segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Obsessões e Imagens Surrealistas na Poética Visceral de Miguel Nava



 






Sobre a poética de Luís Miguel Nava


in O Céu sob as Entranhas





Obsessões e Imagens Surrealistas na Poética Visceral de Nava




Leonardo Magalhães
Fale – UFMG


      A riqueza da poética do português Luís Miguel Nava está nos excessos. Há um excesso de vísceras e entranhas, embrulhadas em obsessões. Imagens excessivas que desafiam nossa lógica insuficiente. Uma necessidade de desabafar obsessões em repetidas imagens ao estilo surrealista, isto é, carregadas de nonsense, junção de opostos, cortes e sobreposições, em sinestesias sugeridas por metáforas exageradas.

      Algo de um simbolismo não-discursivo, onde fala de uma coisa se referindo a outra (roupa e pele, estacas e ossos, p.ex.), em um expressionismo de imagens deformadas por desejos repetidos, delírios que buscam corporificações, em ossos que são estacas, em águas que arrebatam avassaladoras, onde os sentimentos se atropelam, das trevas para a luz, órgãos expostos, em entranhas que se exibem.

      Em presenças obsessivas surgem pele e ossos, vísceras em sangue, tecidos esticados, corpos recortados, como nas poéticas expressionistas dissecadoras de um Gottfried Benn, ou de um Augusto dos Anjos. O corpo sem alma, como uma carne tão nossa e mesmo tão estranha, um familiar que é desconhecido, em tom de pesadelo que não finda, mas migra de poema em poema, numa gradação obsessiva. Os nervos expõe a tormenta interior, a hemorragia é o transbordar de um mar interno, quando o poeta ousa mergulhar em si-mesmo, a adentrar os poros.

       Pois a “nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua” quando o poeta se assusta com a possibilidade de “ver na rua um osso ou um órgão meu” em seu longo poema em prosa “A Cor dos Ossos” numa verdadeira dissertação lírica sobre a estranheza que é ter a consciência de um corpo. Pois a consciência nasce justamente desta percepção, uma vez que segundo o filósofo Espinosa (1632-1677), sem transcendências, a alma é a ideia que o corpo tem sobre si-mesmo.

      O corpo que é liricamente dissecado em imagens fortes, surrealistas, tais como ossos que são estacas fincadas no deserto,

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
                         (Estacas)

 
tais são os ossos ocultados sob a pele, uma roupa que nos reveste, estendida sobre nosso corpo estranho que é e não é a nossa identidade. Somos um corpo ou estamos numa corpo? Alma e corpo são aspectos da mesma coisa? Ou há mesmo um dualismo mente X corpo, ou espírito X carne, como professam as religiões espiritualistas? Afinal, trata-se de um sujeito lírico que sonda as “profundidades da alma” encarcerado num corpo de sombras e memórias.

os ossos se poderem refugiar, em certos casos, na memória, como se esta os absorvesse e quem por eles fosse constituído então se invertebrasse ou reduzisse a um mero filamento onde assentasse a carapaça da memória, no interior da qual o corpo inteiro se engolfasse até completamente se sumir. (A Cor dos Ossos)

       A alma é uma percepção e o corpo é uma densidade, materialização de sentimentos, que são enraizados, profundamente, então dissecados, obsessivamente, sem respostas, apenas mais desassossego, como se fossem as “cordas do nosso espírito esticadas num terraço” (Paisagem Citadina), quando as entranhas são o campo de batalha de trevas e luz, águas e lembranças, sendo que real e simbólico se mesclam em obsessões.

      Mesmo a escrita é problematizada, vista como inviável, como deformada, nunca desfazendo as trevas internas, nunca realmente mergulhando em busca de luz. Que luz? “A luz que desse sangue irradiava” ou “a luz que das vísceras emana” (Matadouro) em colagem de opostos, pois as entranhas são o local da escuridão, do desconhecido, do inenarrável.

      Nos poemas em prosa Insónia e Os Ossos temos as tentativas de poemas com narrativas, onde sujeitos se deparam com forças insondáveis, a presença do corpo que abriga consciência, que é habitado por pesadelos de dissecação, de desmembramento, como se submetido a uma pressão de dissociação, quando o corpo sem a alma é mera carne a ser pendurada, retalhada, exposta.

[…] esses ruídos lhe chegarem como vindos de dentro de si próprio,
de dentro desse coração a que os sentidos pareciam encostar-se, e, mediante uma identificação entre o espaço e o tempo a que a escuridão também era propícia, se lhe apresentarem como provenientes duma época remota, tão distante do presente como da sua cama o inimaginável troço de estrada ou de linha férrea donde a espaços irrompiam. (Insónia)

 
     Afinal, não temos controle sobre o corpo, nem vivos nem mortos. As vísceras funcionam involuntariamente, seus movimentos peristálticos constantes sem a nossa consciência. E ainda mais quando o corpo é cadáver. Não é mais um eu, uma alma, ou consciência, mas é uma coisa (quando o Eu também se coisifica), a ser examinada e sepultada. Não temos domínio sobre o nosso corpo após a more, que destinação terá, se um laboratório, ou um túmulo, ou forno crematório.

       O corpo, presente em toda a poética de Nava, é uma materialização e uma densidade, um cárcere e um objeto de desejo, e uma profunda obsessão ao ponto de alucinação, com suas metáforas exageradas, como bem aponta o autor Moisés David Sousa Gomes Ferreira, em seu artigo Luís Miguel Nava e o espaço do corpo em O Céu Sob as Estranhas, de 2009,

As descida que se opera ao universo visceral será um passo recorrentemente dado no caminho que a poesia de Luís Miguel Nava percorre, caminho de procura e sondagem de um conhecimento essencial em que, pela via de um peculiar, profuso e explosivo trabalho metafórico, se diluem as fronteiras entre sentidos/razão, sensível/abstracto, sensorial/espiritual. […] Este processo [trabalho metafórico] caracteriza-se pelo estabelecimento de uma relação de proximidade entre universos semânticos aparentemente afastados, originando efeitos por vezes desconcertantes.” (2009, p. 3)


      Em alucinações na obsessiva ruminação de ter um corpo ou ser um corpo, o sujeito busca símbolos para expressar seu desassossego, em repetições que levam ao mesmo ponto de partida, com sua duplicidade, matéria-consciência, sua descoberta/ocultação, sua razão insuficiente, com os opostos em tensionamento até às imagens surrealistas. Assim a pele é uma bandeira hasteada, ou uma partitura para os ossos, e ossos que são estacas cravadas, enquanto o espírito tem cordas esticadas, e a carne atrai as estrelas, e os órgãos podem ser expostos na rua, há uma luz que vaza das vísceras.

      Obsessivamente, o sujeito que é corpo, e divaga sobre o corpo, adentra o universo da linguagem como única forma de exteriorizar o abismo de suas entranhas. Ele disseca a si mesmo nas páginas, em escrita árida, difícil, ansiosa, turbulenta, desconcertante. Por isso voltar-se tanto para o trabalho com a linguagem, a labuta, em tanta metapoética. O sujeito-poeta tem algo urgente a dizer, mas é quase inviável. Muitas vezes não é possível entender. Mas a poesia sincera, a real poesia, é capaz de comover antes mesmo de ser compreendida. Em matéria de poesia visceral é mais questão de sentir do que de raciocinar.




Referências


FERREIRA, Moisés David Sousa Gomes. Luís Miguel Nava e o espaço do corpo em O Céu Sob as Estranhas. Artigo. 2009.

NAVA, Luís Miguel. Poesia Completa (1979-1994). Lisboa: D. Quixote, 2002.

SOUSA, Carlos Mendes de. A coração das vísceras. Representações do Avesso na poesia de Luís Miguel Nava. Universidade do Minho. Artigo.



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