Sobre
o Romance A
Última Quimera [1995]
de
Ana Miranda
Romance
Biográfico cria a personagem Augusto dos Anjos
Leonardo Magalhães
Fale - UFMG
Augusto
dos Anjos (1884-1914) nasceu na província da Paraíba, num engenho
em decadência, de onde saiu para Recife, onde estudou Direito. Era
um ser profundamente hipocondríaco, e acabou por morrer jovem, aos
30 anos, de pneumonia (e não tuberculose, como acreditam). Somente
publicou um livro quando vivo, o hoje aclamado Eu
(1912), a transbordar de ceticismo, pessimismo, melancolia e revolta.
A
poética de Dos Anjos não se encaixa em rótulos, os estilos de
época. Em seus poemas há um formalismo parnasiano, com belos
sonetos, cuidadosamente compostos, e há uma temática, até mesmo um
vocabulário cientificista, a lembrar o naturalismo. Temos uma
exploração sonora e imagética que lembra o simbolismo, com suas
sugestões, mas há um exagero de deformações que é
expressionista. A 'atmosfera' criada é do decadentismo, enquanto sua
verve transgressora é de vanguardista pré-modernista.
Tão
difícil quanto situar a poética de Dos Anjos, é compreender a
figura do escritor. Filho de latifundiários decadentes, estudioso
voraz de filosofias e ciências, emocionalmente introvertido, tímido
mas com traços de megalomania. Ele passou por sua época a colher
somente incompreensões e injustiças. Estava além de rótulos.
Outras
figuras da nossa literatura não servem aos rótulos, nem foram
compreendidas quando escreviam. Assim aconteceu com Raul Pompeia
(1863-1895), Sousândrade (1832-1902), Pedro Kilkerry (1885-1917) e
não foi diferente com Dos Anjos. Pouco sabemos sobre suas vidas, e
faltam biógrafos interessados. Necessárias as biografias que
apresentem um
contexto
para os textos.
Afinal,
o que é a biografia senão um relato de uma vida? Um gênero entre o
factual, o documental, e o artístico, o ficcional. Em sua forma de
buscar coerência, narratividade, uma unidade na multifacetada
personalidade biografada, a biografia tende ao caricatural, a reduzir
a densidade do vivido a um relato.
Por
seu caráter de 'narrar uma vida' a biografia muito se aproxima dos
romances, aqueles que abarcam toda uma existência, do berço ao
túmulo (from
the cradle to grave),
com o desenvolvimento dos protagonistas, como são os romances de
formação (Bildungsroman),
os romances de geração, testemunhos de uma época, muitos ao estilo
roman
à clef,
com os nomes das personalidades ocultadas por pseudônimos, e os
romances autobiográficos, declarados assim, ou não, com nomes reais
ou fictícios.
Mais
do que se aproximar, o gênero biográfico compartilha
características de romance, com uma narratividade intrínseca, em
seleção e recriação de episódios, a partir de dados e
depoimentos, com um ordenamento que não é do factual, mas da
produção ficcional. A diferença fundamental é que ao gênero
biográfico importam dados extratextuais,
se possível cartas, documentos, arquivos, etc, que emprestem
referencialidade.
Considerando
que toda biografia é romance, como defendem Roland Barthes e
François Dosse, um romance que não se assume, com sua pretensa
referencialidade, melhor seria ler um romance biográfico, que se
assume sua ficcionalidade e oferta ao leitor marcantes fragmentos da
vida das personagens, que se baseiam em personalidades. Assim o que
são chamados de 'biografemas'.
Para
transformar a personalidade em personagem, para preencher as lacunas
das referências com biografemas, a autora usa um narrador que tudo
sabe da vida do 'poeta do hediondo', pois trata-se de um amigo que
compartilhou a infância, visitante assíduo, sujeito familiar, um
homem obcecado pelo talento e pela tragédia do outro, como um Dr.
Watson obcecado por Sherlock Holmes, na série de Sir
Conan Doyle. O narrador recria várias cenas e diálogos a partir de
cartas, trechos de poemas, obras lidas, tomos de filosofias,
notícias, depoimentos de contemporâneos.
Cenas
são recriadas com toques de ficção, pois é abertamente um
romance. Ao saber da morte de Augusto dos Anjos, dois amigos do
falecido poeta andam pelo centro histórico do Rio de Janeiro e se
encontram com o famoso 'Príncipe
dos Poetas'
Olavo Bilac. Este ao saber da morte, curioso, quer ouvir um poema do
falecido, mas ao fim desdenha, “Se quem morreu é o poeta que
escreveu estes versos, então não se perdeu grande coisa.” No
romance A
Última Quimera
o narrador (cujo nome jamais sabemos) é quem conversa com Bilac, é
quem declama um outro poema, mas ouve o mesmo tom de desprezo. O
poeta das cenas funéreas não foi bem recebido em sua época.
A
época que é cuidadosamente reconstituída, no melhor estilo do
romance histórico, com o fim da Monarquia, e o estabelecimento da
República no Brasil, com as revoltas e mudanças culturais, a
modernização e as epidemias, a influência francesa e as querelas
literárias. É uma época de transição, quando o parnasianismo e o
simbolismo deixam o palco para os estilos agrupados no rótulo
'pré-modernismo', entre realismo e decadentismo. Apenas uma década
após o lançamento de Eu
acontece a Semana
de Arte Moderna,
em São Paulo. As vanguardas chegam aos palcos da metrópole.
Baseados
em muitos poemas de Dos Anjos, os diálogos se estendem entre ciência
e filosofia, em questões existenciais e metafísicas, com o ser
humano consciente de sua finitude, de sua degradação, rumo ao nada.
São as personagens num drama trágico, entre enfermidades e perdas,
num clima de fatalidade que preenche as páginas. Personagens sofrem
com doenças, perversões, solidão, misantropia, falta de
reconhecimento. Todas giram em torno de Augusto dos Anjos, a
personalidade inalcançável, indescritível, uma vez que confunde
qualquer perspectiva de rotulação. Aliás, questões discutidas:
qual o estilo do autor? A qual escola pertenceria? Como ler sua obra?
Para
melhor situar a poética de Dos Anjos, o narrador tece comparações
entre os poema do falecido amigo e do reconhecido Bilac, fina-flor do
estilo parnasiano, que abomina referências ao corruptível e se
perde em olhares para as estrelas. Situa por contraste, sublime /
hediondo, ou sentimento /intelecto, ou capital/província.
Fico
mudo por alguns instantes. Como explicar a alma de Augusto? Mesmo sua
própria alma, a do senhor Bilac, tão mais luminosa, visível, que
produz uma poesia voltada para o amor e as estrelas, contém um
enigma. Além disso, o senhor Bilac é um homem nascido numa cidade e
assim, talvez, jamais possa entender o que é alguém vindo de uma
várzea úmida por cujo fundo passa um rio de águas negras, de uma
coloração quase tão escura quanto a noite e, como ela, de uma
sombra densa, profunda mas, paradoxalmente, repleta de mil matizes;
um rio tão misterioso que parece carregar em suas águas a própria
morte. (Parte 1, Eu,
8)
e
também, adiante,
Há
muitas estrelas, miúdas ou grandes, como se o céu comemorasse meu
encontro com o poeta do "Ora
(direis) ouvir estrelas".
Assim como Augusto falava continuamente na morte e seus correlatos,
Bilac trata das estrelas, diz que têm olhos dourados, que há entre
elas uma escada infinita e cintilante; suas estrelas falam, abrem as
pálpebras, o senhor Bilac vive cercado de centenas, milhares,
milhões de estrelas, da Via Láctea, de uma nuvem coruscante, da
estrela-mulher, da estrela-virgem, perdido no seio de uma estrela.
(Parte 1, A
luz lasciva do luar,
1)
É
nas cartas e poemas que a autora Ana Miranda encontra embasamentos
para as referencialidades que o narrador apresenta. São
identificados os indícios biográficos, pequenos 'traços e gestos'
que fazem surgir a personagem Augusto dos Anjos materializando na
ficção a personalidade fugidia do escritor. Sabemos sobre a morte
do filho, a saúde frágil da esposa, as dificuldades financeiras, a
morte do pai, os pequenos roubos da ama-de-leite, a presença do
tamarindo, a árvore da infância que deixa uma sombra sobre toda a
vida.
Como
o narrador retrata seu biografado, ou melhor, personagem? Como uma
somatória dos olhares alheios sobre a personalidade múltipla,
excêntrica, que incomodava por não se encaixar nos padrões
esperados.
Talvez
o aspecto de Augusto, excessivamente magro e escuro, seu ar de
morcego tísico, seu jeito diferente, sua fama de poeta macabro, de
comedor de sombras, seus apelidos de Doutor Tristeza e Poeta
Raquítico, sua imaterialidade - vivia decididamente em outras
esferas - fossem a causa da desconfiança que sofria. (Parte 1, O
Morcego Tísico,
12)
Assim
como a imagem do autor que se desenha nos poemas, com múltiplas
referências ao estado doentio, à morte e putrefação, à
consciência da finitude, como temáticas de uma mente preocupada,
excessivamente preocupada com a condição humana, a buscar
explicações em livros filosóficos ou religiosos, científicos ou
esotéricos. Seu poemas assim retratam, a indicarem alguns
biografemas então usados no romance A
Última Quimera.
Eu,
filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
[...]
(Psicologia
de um Vencido)
Vejamos
a referência ao poema no trecho da ficção, criada a
partir de uma tessitura de biografemas,
Pobre
Augusto, era profundissimamente hipocondríaco. Sofria tanto com suas
crises artríticas. Ele morria de medo de ficar cego, por causa da
conjuntivite granulosa que tivera. Dizia sempre que um dia iria
deixar de ver. Tudo ia ficar escuro para ele, muito escuro. Às vezes
ele caminhava pela casa com os olhos vendados, treinando para o dia
em que ficasse cego. (Parte 2, Uma
simplicidade campesina,
9)
Do
poema Ricordanza
della mia gioventù,
o dado factual sobre a cleptomania da ama-de-leite, que roubava
moedinhas na casa dos patrões,
A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
"- Não, não fora ela -" E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo,
entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
e
o episódio assim recriado na ficcionalidade do romance, que também
se refere aos poemas O
Morcego, Debaixo do Tamarindo e
Vozes da Morte
,
Lembrou-se
do perfume das rosas que cresciam pelas paredes de tijolos da
casa-grande, dos vidros violeta das janelas, das telhas tão velhas
que pareciam plantações de fungos. Falou, como sempre, da história
da moeda de ouro roubada por sua ama-de-leite, que ainda o oprimia e
o fazia ter pesadelos. Dos banhos. Do trem. Dos morcegos. Do
tamarindo. Do Misantropo. (Parte 1, A
plenitude da existência,
6)
Numa
tessitura, ou rede de biografemas “no
sentido de Roland Barthes, reconstruídos pelo autor, historiador ou
romancista”
(Dosse, p. 70), o romance biográfico transmuta uma personalidade
realmente existente em um personagem, mais palpável do que uma
biografia, onde o ficcional tiraria a credibilidade do referencial. O
gênero do romance leva em consideração vida e obra, sem recorrer
ao biografismo, isto é, explicar a obra pelo autor, pela vida do
escritor. Afinal, do sujeito apenas temos uma imagem fragmentada.
Antes importam mais os “traços
e gestos da personagem”
(Dosse, p. 74) que compõe um panorama mais amplo, a preencher
algumas lacunas (como são exemplos os diálogos construídos com
trechos de cartas e poemas).
Biografemas
e intertextualidade possibilitam uma melhor apresentação da vida e
da obra, mais do que uma biografia oficial. O importante é conservar
o factual no entrelaçamento do ficcional. Bem argumenta Eneida Maria
de Souza, em seu ensaio A
Crítica Biográfica,
ao analisar as características do gênero,
A
preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de
perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja,
reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem
do cotidiano em ato literário. Ainda que determinada cena recriada
na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, deve-se
distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades
atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi
metaforizada e deslocada pela ficção. (2011, p. 19)
O
Augusto dos Anjos que encontramos no romance biográfico, pelas
lentes do narrador-amigo, é uma personagem que muito lembra a
personalidade que viveu de 1884 a 1914, mas não é um herói de
biografia, não tem sua vida em formato de biografia. Assim a
ausência de pretensão documental torna mais leve e livre a
narrativa, o que aumenta efeito sobre o leitor. Efeito que seria
diverso se fosse o contrário: uma biografia que inserisse trechos
ficcionalizados. Tal procedimento apenas atrairia desconfiança sobre
a totalidade do relato. Assim, a mentira no meio da verdade, só
debilita esta; mas algo de verdade na mentira, fortalece o narrativo.
Referências
ANJOS,
Augusto dos. Eu
e Outras Poesias.
Disponível em
<http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Augusto_dos_Anjos>
Acesso em: 17.11.2014.
BOURDIEU,
Pierre. A
Ilusão Biográfica.
In: Usos
e Abusos da História Oral.
8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
DOSSE,
François. A
biografia, gênero impuro.
In: O
desafio biográfico: escrever uma vida.
São Paulo: USP, 2009.
____________
. Os
biografemas.
In: O
desafio biográfico: escrever uma vida.
São Paulo: USP, 2009.
MIRANDA,
Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
SOUZA,
Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In:
Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002
_____________
. A Crítica Biográfica. In: Janelas Indiscretas. Belo
Horizonte: UFMG, 2011.
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