segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Construção poética e Metalinguagem em O Engenheiro - João Cabral








Construção poética e Metalinguagem em O Engenheiro [1945]
de João Cabral de Melo Neto


Leonardo de Magalhaens



Fale/UFMG


     Por muitos críticos incluído na chamada Geração de 45, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto [1920-1999] é sempre lembrado pelo rigor formal e pela metalinguagem, pela presença estilística e pela influência sobre os novos poetas, inclusive os concretistas, da década seguinte. Mais conhecido pelo poema-peça-teatral Morte e Vida Severina, Melo Neto é reverenciado, antes, por aqueles que apreciam o rigor formal, não exatamente um discurso engajado sobre a miséria do Nordeste.

     Melo Neto se destaca na condição do poeta que explica o poema em metapoemas, numa consideração-explicação do ato de escrita. Mas não é um autor diante de um leitor, mas o poeta consigo mesmo. Pois é esperado poeta diante do leitor? que leitor? É possível que o leitor entenda? Não, não é esperado do leitor. É o poeta às voltas com sua tarefa, de reduzir o mundo à linguagem poética. Afinal, não se pode dizer tudo, então se diga o necessário. Trata-se de uma poesia concentrada (no sentido alemão de dichten, condensar; daí Dichtung, e Gedicht), no sentido de uma poesia que adere ao rigor e ao formalismo, evitando o relaxamento e o espontaneísmo

     João Cabral em “Inspiração e o trabalho de arte”, em sua Obra completa, fala sobre a construção do poema ou sobre o espontaneísmo, a diferença entre o elaborado e o inspirado. Poemas presos a forma ou dispostos ao discurso. Poemas em si mesmos ou poemas para dizer algo. Poetas cheios de regras e poetas sem regras, e ainda poetas que transgridem as próprias regras. Onde o autêntico, onde o expressivo, onde o formalista. Para o poeta a 'composição literária' oscila entre a inspiração e o trabalho, entre o espontâneo e o elaborado. É preciso esforço e suor para extrair poesia das coisas, caso contrário haverá poemas 'mal construídos', com estrutura pouco 'orgânica'.

     Cada autor tem sua produção a partir de uma alquimia pessoal, o talento, o estilo, a linguagem. Por sua vez, Cabral tem a engenhosidade e a metalinguagem, onde o racional é ressaltado sobre o emocional. Para ele o poeta precisa se dedicar ao 'exercício formal', aos 'aspectos artísticos'; mas assim, como não há regra universal na modernidade, assim também não há um estilo que marque uma geração. Existem tantas estéticas quanto poetas. A pluralidade de estilos refletem as multiplicidades de talentos – desde o mais formal ao mais emocional. Assim a pluralidade de espontâneos e formalistas.

     Mas quanto a poética de Cabral a construção se ressalta enquanto processo, segundo a visão do poeta, crítico e transcriador Haroldo de Campos, em seu ensaio de 1992 “O Geômetra Engajado”, pois “Trata-se de uma empresa de desmistificação do poema, que é sacado de sua aura de mistério e de inefável, e mostrado como é, objeto humano, escrito 'a tinta e a lápis', fabricado na 'máquina útil' do poeta.” (1999:81). Onde Haroldo de Campos percebe uma 'volta deliberada à lógica' do construir, ao tratar-se da

instauração, na poesia brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva, contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista. Os poemas de O Engenheiro são como que feitos a régua e a esquadro, riscados e calculados no papel, e sua semântica funda coincidentemente um âmbito plástico de referências. (1999:80-81)

     Projeto e produção focalizada no formal e na procura do estilo que é lembrada pelo crítico João Alexandre Barbosa em sua obra A Metáfora Crítica, onde “o que se procura fisgar é o relacionamento interno entre a função poética desempenhada pela linguagem e o questionamento implícito de seus valores como tática de construção textual.” (1974:139) pois há uma mensagem entrelaçada com a forma, voltando-se sobre a mensagem, numa auto-justificação, de forma que

Fazendo das relações entre linguagem e metalinguagem o módulo sobre o qual assenta o seu horizonte de criatividade, o texto de João Cabral põe o problema de uma poética da denotação, incluindo a experiência num sistema referencial e auto-reflexivo incessante. A sua 'leitura' da realidade parece ser crítica na medida em que submete os termos através dos quais ela se realiza a um permanente discurso de indagação acerca de seus relacionamentos. (1974:139)


      Muitos poemas na obra O Engenheiro são da categoria dos metapoemas, onde claramente o poeta volta o olhar sobre o processo de construção poética. Assim o próprio poema “O Engenheiro”,

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.


     Há toda uma necessidade de medir, de fazer caber num esquadro, como um esforço para dar ordem a uma folha vazia, em branco, sem nada dizer, e que desafia o poeta a preencher com boa forma, a ser moldado pela presença arquitetada do poema,

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

(O poema)

     O que pretende o poeta além de uma Lição de Poesia ? De um modo de articular palavras, para do fugir do adjetivo para o substantivo, como uma busca do mundo substantivo (ver Murilo Mendes) mais claro e menos subjetivo (ainda que subjetiva seja a escolha das palavras), mas não isento de esforço, de luta, na qual o poeta se suja de tinta e carvão, em sua elaboração sistemática,

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.


     Sobre este labor do poeta com a poesia, uma “luta branca sobre o papel”, se pronuncia Peixoto (1983), sobre o desejo de controle sobre a matéria escrita,

Só na terceira seção de 'A lição da poesia', quando o poeta consegue separar as palavras das suas origens psíquicas, é que elas se transformam para ele em entidades funcionais, ao invés de 'fantasmas de palavras'. A substância psicológica das palavras é reduzida ao mínimo, na medida em que o poeta passa a controlá-las e selecioná-las conscientemente. (1983:41)

 
    É possível comparar com o poema “O Lutador” de Carlos Drummond de Andrade, onde a “Luta com as palavras é a luta mais vã”, onde o poeta, em sua labuta poética, está limitado pela semântica e pela sintaxe, sempre cerceado pela volatilidade e pela opacidade dos verbetes. E realmente Drummond é referencial para Cabral quanto ao processo de concepção poética, vide o poema “A Carlos Drummond de Andrade”,


Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.


     O esforço com as palavras – a elaboração contra o dom da espontaneidade inspirada pelos deuses – é um ponto nevrálgico na poética de Cabral, em sua “procura da ordem” (verso de “Pequena Ode Mineral”), como bem percebe Peixoto ao relacionar a visão do poeta com seu 'processo de composição', com seu apuramento técnico, simetria e engenhosidade verbal, enquanto construção, contra o espontaneísmo,

Cabral propõe uma visão das palavras como coisas, a serem manipuladas e combinadas, o que permanecerá um ponto vital de sua poética. O problema de transmutação das emoções interiores em poesia é solucionado pela retirada das palavras do mundo pessoal do poeta. A palavra se despersonaliza e o poeta a percebe como um objeto exterior submetido ao seu controle racional. (1983:42)


     Não sendo fruto subjetivo, mas elaborado objetivamente, o poema é visto enquanto 'máquina útil', imagem que é configurada por seus aspectos de funcionalidade, visto que a partir do poeta francês Paul Valéry, para o qual o poema é uma 'espécie de máquina' que funciona a partir de uma 'disposição poética', segundo relembra Peixoto (1983:42). mas uma estruturação que não explicita o eu (sujeito) lírico. Afinal, que 'voz narrativa' há em O Engenheiro? Há mesmo um eu-lírico? Quem expressa uma cosmovisão ou sentimentos? É o autor quem fala sem intermediários? Que 'drama interior' está aqui problematizado ou racionalizado? Um elogio exaltado da 'proporção' e da 'objetividade'?

     Mas o que se ressalta mesmo é o plano estrutural. Uma seleção de palavras em arquitetura funcional. Enquanto os adjetivos abstratos levam ao plano sensorial, ou metafísico, para Cabral a preferência pelos adjetivos concretos que demonstram sensorialidade, contato, um estar-entre-coisas, numa busca de concretude e materialidade. Para montar o poema é necessária uma seleção precisa, assim na concisão e escolha de palavras, podemos comparar “A lição de poesia”, de 1945, com “Catar feijão”, de 1965,


E as vinte palavras escolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

e vinte anos depois

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.


     Numa clara seleção e depuração de verbetes, no manuseio das palavras configura-se a 'mecânica da criação', de onde surge poema enquanto produto de uma atividade, uma elaboração, com clareza e simplicidade, não discursividade, pois Cabral pretende com um vocabulário mínimo causar um efeito de significação máxima. Este voltar-se ao poema, tematizando o fazer poético, é ressaltado pelo crítico Antonio Carlos Secchin quando aponta o caráter metalinguístico dos poemas de O Engenheiro numa 'nova ordem' , além dos elementos que são 'geometrizados', “A segunda vertente abarca a maioria dos textos metalinguísticos do livro: 'A bailarina', 'O engenheiro', 'O funcionário', 'O poema', 'A lição de poesia', 'A mesa', 'As estações', 'A Paul Valéry'.” (1999:38)


     Evidenciam-se as dicotomias, os dilemas entre o subjetivo e o objetivo, entre o sonho e a ordenação, entre o inconsciente a clareza, em suma, entre a emoção e a razão. Segue o poeta primando pela não-emoção, com seu “carvão da emoção extinta”. Pois além de objetividade e funcionalidade, engenharia e arquitetura para o poeta significa clareza, segundo argumenta Peixoto, “Numa entrevista de 1972, Cabral faz o seguinte comentário: 'Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência de Le Corbusier. Durante muito tempo significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em suma: o predomínio da inteligência sobre o instinto.'” (1983:48)

     Assim se destaca a arte poética de João Cabral de Melo Neto, com sua maneira 'funcional' de criar o belo, com ordenação e proporção, sem aqueles rebuscamentos barrocos, sem neoparnasianismos, mas sempre centrado no poema não um ser subjetivo, não uma voz, mas um texto arduamente trabalhado, elaborado. Explica-se assim o apuro pela metalinguagem e esta pela consciência da construção, objeto de dedicação do poeta-engenheiro.







Referências


BARBOSA, João Alexandre. A Metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e Outras metas. Ensaios de Teoria e Crítica Literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.

COSTA LIMA, Luiz. Lira e antilira. Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MELO NETO, João Cabral. O Engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945.

____________ . Poesia completa e prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

PEIXOTO, Marta. Poesia com Coisas. Uma Leitura de João Cabral de Melo Neto.. São Paulo: Perspectiva, 1983.

SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: A Poesia do menos e outros ensaios cabralinos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, Fundação Biblioteca Nacional, 1999




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