quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Poética da Animalidade nos poemas de Manoel de Barros








 










Poética da Animalidade nos poemas de Manoel de Barros




Leonardo Magalhaes


Fale – UFMG

 
      Ao abordar o mundo animal, o irracional, o poeta é levado a abandonar a racionalidade, que o distingue, de modo a se aproximar dos pequenos e inabordáveis, as formigas e as lesmas, os lagartos e os sapos, que estão ao redor do sujeito poético, em plena natureza, não num aquário ou jardim zoológico.

       Ora o animal se humaniza, ou as coisas se animalizam, em comportamentos só percebidos e comunicados pelo poeta – como um exemplo da 'poética da animalidade', segundo o pensador G. Bataille – não apenas alegoria ou fábula, ou personificação. Trata-se de um fenômeno de 'salto poético', 
 

O melhor, a maneira correta de falar dele só pode ser abertamente poética, já que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível. Na medida em que podemos falar ficticiamente do passado como de um presente, falamos no fim de animais pré-históricos, assim como de plantas, de rochas e de águas, como de coisas, mas descrever uma paisagem ligada a essas condições é uma tolice, a menos que seja um salto poético.” (1993, p. 12)


 
       Os animais não são catalogados, ou explicados, antes imersos no habitat, no meio ambiente onde vivem e se reproduzem, ali onde o ser humano, poeta ou não, zoólogo ou não, é o intruso, o estranho. Não é o animal transportado ao mundo humano, ou domesticado, a ser exibido em jardim zoológico ou em condição de animal de estimação. O animal está na natureza e se confunde com ela, em relações de identificação e continuidade.

Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco.
[…]
Borboletas translúcidas quedam estancadas no tronco
das árvores -
Se enxergam por perto os curimpãpãs.



       Tendo o animal em sua animalidade, sem um olhar biológico, somente a poesia, com a 'poética da animalidade', poderia apresentar um painel ao leitor, ser de racionalidade. Para adentrar a animalidade o poeta se permite contemplar o irracional a ponto de deixar a linguagem 'contaminada' pela não-razão. É possível ao poeta tal desprendimento do racional ao apresentar sua criação, uma vez que ele se aproxima do animal, e não o contrário. Não aceitando o animal, com condescendência, mas olhando-o de perto. Bem de perto, a ponto de ver o mundo com olhar de animal, 
 

Por viver muitos anos dentro do mato

moda ave

O menino pegou um olhar de pássaro -

Contraiu visão fontana.

Por forma que ele enxergava as coisas

por igual

como os pássaros enxergam.


       Enquanto o olhar científico cataloga e sistematiza, o poeta tem cuidado em não explicar, pois não visa compreensão, antes descrição, apresentação, em acesso aos animais in natura, agindo espontaneamente nos habitats, longe das padronizações do comportamento humano. Para que explicar o que está fora do racional ? É preciso aceitar que há a não-razão. O que não significa desvalorizar a razão, que faz a distinção humana.

       É no equilíbrio razão-irrazão que se vislumbra a solução para o distanciamento animal racional – animal irracional. Ao humano não é possível abandonar sua visão antropocêntrica – uma vez que o racional é condição básica para o status humano – que pensa, em autoconsciência, que lembra passado e planeja o futuro. Enquanto isso, segundo Bataille, os animais vivem na imanência, isto é, sem ideia de tempo, sem memória e sem expectativas. É preciso negar a imanência para se tornar humano, ao se socializar, enquanto ser de cultura.

         Para abandonar momentaneamente sua razão, o poeta se identifica com a figura da criança, aberta aos devaneios e imagens surreais, como o menino que observa os animais ao seu redor, em tantas visões que fogem ao raciocínio lógico,

Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
[…]
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.


        Para ver os animais, o menino (e o poeta) se esquece, faz de si um ser sem razão, para adentrar o mundo natural. Ele precisa esquecer a linguagem ao adentrar um mundo onde as palavras, arbitrárias, demasiado humanas, não têm sentido. Então acontece o mesmo com a poética, assim cheia de transtornos da linguagem, a causar estranhamento para um pensamento racional. “Depois a palavra teve piedade / E esfregou a lesma dela em mim.” (2006, p. 69)

        Uma poética que se aproxima tanto dos animais, os não-humanos, não pode idealizar, não pode ser arbitrária, não pode teorizar, ainda que, ao mostrar o 'desgoverno' da linguagem, se evidencie muito de metalinguagem. Mas o principal não é o metapoema, é a confissão do estranhamento, o não conseguir falar racionalmente após adentrar o mundo da imanência, da não-linguagem. Em suma, ao voltar à natureza, de onde o humano se distanciou.






REFERÊNCIAS






BARROS, Manoel de. O Livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.


_____________ . Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.


BATAILLE, Georges. A Animalidade. Teoria da Religião. São Paulo: Ática, 1993.


LESTEL, Dominique. As origens animais da cultura. Trad. Maria João Reis. Lisboa: Piaget, 2002.


NUNES, Benedito. O animal e o primitivo: os Outros de nossa cultura. In: Pensar/escrever o animal. Maria Esther Maciel [org]. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.



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