O
poema Gemidos de Arte na Poética
de Augusto dos Anjos
Leonardo
de Magalhaens
Fale
/ UFMG
Poética
de Augusto dos Anjos
A Poética de Augusto dos Anjos
(Paraíba, 1884 - Minas Gerais, 1914), professor e poeta, autor do
livro único Eu (1912), é reconhecida como uma exploração
de temas metafísicos e científicos em forma lírica e
pós-simbolista, com rigor métrico e rimas raras, com demonstração
de vasta erudição (ainda que 'mal digerida') com o uso de
excêntrico vocabulários, onde se destacam os termos científicos e
filosóficos, além das palavras proparoxítonas de raro uso.
A ambiência desta poética
encontra-se plena de tons soturnos, brumas góticas, clamor na
solidão do eu lírico, o ser singular na vastidão do mundo, a
impotência do indivíduo consciente submetido às forças imperiosas
e desconhecidas do cosmos, a consciência enquanto incômodo
existencial, o deslocamento do visionário na vida prática. As
exigências da vida social – medíocre e mesquinha - são um
suplício para o ser que se recolhe à solidão onde encontra refúgio
para ser autêntico, enquanto ser que sofre. Neste sofrimento o eu
lírico destila pensamentos pessimistas e até niilistas.
As referências à autores e obras,
sejam poetas, filósofos ou personalidades, também são destaque na
poética de Augusto dos Anjos, sejam metafísicos, materialistas,
platônicos ou pré-socráticos, evolucionistas, figuras bíblicas ou
das mitologias grega e romana, toda um anexo com biografias e trechos
de obras é necessário para compreender algumas alusões feitas pelo
poeta. Outro glossário é necessário para os termos de
metafísica, religião, filosofia alemã, naturalismo, evolucionismo,
etc, para se absorver os conhecimentos eruditos do poeta.
Para alguns é fascinante este
vocabulário, para o exercício na pesquisa dos campos semânticos –
filosofia, religião, ciências – além das consultas ao dicionário
de língua portuguesa, em busca de notas de etimologias do nosso
idioma (que conservou radicais, sufixos, prefixos, mesmo palavras,
dos idiomas latim e grego) tão variado e flexível para expressar
conceitos e teorias, sentimentos e desassossegos. Para outros, a
maioria, o vocabulário é o elemento que afasta, o que causa
estranhamento a ponto de se evitar a leitura mais aprofundada. Assim
é quando julgam o poeta um autor pedante, a despejar palavras
esdrúxulas numa pretensa poesia filosófica com erudição 'mal
digerida'.
Sobre o vocabulário – e as
temáticas obsessivas – de Augusto dos Anjos, escreve Darci
Damasceno (em A Literatura no Brasil, Vol. 4, cap. 46, p. 605;
org. Afrânio Coutinho, 2004), a ressaltar os aspectos da
introspecção e da consciência da finitude,
Assenhorando-se de um vocabulário
pertencente às ciências e às técnicas, incorporando a temática
do macabro, imbuindo-se de filosofia materialista, Augusto dos Anjos
caldeou tudo isso em argamassa de extremado pessimismo e fez do lado
sórdido, negativo ou carcomido da vida a fonte de seu canto. A
obsessão do próprio eu, a penetração a fundo na própria
personalidade foi a constante de toda sua atividade criadora, e a
consciência da morte, ou melhor, do aniquilamento absoluto era a
soturna voz que lhe perpassava poema a poema.
Gemidos
de Arte na poética augustiana
Em Gemidos de
Arte podemos encontrar algumas características que se
destacam na obra poética do autor Augusto dos Anjos. É um longo
poema, em 3 partes, com estrofes de versos decassílabos (heroicos e
sáficos) onde o eu lírico descreve um ambiente, cercado pela
Natureza, presente no Engenho Pau D'Arco, na Paraíba, onde o poeta
nasceu, onde medita num pesaroso passeio, em meados de maio de 1907,
a pensar na infância e na decadência da família, que perde o
patriarcas e os latifúndios, onde a falência financeira é seguida
pela dispersão familiar e morte dos entes queridos.
O
sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, (…)
E eu vou andando, (…)
O
sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
...
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
...
Avisto
o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.
e
Os
ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
mais
Pelo
acidentadíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os Dois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os Dois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.
O poeta segue a abordar os temas da
desilusão, da solidão, do deslocamento no mundo, num poema onde a
paisagem é uma moldura para a expressão do sofrimento ou da
amargura, com a perda do aconchego da infância, dos carinhos da mãe
(bem evidente em “Pois minha Mãe
tão cheia assim daqueles
/ Carinhos, com que
guarda meus sapatos, /
Por que me deu
consciência dos meus atos
/ Para eu me
arrepender de todos
eles?!”),
Esta
desilusão que me acabrunha
E mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
...
E mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
...
Tenho
estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
Em seguida aborda a questão da
dualidade corpo X alma, “Mas a carne
é que é humana!
A alma é divina.”,
uma descrição do mundo impuro e decadente, paralelo a uma ânsia de
transcendência às esferas superiores – tal um Dante da era
cientificista - , num desejo de pregar uma redenção – além da
poesia, imagina-se, numa espantosa vontade de sacrifício, “Uma
vontade absurda de ser Cristo / Para sacrificar-me pelos homens!”,
além do desejo de sair do plano físico , material para uma
transcendência em espaços mais sublimes,
Soberano
desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma
região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída á hediondez de ínfimo casco,
...
Subtraída á hediondez de ínfimo casco,
...
Outras
constelações e outros espaços
Para acentuar uma ambiência
expressiva – até expressionista? - há uma recorrência de
repetições enfáticas, com mudança de classe gramatical, assim
temos giro / giram, ou redemoinho
/ redemoinham,
ou raciocínio
/ raciocinasse, como um resquício da
exploração da sonoridade (“a música
antes de tudo”, de Paul
Verlaine ) do estilo Simbolista. Assim encontramos : “Em
giro e em redemoinho
em mim caminham /
Ríspidas mágoas estranguladoras,
/ Tais quais, nos
fortes fulcros, as tesouras
/ Brônzeas, também giram
e redemoinham.” e “Por sobre
todo o meu raciocínio
/ Para que eu
nunca mais raciocinasse?!”
No poema temos várias referências a
personagens bíblicos, seres e deuses da mitologia pagã / grega,
além de personalidades históricas e países assim Pilatos, Cristo,
Jeová, Nabucodonosor, também o deus pagão Dioniso, e o romano
Plínio, o cientista Laplace, o político Jules Favre e Alemanha.
Também um certa Avenida das Mappales. Estas referências parecem
surgir , às vezes, apenas para manter um padrão de rima, ou
apresentar uma rima rara. Algumas vezes é até difícil situar o
referencial. Por exemplo, de onde este Parfeno? Quem seria? Qual a
relação com Dioniso, deus grego, chamado Baco, na mitologia romana?
Ainda há no poema uma figura
rememorada, um trabalhador braçal, ser humilde, chamado aqui de
Toca, já finado, que “carregava canas para
o engenho”, o que mostra uma imagem da
exploração do trabalho do camponês pela nossa aristocracia rural.
Classe esta a qual o poeta pertencia, em sua infância, sendo filho
de dono de engenho, no interior da Paraíba, antes de um momento de
crises – abolição da escravidão, novas relações de trabalho,
transição política da Monarquia para a República (em 1889) –
que abalou a família e o poeta, logo depois auto-exilado.
Mais: a consciência social do poeta
evidencia-se quando denuncia “o pedaço já podre de pão duro /
que o miserável recebeu na estrada” ou “o dinheiro
coberto de azinhavre / que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!”
- assim como se mostra no extenso poema Os Doentes, poema que
relembra as condições miseráveis do grupos marginalizados – os
doentes, os bêbados, as prostitutas, os indígenas, etc - na
sociedade brasileira, desigual e excludente desde a colonização.
Diante desta sociedade, numa postura crítica, se encontra o poeta,
sozinho, 'pelos matos', como um excluído / perseguido.
Além disso, a marca do exilado está
na amargura ao tecer comparação do que foi com o que é,
aquele sentimento de perda que torna a saudade tão dolorosa –
'ontem foi melhor que hoje' - “Nos outros tempos e nas outras
eras, / Quantas flores! Agora, em vez de flores, / Os musgos, como
exóticos pintores, / Pintam caretas verdes nas taperas.” É o
sentimento que abate o poeta quando pensa que a infância está
perdia, que ele precisa deixar o útero da família e enfrentar um
mundo de imperativos e desalentos.
As meditações do eu lírico sobre a
unidade da pluralidade do mundo, o ciclo das transformações, a
morte que gera vida, a fatalidade de um Destino que nos oprime, tudo
isso gera uma febre que deseja se transborda nos versos, ora
prosaicos, ora ásperos, explicitando um desconforto, “com a
cabeça em brasas”, em comparação com o ambiente, onde o sol
queima na aridez do sertão. Quanto mais calor no plano externo, mais
febre na ebulição das ideias de profundidade metafísica –
Universo, Fatalidade, Espírito sublime.
Podemos falar em expressionismo
não apenas como uma escola literária que o poeta seguiria, mas como
uma forma de se expressar, como um grito – aqui lembramos do famoso
quadro “O Grito” do pintor norueguês Edvard Munch
(1863-1944) – como um desabafo do desassossego existencial que o
poeta sente diante da própria desolação – em reflexo com a
desolação do engenho onde nada é como era antes – e do mundo
onde apenas vê e prevê misérias e decepções,
Súbito, arrebentando a horrenda
calma,
Grito, e se grito é para que meu
grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na
minh'alma
No
mais, o poema Gemido de Arte é
citado em outro poema de Augusto dos Anjos, igualmente extenso e
meditativo, escrito na mesma época e local, chamado “Tristezas
de um Quarto Minguante”,
onde as descrições são de um ambiente noturno no Engenho de Pau
D'Arco, “Quarto Minguante! E,
embora a lua o
aclare, / Este Engenho
Pau d'Arco é muito
triste.... / Do observatório em
que eu estou situado
/ A lua magra,
quando a noite cresce,”,
logo em seu início mostra um
tom soturno.
Há algo de ultra-romantismo, ou
decadentismo, não fosse a impressão onírica, de ilusão – assim
mais próximo do expressionismo da Europa de pré-Primeira Guerra
Mundial – ainda que uma voz consciente saiba que em dia
(ou noite) se encontra, a citar datas, aquela da composição que
analisamos, Gemidos de Arte,
“Vai-me crescendo a aberração
do sonho. / Morde-me
os nervos o desejo
doudo / De dissolver-me,
de enterrar-me todo /
Naquele semicírculo medonho!
// Mas tudo isto
é ilusão de minha
parte! / Quem sabe
se não é porque
não saio / Desde
que, 6.ª-feira, 3 de
maio, / Eu escrevi
os meus Gemidos de
Arte?!”
Parece haver mesmo uma relação
claro - escuro, dia – noite entre os poemas Gemidos de
Arte e Tristezas de um
Quarto Minguante, pois no primeiro, o poeta
descreve o sol, os laranjais, a infância perdida, enquanto no
segundo, no mesmo local, ele descreve o luar, as sombras, os 'sonhos
dementes'. Também esta é a leitura apresentada por Zenir Campos
Reis (em Literatura Comentada – Augusto dos Anjos, 1982),
Este poema ('Gemidos de Arte')
deve ser lido junto com outro, “Tristezas de um Quarto
Minguante”: ambos fazem referência ao Engenho Pau d'Arco, onde
nasceu e foi criado o poeta. 'Gemidos de Arte' é um poema do
Sol, diurno; 'Tristezas de um Quarto Minguante' é noturno, da
Lua. Observe as imagens de luz, de vida, num; no outro, as de trevas,
de delírio e de morte.
A poética de Augusto dos Anjos
situava-se bem adiante da poesia brasileira de sua época, em diálogo
com o cientificismo, com o positivismo, com as novas teorias do
evolucionismo, de fins de século XIX, o que explica a dificuldade
dos ditos pré-modernistas, muitos tradicionais parnasianos e
simbolistas, em aceitarem e compreenderem sua escrita, que apresenta
algo de um expressionismo, como notamos nas poéticas do alemão
Gottfried Benn (1886-1956) e do austríaco Georg Trakl (1887-1914),
contemporâneos cuja poesia Augusto dos Anjos teria se identificado,
e lido com mórbido prazer.
2014
Referências
ANJOS, Augusto dos Anjos. Eu e
outras poesias. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1998.
Augusto dos Anjos / seleção
de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e
exercícios por Zenir Campos Reis. São Paulo: Abril Educação,
1982. (Literatura Comentada)
Literatura no Brasil, A.
Direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho.
7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004.
poemas
expressionistas de Benn e Trakl
nos
sites
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