarismo, desde a
década de 1930.
Mesmo
integrado aos movimentos literários e religiosos na metrópole, com
as revistas Cadernos de Poesia e
Aventura, Cinatti demonstra desconforto com a sociedade
portuguesa, cindida por diferenças ideológicas, reacendidas pelo
conflito internacional (a Segunda Guerra Mundial, 1939-1945),
então aceita, em 1946, com a nomeação de um novo governador,
integrar uma expedição à ilha de Timor, no sudeste asiático, em
domínio indonésio, ocupada pelas tropas japonesas recentemente
expulsas. Assim, o poeta assume o seu lado “português da aventura”
devido ao seu próprio caráter e graças às tantas leituras, com
narrativas de viagens e explorações. Afinal, ao assumir sua
'condição itinerante' de “navegar é preciso”.
Em
1956, Cinatti divulga o manifesto Em defesa dos timorenses
contra o preconceito metropolitano que rotula os timorenses de
ociosos e preguiçosos. Antes, o autor denuncia a incompetência e os
abusos dos funcionários e administradores do governo português. Em
1958, Cinatti lança seu terceiro livro de poesia, chamado O Livro
do Nómada Meu Amigo, a poetizar e descrever as experiências
vividas no mundo timorense, após sua segunda 'temporada' na colônia.
Em
1964, Cinatti retorna à Europa, onde visita museus e universidades,
em cidades da Inglaterra, França, Holanda e Suíça. No final da
década de 60 o poeta passa por uma experiência de 'conversão
espiritual', que aprofunda sua adesão ao catolicismo. Dizia ele :
“Sou um católico poeta. Não sou um poeta católico.” Em
início de 1974, o quadro político em Portugal sofre profundas
mudanças com a Revolução dos Cravos. Em fins de 1975,
desprotegida, praticamente sem governo, a colônia timorense é
invadida por forças indonésias. Evento traumático para o povo e
para o poeta que se identifica com o povo.
O
Nómada / Nômade
Nomadismo,
a impermanência, o não comodismo, o não sedentarismo, como modo de
vida e relação com o cosmo, o mundo, enquanto desejo de descoberta,
de contato com a novidade, com o inesperado. Assim o poeta se
encontra na errância, “labor poético sob o signo da errância”
ou “poesia como forma de nomadismo” (Moreira) como bem
demonstra a figura do homo viator, o homem viajante, o
andarilho, the wanderer, qual um Judeu Errante, mas não
um amaldiçoado, em novas trilhas, sempre em busca de novos espaços,
novas experiências. A figura do andarilho, que tanto seduziu o
pensador, o último dos filósofos metafísicos, Friedrich Nietzsche
(1844-1900), criador do profeta errante Zaratustra, eremita que deixa
a solidão para ser peregrino.
O
nómada, o que não tem morada fixa, aos olhos do sedentário é um
marginal. É alguém que não se enquadra no estreito limite que um
mundo crescentemente sedentário, impessoal e individualista tem
vindo a impor. Ele não se ajusta a códigos sociais ou políticos. O
seu grupo, se quisermos colocar a questão nestes termos e
desviar-nos do indivíduo, está sempre à margem. (Moreira, 2013, p.
62)
Outra
figura da errância, o flâneur seria o homo viator das
metrópoles, das grandes cidades cheias de vitrines e luzes néon. Um
ser dotado de olhar e percepção aguçada, capaz de andar e
observar, palmilhar e sentir, capaz de descrever e estar além do
prosaico, transmitir o sentimento, em sua poesia em trânsito, num
deslocamento entre tantas vivências, a buscar aventuras a cada
quarteirão. Ao avançar mais que o flâneur, temos o nômade
que não vive num lugar apenas, mas habita diversos. Tem um olhar
atento e participante sobre povos diversos, com os quais divide
espaço e pão, com os quais coabita e colabora.
Vida
em viagem, epifanias na estrada. Mas não basta ser nômade, é
preciso saber olhar e transmitir. Ser um poeta capaz de
descritivismo, mais dado aos detalhes, em re-criações ricas de
sinestesias, para levar junto o leitor, para aderi-lo ao mundo em
trânsito, em cada nova viagem. É assim que exige o olhar que
testemunha a Alteridade, a condição do Outro, que faz mais evidente
a nossa própria condição. Sabemos mais sobre nós mesmos quando em
contato com outros povos.
O
que está em causa é apenas a mais completa novidade e a contínua
surpresa do mundo, facultadas pela visão em permanente estado de
deslumbramento. (Frias: 2011, p. 190)
E
mais do que descrever, como um mero turista, o poeta vem participar,
e ousa denunciar. Pois ele sente compaixão, ele que viveu junto,
comeu do pão generosamente dado, foi bem recebido pela
hospitalidade. Ele, um forasteiro, um cientista, um nômade que nada
sabia, mas produzia conhecimento junto, em participação e
compaixão.
Sem
o contato, sem o sofrer-com, o poeta não passaria de um cientista, a
coletar espécimes, ou um turista, a colecionar paisagens. É preciso
estar-com para testemunhar a condição do Outro e denunciar os
exploradores que sempre lucram com a miséria alheia. É preciso
ir-além, e estar atento, não trilhando caminhos já batidos, mas
abrindo novas rotas. O poeta usa sua palavra na condição de
desbravador e defensor, não um herói, ou um mártir, mas um
amigo-nômade.
O
aventureiro não é senão o nómada bem aventurado, porque é o
nómada que se desvia das rotas habituais, graças à sua especial
paixão pelos desvios do caminho traçado. (Frias: 2011, p. 192)
Para
Cinatti importa antes a figura do inquieto, ou dos “pioneiros do
descobrimento”, que almejam algo além, que esperam transcender, e
se destacam por solidão, mas também, solidariedade. O poeta busca
novas amizades, dialoga com o amigo em viagens, o amigo nómada,
que é esperado enquanto interlocutor. Mas o viajante é o próprio
poeta, em sua inquietação, o que nos leva a pensar que o amigo
nómada é uma espécie de alter ego. Em vários poemas, e em
outros livros, a figura do alter ego é evidente.
Não
apenas o nómada, mas também os amigos, que recebem dedicatórias,
com a evocação dos mesmos nos versos. Assim no belo e imagético
poema Visão, onde evoca-se Alain, que seria Alain Gerbault,
navegador francês, falecido em Timor, “Alain, Entre
vagas, velas e gaivotas.”
Levanto
as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu
!
Sonho
no mar sereias : algas
Corais
limosos … Eu acordava
entre
aguaceiros límpidos. Pinhais,
Pássaros,
flores, penumbra e arcada de
árvores
-
Momento
Que
ao de leve anotava.
Serenamente
explorava
Apelos
e miragens.
Era
o mar cheio de estrelas,
Barcos
partindo para não sei onde.
Ondulações
magnéticas, antenas.
Ansiedade...
Eram
ilhas
Hérculeas:
coroas
Vegetais
sobrenadando
Altos
castelos submersos e, apenas,
(“Sepultem-me
no mar, longe de tudo”),
Alain,
Entre
vagas, velas e gaivotas.
Levanto
as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu
!
O
tom da obra O Livro do Nómada é de desejo e missão, de
busca de novidades, de novos mares e terras, numa elevação de
epopeia, mas vivida por homem simples, um cientista, um
administrador, meio aos povos nativos, que passam a ser vistos como a
figura do 'bom selvagem', homens de alma pura, que merecem a
admiração do poeta. Povos que são explorados, despojados de toda
esperança. Mas povos que são capazes de muito ensinar, “O
timorense meu amigo ensinou-me muitas coisas”, reconhece o
poeta Cinatti.
A
epopeia do homem comum, para fora e para dentro de si mesmo, num
inquietar constante, foi bem apontada por Moreira, em sua
dissertação,
Compreender
o tal “mistério de existir” pessoano, como já atrás referimos,
é algo que confere força à poesia de Cinatti, pelo que é óbvia a
perspectiva do autor relativamente à possibilidade de o desvendar. A
autognose, a descoberta de si nos outros e em Deus funcionam como
motores. Visto que o melhor mundo está por descobrir, a estratégia
adoptada vai aproximar-se muito da de Cesário ou de Caeiro. Não se
trata somente de uma vigília, mas sim de uma deambulação que não
se enceta apenas no plano físico; vai para além dele, como aliás
já se adivinhava nas citações de Fournier e na evocação da tal
outra paisagem que não se avista, mas se (pres)sente. (2013, p. 49)
Em
sua missão, de deslocamento e de amadurecimento, pois “O melhor
mundo Está por descobrir” (no poema Vigília), o poeta
evidencia uma dinâmica dos olhares, sempre abertos para a novidade
do mundo, tal um Alberto Caeiro, sempre ciente de si mesmo, mesmo
autodepreciativo, a lembrar-se modesto, humilde, tal um Álvaro de
Campos, pessoas do universo heteronômico de Pessoa. Em trânsito
entre mar e ilha, entre meditação e solidão, entre imensidão e
recolhimento, o poeta oferta imagens que desvelam as descobertas e as
desilusões, numa jornada que congrega lugares e pessoas, não mapas
ou estatísticas, não apenas pesquisas, mas participação. É o ser
participante que diferencia o ser poeta. Não ser apenas um
solitário, mas também um solidário.
O
sujeito procura sempre compensar esse isolamento, tornando
fisicamente presentes aqueles que estão longe e adoptando uma
postura de fraternidade universal que está patente logo no primeiro
poema de O livro do nómada meu amigo, “Proclamação”
(ibidem: 101). (Moreira: 2013, p. 64)
Assim
o poeta não se afasta, mas se aproxima, para melhor participar e
poder testemunhar. É um nômade que vai de ilha em ilha, cidade em
cidade, e coleciona olhares e amizades, mas sem perder sua capacidade
de ensimesmar e criticar. É ter um olhar novo, constantemente,
disposto para descobertas, pois, ele sabe, “a vida é todo
mistério”.
Nunca
mais soube O que era ter sossego.
A
maresia das ondas, a ventania
dos
montes mais altos, decidiram
a
minha condição. Mas não me queixo.
Tantas
referências na poética nômade
Para
a análise crítica do poema é necessário um olhar sobre dois
aspectos, ou condições, a saber, o que está dentro e que está
fora, a forma do texto, e o que está além do texto. Podemos ler o
léxico, os campos semânticos, as vogais abertas e fechadas, o
ritmo, as rimas, as métricas; e precisamos ler as entrelinhas, com
seus intertextos, redes de referências, o que não está escrito,
mas o/a poeta espera que saibamos. Acontece que o Poema exige do
Leitor completar
o que é dito textualmente. Do texto é preciso ir além: ao
Contexto. Quem o produziu? Onde o produziu?
Temos
poetas que exercitam estilos no plano formal, com riqueza de recursos
de sonoridade e metrificação, enquanto outros poetas preferem
desafiar os leitores a encontrarem os intertextos, as referências,
com tal quantidade de informações que exige uma leitura interativa,
e criativa, acessando filosofia, mitologia, antropologia, botânica,
heráldica. Há verdadeiros autores enciclopédicos e/ou herméticos,
que dizem pouco, quando esperam que o contexto seja recuperado além
do texto. Assim impérios, conspirações, palavras cabalísticas,
cartas de tarô, períodos históricos, sistemas filosóficos estão
no horizonte do autor erudito, seja por suas leituras e/ou por suas
vivências. Em tal erudição, o/a poeta cria textos que necessitam
de longas notas de rodapé. E, caso ausentes, de uma dedicada
pesquisa do/a leitor/a.
Ou
situar o poema na Obra do Autor. Ou melhor, o texto no contexto do
autor – o que aquela palavra ou imagem representa no conjunto
dos
textos, ou de um texto em relação ao(s) outro(s). A imagem foi
referenciada / representada com que Sentido? O que está implícito?
Qual a função no
texto? Ou será ligar
o texto ao(s) outro(s) numa teia de referências?
Sendo
assim, não falamos mais de forma, mas de Estilo. E, para além do
texto, temos a Obra. Para além de Autor e Obra, temos a biografia, e
a 'máscara autoral' (o poeta-fingidor, o poeta-profeta, o
poeta-testemunha, o poeta-flâneur,
o poeta-revolucionário, etc). E teremos uma gama de recursos do
autor / máscara autoral que podem ser encarados como positivos ou
negativos: o autor é multifacetado por estilo ou por falta de
estilo? É inovador a cada obra ou é instável, sem rumos? Sua
variação é fingimento ou falta de caráter?
A
presença de nomes de cidades, rios e montanhas, ou alusão aos povos
ilhéus, na poesia de Ruy Cinatti mostra o quanto o olhar de
cientista, de antropólogo, está presente no artista, no autor, que
deseja descrever, representar, explicitar, até didático. São
poemas que muitas vezes exigem notas e referências, das quais o
próprio poeta cuida, ou são acrescentadas por editores. Pois ao
redor do poema está muito mais do que o poema pode dizer.
Precisamos
saber quem escreveu e onde escreveu. Quem é o Ruy Cinatti que
perambula curioso e científico por uma ilha chamada Timor? Há uma
necessidade de um olhar sobre os traços biográficos do Autor, o
co-irmão do nômade. Distante da pátria lusitana, nas praias da
colônia, em Timor que é geografia e alegoria, Cinatti rememora a
aventura dos navegantes portugueses, como num diálogo com o poema
épico de Luís de Camões,
Confuso
estou com o meu país,
que
não é feliz
e
só ao cabo de oitocentos anos
descobriu
– até quando? -
que
nos enganamos
e
que a verdade está só com os de Restelo
-velhos
e poetas impotentes jovens
que
só distantes
berram
pela mãe
que
lhes deu o seio,
pelo
pai,
que
lhes deu os dentes.
Que
sirva isto de intróito a menos meio
deste
relato.
Timor
foi lição de mira e de contato,
esquadria
e facto,
peregrinação-alegoria
[…]
(Palinódia
com Fernão Mendes Pinto de Permeio,
in:
Paisagens Timorenses com Vultos / 1974)
As
nomeações e situações, as localidades e fatos históricos criam
uma moldura para o exercício poético, que parte de fora para
dentro, num diálogo, que é mais do que descrição, é
participação. Mesmo seu didatismo, não raro enciclopedismo, se
justifica pela suposição de uma ignorância do leitor – afinal,
quem conheceria Timor? O viajante em necessidade de situar o leitor,
carregar junto no percurso, pontua suas lembranças de vivências, em
fotogramas de cada paisagem, cada cidade, cada vulto humano, cada
novo amigo.
A
paisagem (que o afundou) diz muito do estado íntimo do poeta,
perturbado, em sua compaixão, por um mundo abandonado no sofrimento.
É por compaixão, ou dirá 'amor', que ele escreve, adensando sua
poética a cada viagem, um nómada consigo mesmo.
Jun/15
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REFERÊNCIAS
CINATTI,
Ruy. Paisagens Timorenses com Vultos. Lisboa: Relogio D'Água,
1996.
COSTA,
Letícia Villela Lima da. Metáforas do Mosaico: Timor Leste em
Ruy Cinatti e Luis Cardoso. (Tese) Universidade de São Paulo,
2012.
FRIAS,
Joana Matos. Olhos Novos para contemplar Mundos Novos: Corografias
de Ruy Cinatti. Universidade do Porto. Cadernos de Literatura
Comparada. Junho / Dezembro, 2011.
MOREIRA,
João Luís Salgueiro. Ruy Cinatti – O Livro do Nómada meu
Amigo ou A Poesia como Nomadismo. (Dissertação) Universidade de
Lisboa, Faculdade de Letras, 2013 .
STILWELL,
Peter. A Condição do Homem em Ruy Cinatti. Revista
Didaskalia, vol. XXII, 1994.
___________
. O Timor de Ruy Cinatti. Lisboa, revista Camões, n.
14, jul/set.2001.