CLARICE
LISPECTOR
1925
– 1977
crônicas
/ 1967- 1976
Ainda
sem resposta
Não
sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo.
Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem
para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não
conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não
puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário
tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber
escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O
que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que
seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.
Jornal
do Brasil / junho / 1968
…
Como é que se
escreve?
Quando
não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se
não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu
escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se
escreve?
Por
que, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como
dizer? e como é que se começa? e que é que se faz com o papel em
branco nos defrontando tranquilo?
Sei
que a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a
pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a
que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo,
não sei absolutamente escrever. Será que escrever não é um
ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei
escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve.
Jornal
do Brasil / novembro / 1968
…
A máquina está
crescendo
O
homem foi programado por Deus para resolver problemas. Mas começou a
criá-los em vez de resolvê-los. A máquina foi programada pelo
homem para resolver os problemas que ele criou. Mas ela, a máquina,
está começando também a criar problemas que desorientam e engolem
o homem. A máquina continua crescendo. Está enorme. A ponto de que
talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como
perfeição de ser
criado,
só existirá a máquina. Deus
criou um problema para si próprio. Ele terminará destruindo a
máquina e recomeçando pela ignorância do homem diante da maçã.
Ou o homem será um triste antepassado da máquina; melhor o mistério
do Paraíso.
Jornal
do Brasil /
março / 1970
…
Você é um número
Se
você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a
partir do instante em que você nasce classificam-no com um número.
Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é
um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente
falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com
número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é
identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número
de apartamento - tudo é número.
Se
é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem
propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é
imortal da Academia Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É
por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso
saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou
mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre
cálculo integral.
Se
você é comerciante, seu alvará de localização o classifica
também.
Se
é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é
solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou
de negócio recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um
número. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma
companhia. E claro que você é um número no recenseamento. Se é
católico recebe número de batismo. No registro civil ou religioso
você é numerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a
gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito
também.
Nós
não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai
ver meu protesto também é número.
Uma
amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher
estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E
recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto pelo
médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até
o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos
culpados.
Se
há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira
com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço,
metálica.
Nós
vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-mesmo é
apenas o si-mesmo.
E
Deus não é número.
Vamos
ser gente, por favor. Nossa sociedade está nos deixando secos como
um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol. Meu número
íntimo é 9. Só. 8. Só. 7. Só. Sem somá-los nem transformá-los
em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando com um número?
Não, a intimidade não deixa. Vejam, tentei várias vezes na vida
não ter número e não escapei. O que faz com que precisemos de
muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar que amor
não tem número. Ou tem?
Jornal
do Brasil /
ago / 1971
in:
Pequenas
Descobertas do Mundo
/ crônica e conto / 2003
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