quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Romance Biográfico cria a personagem Augusto dos Anjos



 

Sobre o Romance A Última Quimera [1995]
de Ana Miranda

Romance Biográfico cria a personagem Augusto dos Anjos

Leonardo Magalhães
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       Augusto dos Anjos (1884-1914) nasceu na província da Paraíba, num engenho em decadência, de onde saiu para Recife, onde estudou Direito. Era um ser profundamente hipocondríaco, e acabou por morrer jovem, aos 30 anos, de pneumonia (e não tuberculose, como acreditam). Somente publicou um livro quando vivo, o hoje aclamado Eu (1912), a transbordar de ceticismo, pessimismo, melancolia e revolta.
 
        A poética de Dos Anjos não se encaixa em rótulos, os estilos de época. Em seus poemas há um formalismo parnasiano, com belos sonetos, cuidadosamente compostos, e há uma temática, até mesmo um vocabulário cientificista, a lembrar o naturalismo. Temos uma exploração sonora e imagética que lembra o simbolismo, com suas sugestões, mas há um exagero de deformações que é expressionista. A 'atmosfera' criada é do decadentismo, enquanto sua verve transgressora é de vanguardista pré-modernista.
 
          Tão difícil quanto situar a poética de Dos Anjos, é compreender a figura do escritor. Filho de latifundiários decadentes, estudioso voraz de filosofias e ciências, emocionalmente introvertido, tímido mas com traços de megalomania. Ele passou por sua época a colher somente incompreensões e injustiças. Estava além de rótulos.
 
           Outras figuras da nossa literatura não servem aos rótulos, nem foram compreendidas quando escreviam. Assim aconteceu com Raul Pompeia (1863-1895), Sousândrade (1832-1902), Pedro Kilkerry (1885-1917) e não foi diferente com Dos Anjos. Pouco sabemos sobre suas vidas, e faltam biógrafos interessados. Necessárias as biografias que apresentem um contexto para os textos.
 
            Afinal, o que é a biografia senão um relato de uma vida? Um gênero entre o factual, o documental, e o artístico, o ficcional. Em sua forma de buscar coerência, narratividade, uma unidade na multifacetada personalidade biografada, a biografia tende ao caricatural, a reduzir a densidade do vivido a um relato.

         Por seu caráter de 'narrar uma vida' a biografia muito se aproxima dos romances, aqueles que abarcam toda uma existência, do berço ao túmulo (from the cradle to grave), com o desenvolvimento dos protagonistas, como são os romances de formação (Bildungsroman), os romances de geração, testemunhos de uma época, muitos ao estilo roman à clef, com os nomes das personalidades ocultadas por pseudônimos, e os romances autobiográficos, declarados assim, ou não, com nomes reais ou fictícios.
 
           Mais do que se aproximar, o gênero biográfico compartilha características de romance, com uma narratividade intrínseca, em seleção e recriação de episódios, a partir de dados e depoimentos, com um ordenamento que não é do factual, mas da produção ficcional. A diferença fundamental é que ao gênero biográfico importam dados extratextuais, se possível cartas, documentos, arquivos, etc, que emprestem referencialidade.
 
         Considerando que toda biografia é romance, como defendem Roland Barthes e François Dosse, um romance que não se assume, com sua pretensa referencialidade, melhor seria ler um romance biográfico, que se assume sua ficcionalidade e oferta ao leitor marcantes fragmentos da vida das personagens, que se baseiam em personalidades. Assim o que são chamados de 'biografemas'.
 
           Para transformar a personalidade em personagem, para preencher as lacunas das referências com biografemas, a autora usa um narrador que tudo sabe da vida do 'poeta do hediondo', pois trata-se de um amigo que compartilhou a infância, visitante assíduo, sujeito familiar, um homem obcecado pelo talento e pela tragédia do outro, como um Dr. Watson obcecado por Sherlock Holmes, na série de Sir Conan Doyle. O narrador recria várias cenas e diálogos a partir de cartas, trechos de poemas, obras lidas, tomos de filosofias, notícias, depoimentos de contemporâneos.
 
             Cenas são recriadas com toques de ficção, pois é abertamente um romance. Ao saber da morte de Augusto dos Anjos, dois amigos do falecido poeta andam pelo centro histórico do Rio de Janeiro e se encontram com o famoso 'Príncipe dos Poetas' Olavo Bilac. Este ao saber da morte, curioso, quer ouvir um poema do falecido, mas ao fim desdenha, “Se quem morreu é o poeta que escreveu estes versos, então não se perdeu grande coisa.” No romance A Última Quimera o narrador (cujo nome jamais sabemos) é quem conversa com Bilac, é quem declama um outro poema, mas ouve o mesmo tom de desprezo. O poeta das cenas funéreas não foi bem recebido em sua época.
 
             A época que é cuidadosamente reconstituída, no melhor estilo do romance histórico, com o fim da Monarquia, e o estabelecimento da República no Brasil, com as revoltas e mudanças culturais, a modernização e as epidemias, a influência francesa e as querelas literárias. É uma época de transição, quando o parnasianismo e o simbolismo deixam o palco para os estilos agrupados no rótulo 'pré-modernismo', entre realismo e decadentismo. Apenas uma década após o lançamento de Eu acontece a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. As vanguardas chegam aos palcos da metrópole.
 
             Baseados em muitos poemas de Dos Anjos, os diálogos se estendem entre ciência e filosofia, em questões existenciais e metafísicas, com o ser humano consciente de sua finitude, de sua degradação, rumo ao nada. São as personagens num drama trágico, entre enfermidades e perdas, num clima de fatalidade que preenche as páginas. Personagens sofrem com doenças, perversões, solidão, misantropia, falta de reconhecimento. Todas giram em torno de Augusto dos Anjos, a personalidade inalcançável, indescritível, uma vez que confunde qualquer perspectiva de rotulação. Aliás, questões discutidas: qual o estilo do autor? A qual escola pertenceria? Como ler sua obra?
 
             Para melhor situar a poética de Dos Anjos, o narrador tece comparações entre os poema do falecido amigo e do reconhecido Bilac, fina-flor do estilo parnasiano, que abomina referências ao corruptível e se perde em olhares para as estrelas. Situa por contraste, sublime / hediondo, ou sentimento /intelecto, ou capital/província. 
 
Fico mudo por alguns instantes. Como explicar a alma de Augusto? Mesmo sua própria alma, a do senhor Bilac, tão mais luminosa, visível, que produz uma poesia voltada para o amor e as estrelas, contém um enigma. Além disso, o senhor Bilac é um homem nascido numa cidade e assim, talvez, jamais possa entender o que é alguém vindo de uma várzea úmida por cujo fundo passa um rio de águas negras, de uma coloração quase tão escura quanto a noite e, como ela, de uma sombra densa, profunda mas, paradoxalmente, repleta de mil matizes; um rio tão misterioso que parece carregar em suas águas a própria morte. (Parte 1, Eu, 8)

e também, adiante,

Há muitas estrelas, miúdas ou grandes, como se o céu comemorasse meu encontro com o poeta do "Ora (direis) ouvir estrelas". Assim como Augusto falava continuamente na morte e seus correlatos, Bilac trata das estrelas, diz que têm olhos dourados, que há entre elas uma escada infinita e cintilante; suas estrelas falam, abrem as pálpebras, o senhor Bilac vive cercado de centenas, milhares, milhões de estrelas, da Via Láctea, de uma nuvem coruscante, da estrela-mulher, da estrela-virgem, perdido no seio de uma estrela. (Parte 1, A luz lasciva do luar, 1)

 
                  É nas cartas e poemas que a autora Ana Miranda encontra embasamentos para as referencialidades que o narrador apresenta. São identificados os indícios biográficos, pequenos 'traços e gestos' que fazem surgir a personagem Augusto dos Anjos materializando na ficção a personalidade fugidia do escritor. Sabemos sobre a morte do filho, a saúde frágil da esposa, as dificuldades financeiras, a morte do pai, os pequenos roubos da ama-de-leite, a presença do tamarindo, a árvore da infância que deixa uma sombra sobre toda a vida.
 
           Como o narrador retrata seu biografado, ou melhor, personagem? Como uma somatória dos olhares alheios sobre a personalidade múltipla, excêntrica, que incomodava por não se encaixar nos padrões esperados.

Talvez o aspecto de Augusto, excessivamente magro e escuro, seu ar de morcego tísico, seu jeito diferente, sua fama de poeta macabro, de comedor de sombras, seus apelidos de Doutor Tristeza e Poeta Raquítico, sua imaterialidade - vivia decididamente em outras esferas - fossem a causa da desconfiança que sofria. (Parte 1, O Morcego Tísico, 12)

           Assim como a imagem do autor que se desenha nos poemas, com múltiplas referências ao estado doentio, à morte e putrefação, à consciência da finitude, como temáticas de uma mente preocupada, excessivamente preocupada com a condição humana, a buscar explicações em livros filosóficos ou religiosos, científicos ou esotéricos. Seu poemas assim retratam, a indicarem alguns biografemas então usados no romance A Última Quimera.

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

[...]
(Psicologia de um Vencido)

           Vejamos a referência ao poema no trecho da ficção, criada a partir de uma tessitura de biografemas,

Pobre Augusto, era profundissimamente hipocondríaco. Sofria tanto com suas crises artríticas. Ele morria de medo de ficar cego, por causa da conjuntivite granulosa que tivera. Dizia sempre que um dia iria deixar de ver. Tudo ia ficar escuro para ele, muito escuro. Às vezes ele caminhava pela casa com os olhos vendados, treinando para o dia em que ficasse cego. (Parte 2, Uma simplicidade campesina, 9)


           Do poema Ricordanza della mia gioventù, o dado factual sobre a cleptomania da ama-de-leite, que roubava moedinhas na casa dos patrões,

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
"- Não, não fora ela -" E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
 
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!


e o episódio assim recriado na ficcionalidade do romance, que também se refere aos poemas O Morcego, Debaixo do Tamarindo e Vozes da Morte ,

Lembrou-se do perfume das rosas que cresciam pelas paredes de tijolos da casa-grande, dos vidros violeta das janelas, das telhas tão velhas que pareciam plantações de fungos. Falou, como sempre, da história da moeda de ouro roubada por sua ama-de-leite, que ainda o oprimia e o fazia ter pesadelos. Dos banhos. Do trem. Dos morcegos. Do tamarindo. Do Misantropo. (Parte 1, A plenitude da existência, 6)


 
            Numa tessitura, ou rede de biografemas “no sentido de Roland Barthes, reconstruídos pelo autor, historiador ou romancista” (Dosse, p. 70), o romance biográfico transmuta uma personalidade realmente existente em um personagem, mais palpável do que uma biografia, onde o ficcional tiraria a credibilidade do referencial. O gênero do romance leva em consideração vida e obra, sem recorrer ao biografismo, isto é, explicar a obra pelo autor, pela vida do escritor. Afinal, do sujeito apenas temos uma imagem fragmentada. Antes importam mais os “traços e gestos da personagem” (Dosse, p. 74) que compõe um panorama mais amplo, a preencher algumas lacunas (como são exemplos os diálogos construídos com trechos de cartas e poemas).
 
         Biografemas e intertextualidade possibilitam uma melhor apresentação da vida e da obra, mais do que uma biografia oficial. O importante é conservar o factual no entrelaçamento do ficcional. Bem argumenta Eneida Maria de Souza, em seu ensaio A Crítica Biográfica, ao analisar as características do gênero,

A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, deve-se distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. (2011, p. 19)

 
           O Augusto dos Anjos que encontramos no romance biográfico, pelas lentes do narrador-amigo, é uma personagem que muito lembra a personalidade que viveu de 1884 a 1914, mas não é um herói de biografia, não tem sua vida em formato de biografia. Assim a ausência de pretensão documental torna mais leve e livre a narrativa, o que aumenta efeito sobre o leitor. Efeito que seria diverso se fosse o contrário: uma biografia que inserisse trechos ficcionalizados. Tal procedimento apenas atrairia desconfiança sobre a totalidade do relato. Assim, a mentira no meio da verdade, só debilita esta; mas algo de verdade na mentira, fortalece o narrativo.










Referências



ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Disponível em <http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Augusto_dos_Anjos> Acesso em: 17.11.2014.

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: Usos e Abusos da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

DOSSE, François. A biografia, gênero impuro. In: O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: USP, 2009.

____________ . Os biografemas. In: O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: USP, 2009.

MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002

_____________ . A Crítica Biográfica. In: Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: UFMG, 2011.



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