Construção
poética e Metalinguagem em O Engenheiro [1945]
de
João Cabral de Melo Neto
Leonardo
de Magalhaens
Fale/UFMG
Por muitos críticos
incluído na chamada Geração de 45, o poeta pernambucano
João Cabral de Melo Neto [1920-1999] é sempre lembrado pelo rigor
formal e pela metalinguagem, pela presença estilística e pela
influência sobre os novos poetas, inclusive os concretistas, da
década seguinte. Mais conhecido pelo poema-peça-teatral Morte e
Vida Severina, Melo Neto é reverenciado, antes, por aqueles que
apreciam o rigor formal, não exatamente um discurso engajado sobre a
miséria do Nordeste.
Melo Neto se destaca na
condição do poeta que explica o poema em metapoemas, numa
consideração-explicação do ato de escrita. Mas não é um autor
diante de um leitor, mas o poeta consigo mesmo. Pois é esperado
poeta diante do leitor? que leitor? É possível que o leitor
entenda? Não, não é esperado do leitor. É o poeta às voltas com
sua tarefa, de reduzir o mundo à linguagem poética. Afinal, não se
pode dizer tudo, então se diga o necessário. Trata-se de uma poesia
concentrada (no sentido alemão de dichten, condensar; daí
Dichtung, e
Gedicht), no sentido de uma poesia que adere ao rigor e ao
formalismo, evitando o relaxamento e o espontaneísmo
João Cabral em
“Inspiração e o trabalho de arte”, em sua Obra completa,
fala sobre a construção do poema ou sobre o espontaneísmo, a
diferença entre o elaborado e o inspirado. Poemas presos a forma ou
dispostos ao discurso. Poemas em si mesmos ou poemas para dizer algo.
Poetas cheios de regras e poetas sem regras, e ainda poetas que
transgridem as próprias regras. Onde o autêntico, onde o
expressivo, onde o formalista. Para o poeta a 'composição
literária' oscila entre a inspiração e o trabalho, entre o
espontâneo e o elaborado. É preciso esforço e suor para extrair
poesia das coisas, caso contrário haverá poemas 'mal construídos',
com estrutura pouco 'orgânica'.
Cada autor tem sua
produção a partir de uma alquimia pessoal, o talento, o estilo, a
linguagem. Por sua vez, Cabral tem a engenhosidade e a metalinguagem,
onde o racional é ressaltado sobre o emocional. Para ele o poeta
precisa se dedicar ao 'exercício formal', aos 'aspectos artísticos';
mas assim, como não há regra universal na modernidade, assim também
não há um estilo que marque uma geração. Existem tantas estéticas
quanto poetas. A pluralidade de estilos refletem as multiplicidades
de talentos – desde o mais formal ao mais emocional. Assim a
pluralidade de espontâneos e formalistas.
Mas quanto a poética de
Cabral a construção se ressalta enquanto processo, segundo a visão
do poeta, crítico e transcriador Haroldo de Campos, em seu ensaio de
1992 “O Geômetra Engajado”, pois “Trata-se de uma
empresa de desmistificação do poema, que é sacado de sua aura de
mistério e de inefável, e mostrado como é, objeto humano, escrito
'a tinta e a lápis', fabricado na 'máquina útil' do poeta.”
(1999:81). Onde Haroldo de Campos percebe uma 'volta deliberada à
lógica' do construir, ao tratar-se da
instauração, na poesia
brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva,
contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista. Os
poemas de O Engenheiro são como que feitos a régua e a
esquadro, riscados e calculados no papel, e sua semântica funda
coincidentemente um âmbito plástico de referências. (1999:80-81)
Projeto e produção
focalizada no formal e na procura do estilo que é lembrada pelo
crítico João Alexandre Barbosa em sua obra A Metáfora Crítica,
onde “o que se procura fisgar é o relacionamento interno entre a
função poética desempenhada pela linguagem e o questionamento
implícito de seus valores como tática de construção textual.”
(1974:139) pois há uma mensagem entrelaçada com a forma,
voltando-se sobre a mensagem, numa auto-justificação, de forma que
Fazendo das relações
entre linguagem e metalinguagem o módulo sobre o qual assenta o seu
horizonte de criatividade, o texto de João Cabral põe o problema de
uma poética da denotação, incluindo a experiência num sistema
referencial e auto-reflexivo incessante. A sua 'leitura' da realidade
parece ser crítica na medida em que submete os termos através dos
quais ela se realiza a um permanente discurso de indagação acerca
de seus relacionamentos. (1974:139)
Muitos poemas na obra O
Engenheiro são da categoria dos metapoemas, onde claramente o
poeta volta o olhar sobre o processo de construção poética. Assim
o próprio poema “O Engenheiro”,
O
lápis, o esquadro, o papel;
o
desenho, o projeto, o número:
o
engenheiro pensa o mundo justo,
mundo
que nenhum véu encobre.
Há toda uma necessidade de medir, de
fazer caber num esquadro, como um esforço para dar ordem a uma folha
vazia, em branco, sem nada dizer, e que desafia o poeta a preencher
com boa forma, a ser moldado pela presença arquitetada do poema,
Mas
é no papel,
no
branco asséptico,
que
o verso rebenta.
Como
um ser vivo
pode
brotar
de
um chão mineral?
(O
poema)
O que pretende o poeta além de uma
Lição de Poesia ? De um modo de articular palavras, para do
fugir do adjetivo para o substantivo, como uma busca do mundo
substantivo (ver Murilo Mendes) mais claro e menos subjetivo (ainda
que subjetiva seja a escolha das palavras), mas não isento de
esforço, de luta, na qual o poeta se suja de tinta e carvão, em sua
elaboração sistemática,
A
noite inteira o poeta
em
sua mesa, tentando
salvar
da morte os monstros
germinados
em seu tinteiro.
Monstros,
bichos, fantasmas
de
palavras, circulando,
urinando
sobre o papel,
sujando-o
com seu carvão.
Sobre este labor do
poeta com a poesia, uma “luta branca sobre o papel”, se
pronuncia Peixoto (1983), sobre o desejo de controle sobre a matéria
escrita,
Só na terceira seção
de 'A lição da poesia', quando o poeta consegue separar as palavras
das suas origens psíquicas, é que elas se transformam para ele em
entidades funcionais, ao invés de 'fantasmas de palavras'. A
substância psicológica das palavras é reduzida ao mínimo, na
medida em que o poeta passa a controlá-las e selecioná-las
conscientemente. (1983:41)
É possível comparar
com o poema “O Lutador” de Carlos Drummond de Andrade, onde a
“Luta com as palavras é a luta mais vã”, onde o poeta, em sua
labuta poética, está limitado pela semântica e pela sintaxe,
sempre cerceado pela volatilidade e pela opacidade dos verbetes. E
realmente Drummond é referencial para Cabral quanto ao processo de
concepção poética, vide o poema “A
Carlos Drummond de Andrade”,
Não
há guarda-chuva
contra
o poema
subindo
de regiões onde tudo é surpresa
como
uma flor mesmo num canteiro.
O esforço com as
palavras – a elaboração contra o dom da espontaneidade inspirada
pelos deuses – é um ponto nevrálgico na poética de Cabral, em
sua “procura da ordem” (verso de “Pequena Ode Mineral”), como
bem percebe Peixoto ao relacionar a visão do poeta com seu 'processo
de composição', com seu apuramento técnico, simetria e
engenhosidade verbal, enquanto construção, contra o espontaneísmo,
Cabral propõe uma visão
das palavras como coisas, a serem manipuladas e combinadas, o que
permanecerá um ponto vital de sua poética. O problema de
transmutação das emoções interiores em poesia é solucionado pela
retirada das palavras do mundo pessoal do poeta. A palavra se
despersonaliza e o poeta a percebe como um objeto exterior submetido
ao seu controle racional. (1983:42)
Não sendo fruto
subjetivo, mas elaborado objetivamente, o poema é visto enquanto
'máquina útil', imagem que é configurada por seus aspectos de
funcionalidade, visto que a partir do poeta francês Paul Valéry,
para o qual o poema é uma 'espécie de máquina' que funciona a
partir de uma 'disposição poética', segundo relembra Peixoto
(1983:42). mas uma estruturação que não explicita o eu (sujeito)
lírico. Afinal, que 'voz narrativa' há em O Engenheiro? Há
mesmo um eu-lírico? Quem expressa uma cosmovisão ou sentimentos? É
o autor quem fala sem intermediários? Que 'drama interior' está
aqui problematizado ou racionalizado? Um elogio exaltado da
'proporção' e da 'objetividade'?
Mas o que se ressalta
mesmo é o plano estrutural. Uma seleção de palavras em arquitetura
funcional. Enquanto os adjetivos abstratos levam ao plano sensorial,
ou metafísico, para Cabral a preferência pelos adjetivos concretos
que demonstram sensorialidade, contato, um estar-entre-coisas, numa
busca de concretude e materialidade. Para montar o poema é
necessária uma seleção precisa, assim na concisão e escolha de
palavras, podemos comparar “A lição de poesia”, de 1945, com
“Catar feijão”, de 1965,
E
as vinte palavras escolhidas
nas
águas salgadas do poeta
e
de que se servirá o poeta
em
sua máquina útil.
e
vinte anos depois
Catar
feijão se limita com escrever:
jogam-se
os grãos na água do alguidar
e
as palavras na da folha de papel;
e
depois, joga-se fora o que boiar.
Numa clara seleção e
depuração de verbetes, no manuseio das palavras configura-se a
'mecânica da criação', de onde surge poema enquanto produto
de uma atividade, uma elaboração, com clareza e simplicidade, não
discursividade, pois Cabral pretende com um vocabulário mínimo
causar um efeito de significação máxima. Este voltar-se ao poema,
tematizando o fazer poético, é ressaltado pelo crítico Antonio
Carlos Secchin quando aponta o caráter metalinguístico dos poemas
de O Engenheiro numa 'nova ordem' , além dos elementos que
são 'geometrizados', “A segunda vertente abarca a maioria dos
textos metalinguísticos do livro: 'A bailarina', 'O engenheiro', 'O
funcionário', 'O poema', 'A lição de poesia', 'A mesa', 'As
estações', 'A Paul Valéry'.” (1999:38)
Evidenciam-se as
dicotomias, os dilemas entre o subjetivo e o objetivo, entre o sonho
e a ordenação, entre o inconsciente a clareza, em suma, entre a
emoção e a razão. Segue o poeta primando pela não-emoção, com
seu “carvão da emoção extinta”. Pois além de
objetividade e funcionalidade, engenharia e arquitetura para o poeta
significa clareza, segundo argumenta Peixoto, “Numa entrevista de
1972, Cabral faz o seguinte comentário: 'Nenhum poeta, nenhum
crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência de Le
Corbusier. Durante muito tempo significou para mim lucidez,
claridade, construtivismo. Em suma: o predomínio da inteligência
sobre o instinto.'” (1983:48)
Assim se destaca a arte
poética de João Cabral de Melo Neto, com sua maneira 'funcional' de
criar o belo, com ordenação e proporção, sem aqueles
rebuscamentos barrocos, sem neoparnasianismos, mas sempre centrado no
poema não um ser subjetivo, não uma voz, mas um texto arduamente
trabalhado, elaborado. Explica-se assim o apuro pela metalinguagem e
esta pela consciência da construção, objeto de dedicação do
poeta-engenheiro.
Referências
BARBOSA,
João Alexandre. A Metáfora crítica. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
CAMPOS,
Haroldo de. Metalinguagem e Outras metas. Ensaios de Teoria e
Crítica Literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.
COSTA
LIMA, Luiz. Lira e antilira. Mário, Drummond, Cabral. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MELO
NETO, João Cabral. O Engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da
Poesia, 1945.
____________
. Poesia completa e prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2008.
PEIXOTO,
Marta. Poesia com Coisas. Uma Leitura de João Cabral de Melo
Neto.. São Paulo: Perspectiva, 1983.
SECCHIN,
Antonio Carlos. João Cabral: A Poesia do menos e outros ensaios
cabralinos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, Fundação
Biblioteca Nacional, 1999
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