sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O poema Gemidos de Arte - de Augusto dos Anjos






O poema Gemidos de Arte na Poética de Augusto dos Anjos


Leonardo de Magalhaens

Fale / UFMG



Poética de Augusto dos Anjos


      A Poética de Augusto dos Anjos (Paraíba, 1884 - Minas Gerais, 1914), professor e poeta, autor do livro único Eu (1912), é reconhecida como uma exploração de temas metafísicos e científicos em forma lírica e pós-simbolista, com rigor métrico e rimas raras, com demonstração de vasta erudição (ainda que 'mal digerida') com o uso de excêntrico vocabulários, onde se destacam os termos científicos e filosóficos, além das palavras proparoxítonas de raro uso.

      A ambiência desta poética encontra-se plena de tons soturnos, brumas góticas, clamor na solidão do eu lírico, o ser singular na vastidão do mundo, a impotência do indivíduo consciente submetido às forças imperiosas e desconhecidas do cosmos, a consciência enquanto incômodo existencial, o deslocamento do visionário na vida prática. As exigências da vida social – medíocre e mesquinha - são um suplício para o ser que se recolhe à solidão onde encontra refúgio para ser autêntico, enquanto ser que sofre. Neste sofrimento o eu lírico destila pensamentos pessimistas e até niilistas.

      As referências à autores e obras, sejam poetas, filósofos ou personalidades, também são destaque na poética de Augusto dos Anjos, sejam metafísicos, materialistas, platônicos ou pré-socráticos, evolucionistas, figuras bíblicas ou das mitologias grega e romana, toda um anexo com biografias e trechos de obras é necessário para compreender algumas alusões feitas pelo poeta. Outro glossário é necessário para os termos de metafísica, religião, filosofia alemã, naturalismo, evolucionismo, etc, para se absorver os conhecimentos eruditos do poeta.

      Para alguns é fascinante este vocabulário, para o exercício na pesquisa dos campos semânticos – filosofia, religião, ciências – além das consultas ao dicionário de língua portuguesa, em busca de notas de etimologias do nosso idioma (que conservou radicais, sufixos, prefixos, mesmo palavras, dos idiomas latim e grego) tão variado e flexível para expressar conceitos e teorias, sentimentos e desassossegos. Para outros, a maioria, o vocabulário é o elemento que afasta, o que causa estranhamento a ponto de se evitar a leitura mais aprofundada. Assim é quando julgam o poeta um autor pedante, a despejar palavras esdrúxulas numa pretensa poesia filosófica com erudição 'mal digerida'.

      Sobre o vocabulário – e as temáticas obsessivas – de Augusto dos Anjos, escreve Darci Damasceno (em A Literatura no Brasil, Vol. 4, cap. 46, p. 605; org. Afrânio Coutinho, 2004), a ressaltar os aspectos da introspecção e da consciência da finitude,

Assenhorando-se de um vocabulário pertencente às ciências e às técnicas, incorporando a temática do macabro, imbuindo-se de filosofia materialista, Augusto dos Anjos caldeou tudo isso em argamassa de extremado pessimismo e fez do lado sórdido, negativo ou carcomido da vida a fonte de seu canto. A obsessão do próprio eu, a penetração a fundo na própria personalidade foi a constante de toda sua atividade criadora, e a consciência da morte, ou melhor, do aniquilamento absoluto era a soturna voz que lhe perpassava poema a poema.



Gemidos de Arte na poética augustiana


      Em Gemidos de Arte podemos encontrar algumas características que se destacam na obra poética do autor Augusto dos Anjos. É um longo poema, em 3 partes, com estrofes de versos decassílabos (heroicos e sáficos) onde o eu lírico descreve um ambiente, cercado pela Natureza, presente no Engenho Pau D'Arco, na Paraíba, onde o poeta nasceu, onde medita num pesaroso passeio, em meados de maio de 1907, a pensar na infância e na decadência da família, que perde o patriarcas e os latifúndios, onde a falência financeira é seguida pela dispersão familiar e morte dos entes queridos.

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, (…)

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
...

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.

e

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.

mais

Pelo acidentadíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os Dois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.


      O poeta segue a abordar os temas da desilusão, da solidão, do deslocamento no mundo, num poema onde a paisagem é uma moldura para a expressão do sofrimento ou da amargura, com a perda do aconchego da infância, dos carinhos da mãe (bem evidente em “Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles / Carinhos, com que guarda meus sapatos, / Por que me deu consciência dos meus atos / Para eu me arrepender de todos eles?!),

Esta desilusão que me acabrunha
E mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
...
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,


       Em seguida aborda a questão da dualidade corpo X alma, “Mas a carne é que é humana! A alma é divina.”, uma descrição do mundo impuro e decadente, paralelo a uma ânsia de transcendência às esferas superiores – tal um Dante da era cientificista - , num desejo de pregar uma redenção – além da poesia, imagina-se, numa espantosa vontade de sacrifício, “Uma vontade absurda de ser Cristo / Para sacrificar-me pelos homens!”, além do desejo de sair do plano físico , material para uma transcendência em espaços mais sublimes,


Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída á hediondez de ínfimo casco,
...
Outras constelações e outros espaços


      Para acentuar uma ambiência expressiva – até expressionista? - há uma recorrência de repetições enfáticas, com mudança de classe gramatical, assim temos giro / giram, ou redemoinho / redemoinham, ou raciocínio / raciocinasse, como um resquício da exploração da sonoridade (“a música antes de tudo”, de Paul Verlaine ) do estilo Simbolista. Assim encontramos : “Em giro e em redemoinho em mim caminham / Ríspidas mágoas estranguladoras, / Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras / Brônzeas, também giram e redemoinham.” e “Por sobre todo o meu raciocínio / Para que eu nunca mais raciocinasse?!”


      No poema temos várias referências a personagens bíblicos, seres e deuses da mitologia pagã / grega, além de personalidades históricas e países assim Pilatos, Cristo, Jeová, Nabucodonosor, também o deus pagão Dioniso, e o romano Plínio, o cientista Laplace, o político Jules Favre e Alemanha. Também um certa Avenida das Mappales. Estas referências parecem surgir , às vezes, apenas para manter um padrão de rima, ou apresentar uma rima rara. Algumas vezes é até difícil situar o referencial. Por exemplo, de onde este Parfeno? Quem seria? Qual a relação com Dioniso, deus grego, chamado Baco, na mitologia romana?

      Ainda há no poema uma figura rememorada, um trabalhador braçal, ser humilde, chamado aqui de Toca, já finado, que “carregava canas para o engenho”, o que mostra uma imagem da exploração do trabalho do camponês pela nossa aristocracia rural. Classe esta a qual o poeta pertencia, em sua infância, sendo filho de dono de engenho, no interior da Paraíba, antes de um momento de crises – abolição da escravidão, novas relações de trabalho, transição política da Monarquia para a República (em 1889) – que abalou a família e o poeta, logo depois auto-exilado.
       Mais: a consciência social do poeta evidencia-se quando denuncia “o pedaço já podre de pão duro / que o miserável recebeu na estrada” ou “o dinheiro coberto de azinhavre / que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!” - assim como se mostra no extenso poema Os Doentes, poema que relembra as condições miseráveis do grupos marginalizados – os doentes, os bêbados, as prostitutas, os indígenas, etc - na sociedade brasileira, desigual e excludente desde a colonização. Diante desta sociedade, numa postura crítica, se encontra o poeta, sozinho, 'pelos matos', como um excluído / perseguido.

      Além disso, a marca do exilado está na amargura ao tecer comparação do que foi com o que é, aquele sentimento de perda que torna a saudade tão dolorosa – 'ontem foi melhor que hoje' - “Nos outros tempos e nas outras eras, / Quantas flores! Agora, em vez de flores, / Os musgos, como exóticos pintores, / Pintam caretas verdes nas taperas.” É o sentimento que abate o poeta quando pensa que a infância está perdia, que ele precisa deixar o útero da família e enfrentar um mundo de imperativos e desalentos.

       As meditações do eu lírico sobre a unidade da pluralidade do mundo, o ciclo das transformações, a morte que gera vida, a fatalidade de um Destino que nos oprime, tudo isso gera uma febre que deseja se transborda nos versos, ora prosaicos, ora ásperos, explicitando um desconforto, “com a cabeça em brasas”, em comparação com o ambiente, onde o sol queima na aridez do sertão. Quanto mais calor no plano externo, mais febre na ebulição das ideias de profundidade metafísica – Universo, Fatalidade, Espírito sublime.

      Podemos falar em expressionismo não apenas como uma escola literária que o poeta seguiria, mas como uma forma de se expressar, como um grito – aqui lembramos do famoso quadro “O Grito” do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944) – como um desabafo do desassossego existencial que o poeta sente diante da própria desolação – em reflexo com a desolação do engenho onde nada é como era antes – e do mundo onde apenas vê e prevê misérias e decepções,

Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma


      No mais, o poema Gemido de Arte é citado em outro poema de Augusto dos Anjos, igualmente extenso e meditativo, escrito na mesma época e local, chamado “Tristezas de um Quarto Minguante”, onde as descrições são de um ambiente noturno no Engenho de Pau D'Arco, “Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare, / Este Engenho Pau d'Arco é muito triste.... / Do observatório em que eu estou situado / A lua magra, quando a noite cresce,”, logo em seu início mostra um tom soturno.


       Há algo de ultra-romantismo, ou decadentismo, não fosse a impressão onírica, de ilusão – assim mais próximo do expressionismo da Europa de pré-Primeira Guerra Mundial – ainda que uma voz consciente saiba que em dia (ou noite) se encontra, a citar datas, aquela da composição que analisamos, Gemidos de Arte, “Vai-me crescendo a aberração do sonho. / Morde-me os nervos o desejo doudo / De dissolver-me, de enterrar-me todo / Naquele semicírculo medonho! // Mas tudo isto é ilusão de minha parte! / Quem sabe se não é porque não saio / Desde que, 6.ª-feira, 3 de maio, / Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!”


        Parece haver mesmo uma relação claro - escuro, dia – noite entre os poemas Gemidos de Arte e Tristezas de um Quarto Minguante, pois no primeiro, o poeta descreve o sol, os laranjais, a infância perdida, enquanto no segundo, no mesmo local, ele descreve o luar, as sombras, os 'sonhos dementes'. Também esta é a leitura apresentada por Zenir Campos Reis (em Literatura Comentada – Augusto dos Anjos, 1982),

Este poema ('Gemidos de Arte') deve ser lido junto com outro, “Tristezas de um Quarto Minguante”: ambos fazem referência ao Engenho Pau d'Arco, onde nasceu e foi criado o poeta. 'Gemidos de Arte' é um poema do Sol, diurno; 'Tristezas de um Quarto Minguante' é noturno, da Lua. Observe as imagens de luz, de vida, num; no outro, as de trevas, de delírio e de morte.

       A poética de Augusto dos Anjos situava-se bem adiante da poesia brasileira de sua época, em diálogo com o cientificismo, com o positivismo, com as novas teorias do evolucionismo, de fins de século XIX, o que explica a dificuldade dos ditos pré-modernistas, muitos tradicionais parnasianos e simbolistas, em aceitarem e compreenderem sua escrita, que apresenta algo de um expressionismo, como notamos nas poéticas do alemão Gottfried Benn (1886-1956) e do austríaco Georg Trakl (1887-1914), contemporâneos cuja poesia Augusto dos Anjos teria se identificado, e lido com mórbido prazer.


2014



Referências


ANJOS, Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1998.

Augusto dos Anjos / seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Zenir Campos Reis. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura Comentada)

Literatura no Brasil, A. Direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004.






poemas expressionistas de Benn e Trakl
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LdeM

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