O
Eu lírico / voz poética enquanto sujeito ficcional
Leonardo de Magalhaens
Fale / UFMG
Trataremos
aqui de Poesia, de textos poéticos, onde a palavra se exibe, como um
construto verbal, que é mensagem em si-mesma, com uma voz que se
manifesta para si mesma, ou para alguém, com um estatuto de ficção
predominante, isto é, o contrato é ficcional, na condição de
peça literária, independente de referenciais factuais, como
essência linguística e performática, ao tecer relações entre
Sujeito da enunciação e Sujeito do enunciado, entidades da Análise
do Discurso.
Sobre
o estatuto de Ficção Predominante da Poesia, tal como
apresentamos neste artigo, temos o argumento de Mendes (2005:142),
É
um tipo de produção que se constituiria predominantemente de
simulações de situações possíveis e seria permeada de efeitos de
real e de ficção. Seria interessante ressaltar que qualquer gênero
de discurso cujo estatuto seja factual é passível de se transformar
em um gênero de estatuto ficcional.
Como
exemplo de ficcionalidade predominante, podemos citar: Romances,
contos, poesia, cinema, teatro, letras de música, histórias em
quadrinhos, alguns tipos de crônicas, charges, receitas ficcionais,
paródia, jogos eletrônicos, desenhos animados, etc.
Quando
um poeta, uma poeta, se dedica a escrever um poema, ele ou ela ativa
um certo estilo e certas particularidades de uma vivência, com uma
dada visão de mundo. Não que o poema deva ser lido como
autobiográfico, ou confessional, mas indícios de uma vida sempre se
constatam. Níveis variados de ficcionalização do vivido podem ser
percebidos, desde o poeta, ou a poeta, falando em nome próprio, com
um eu-lírico marcadamente autoral, ao citar o próprio nome, até a
ficcionalidade de um eu-lírico outro, de outro gênero ou classe
social, ou ser imaginário ou mitológico.
Quando
escreve um poema, o poeta, ou a poeta, o autor, ou autora,
empírico/a, cria um ser
ficcional
que existe no enunciado do texto, de existência textual, com pouco
ou nenhum referencial, não exatamente uma confissão dos sentimentos
e ideais do autor, ou autora. É possível que seja até ser o
oposto, não havendo ligação com o gênero, a personalidade e a
classe social de quem escreve. É criada uma outra 'persona',
o eu-lírico, sujeito poético ou narrador, que se manifesta
textualmente voltada para um leitor imaginado (ou narratário) que
precisa dissociar a voz que fala da figura autoral. Não se trata de
uma confissão, mas uma ficcionalização.
Portanto,
convenhamos que várias vozes são possíveis nos poemas, com uma
perceptível gradação
da ficcionalidade. Várias identidades podem ser interpretados nos
enunciados. Tomaremos como exemplo a obra do poeta Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987), autor do poema Infância,
quando há uma voz que enuncia “E
eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson
Crusoé.”
onde o autor ativa um eu-lírico possuído pela memória, pela
lembrança do eu-de-ontem. Há uma clara diferença quando o autor se
nomeia em Poemas
de Sete Faces,
onde “Vai,
Carlos, ser gauche
na vida!”,
em relação ao poema Caso
do Vestido
onde há uma dramatização com as vozes de uma mulher, mãe de
família, traída e resignada diante da presença do marido, a
dialogar com as filhas.
Em
outro poema, a Morte
do Leiteiro,
há outra voz, a descrever um cenário, a prenunciar um drama, a
lamentar a tragédia de um leiteiro, enquanto uma voz coletiva a
testemunhar um drama cotidiano, a violência urbana. É uma voz que
pede nossa cumplicidade, ao mesmo tempo em que descreve a cena de
vários pontos de vista – dentro e fora do drama – com uma visão
de cameraman.
Com
semelhantes variações de ficcionalidade, onde podemos ir do
confessional ao dramático e performático, do eu autoral ao eu
personagem, podemos perceber a dificuldade em identificar no eu-
lírico / voz poética a presença do eu empírico / autoral, o
Sujeito da Enunciação, uma vez que quem fala no poema é próprio
do poema, é uma voz textual, não representa o ego ou emoção de
quem escreve – pois “o
poeta é um fingidor”,
como declara o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) em seu
poema Autopsicografia.
A
possibilidade de criar um outro Eu, uma ficcionalização de
si-mesmo, cria uma outra voz, totalmente diversa daquela que poderia
se identificar na figura autoral. Com a gradação de
ficcionalidade há uma implosão da correspondência entre o
autor, ou a autora, o ser empírico, quem escreve, e a voz poética /
eu lírico, pois o/a autor/a se idealiza, e também idealiza o
leitor/ narratário – num pacto de ficcionalidade – onde a emoção
não é aquela de quem escreve, mas do leitor/ narratário (segundo
uma perspectiva da Estética da Recepção). Constatamos
estas 'formas de troca'
em Mendes (2005) baseada em Charadeau (1993), “Formas de troca –
têm natureza interacional. É onde temos retratados os sujeitos do
ato de linguagem. Por exemplo: um Eu comunicante
escritor que se endereça a um Tu interpretante
leitor; um Eu comunicante ator
que se endereça a um Tu interpretante
espectador.”
Cuidaremos
da leitura crítica de quatro poemas selecionados, a saber, Poema
de Sete Faces, A Morte do Leiteiro, Caso do Vestido e
Canção
da Moça-Fantasma de Belo Horizonte,
nos quais, através de comparação, explicitaremos a marcação das
diferenças de vozes poéticas, onde o poeta, sujeito da enunciação,
ficcionaliza 'papéis', ora sendo um cidadão saudosista, ou
melancólico, ora uma mulher traída, ora um espectro de moça, ora
um cidadão observador indignado. Assim, o autor Drummond de Andrade
não ativa apenas a voz de um funcionário público urbano, leitor
voraz, tradutor, formado em farmácia, cronista, etc, pois ocorre um
fenômeno de despersonalização, com a criação de outras
identidades.
Nos
poemas selecionados de Drummond de Andrade podemos as gradações de
ficcionalidade,
quando é possível identificar a voz poética mais próxima as
vivências do poeta, funcionário público, engajado discursivamente
na vida moderna, a ponto de usar o nome 'Carlos' em suas enunciações,
“Vai,
Carlos! Ser gauche
na vida!”
(Poema
de Sete Faces)
Pois ao compor seu poema, o poeta cria um ser
ficcional
– eu lírico / voz poética - que 'fala' no texto, que
desenvolve-se textualmente, não necessariamente um prolongamento dos
sentimentos e ideais do autor.
Quando
nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai,
Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que
correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não
houvesse tantos desejos.
[...]
O homem atrás do
bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem
poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
(1998:13)
Encontramos
no poema A
Morte
do Leiteiro
uma voz que descreve um ambiente, um cenário, discursa sobre
problemas sociais, sem se identificar. Este eu-lírico vê a cidade,
e os cidadãos, o problema da insegurança, vê o jovem leiteiro, os
cidadãos temerosos que dormem, os passos do leiteiro antes, durante
e depois de sua morte; assim como vê os movimentos do cidadão que
se amedronta e atira. É possível uma factualidade
colaborativa,
ao imaginar-se um subúrbio desestabilizado pela violência urbana,
por crimes de lesa-patrimônio, em alguma metrópole; como há também
uma ficcionalidade
com efeitos de real, ao inserir as conhecidas cenas da vida urbana.
Na
mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe
atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua
Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá
o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem
pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena
mercadoria.
E
como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao
pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse
beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer
barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
(1998:135)
O
que se diferencia enormemente dos eus-líricos no poema Caso
do Vestido,
onde há uma dramatização de uma voz feminina, a mãe traída,
diante de uma voz coletiva, a das filhas, que testemunham a
procedência de um determinado vestido, que marcou uma experiência
de traição e submissão. A ficcionalidade
está evidente no uso da voz feminina (pois o poeta é de gênero
masculino) e a factualidade
colaborativa
está na possibilidade de tal drama da mulher submissa na sociedade
patriarcal. Ou seja, há uma trama de possibilidade e ficção, o que
leva o leitor a se emocionar, consciente da condição da dona de
casa, submissa, humilhada, ao se explicar às filhas. Não que tal
mulher exista realmente, não é este o factual,
mas a possibilidade de mulheres que realmente viviam tal situação
de dominação. O poeta então dá voz a estas mulheres anônimas.
Nossa
mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas
filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Passou
quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas
filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
Nossa
mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.
Minhas
filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
O
vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.
Nossa
mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!
Minhas
filhas, escutai
palavras de minha boca.
(1998:
155)
Temos,
ao extremo, a voz no poema que se diz uma falecida donzela que vaga
pelas ruas da cidade de Belo Horizonte, uma voz espectral que fala no
extenso poema Canção
da Moça-Fantasma
onde vem narrar seus infortúnios, a sua tragédia de moça
precocemente falecida, sem conhecer o amor e o calor do pretendente.
É performada uma voz de mulher jovem a testemunhar a condição
feminina, da noiva sem futuro, da juventude sem frutos. É de se
perguntar se um ser fantasma narraria assim seu drama - assim como a
possibilidade de um defunto autor em Memórias
Póstumas de Brás Cubas,
romance de Machado de Assis (1839-1908) – num hipotética estado
pós-morte de 'alma penada'. Sabemos que é tematizada uma 'lenda
urbana', a da moça fantasma da Serra do Curral, que, dizem alguns,
se manifestava nos itinerários de bondes. Tal donzela fantasma é
muitas vezes confundida com a 'Loira do Bonfim', também do folclore
local, quando vários habitantes alegam ter vislumbrado um vulto
fantasmagórico de beleza feminina nos arredores do Cemitério do
Bonfim, o mais antigo da Capital, onde ela dizia morar.
Eu
sou a Moça-Fantasma
que
espera na Rua do Chumbo
o
carro da madrugada.
Eu
sou branca e longa e fria,
a
minha carne é um suspiro
na
madrugada da serra.
Eu
sou a Moça-Fantasma.
O
meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.
(1998:48)
No
mais, a factualidade colaborativa está presente nas citações
de locais, ruas, praças, logradouros da cidade de Belo Horizonte
(MG), que podem ser localizados em qualquer mapa da cidade, assim
referenciais para os cidadãos. Trata-se do mesmo efeito de real
que se encontra nas memórias do médico-escritor Pedro Nava
(1903-1984), veja-se as obras Balão Cativo, Chão de Ferro ou
Beira-mar, que retratam a Belo Horizonte dos anos de 1920-1930,
onde as lembranças se entretecem com situações e logradouros, a
compor uma 'geografia sentimental'),
Morri
sem ter tido tempo
de
ser vossa, como as outras.
Não
me conformo com isso,
e
quando as polícias dormem
em
mim e fora de mim,
meu
espectro itinerante
desce
a Serra do Curral,
vai
olhando as casas novas,
ronda
as hortas amorosas
(Rua
Cláudio Manuel da Costa),
para
no Abrigo Ceará,
não
há abrigo. Um perfume
que
não conheço me invade:
é
o cheiro do vosso sono
quente,
doce, enrodilhado
nos
braços das espanholas...
Oh!
deixai-me dormir convosco.
(1998:48-49)
O
fato de uma voz de donzela fantasma ficcional imaginária citar nomes
de ruas reais que existem na cidade de Belo Horizonte, uma figura da
lenda urbana que transita por uma geografia conhecida, semelhante
efeito de real, eis uma evidência das porosidades entre o
ficcional e o factual, entre o imaginário e o real nos
textos, aqui, na poesia, como bem notou Mendes (2005:146),
Não
existiriam gêneros puros, totalmente despidos de efeitos de real e
efeitos de ficção. É por este motivo que em nosso quadro as
fronteiras entre as situações reais e as situações factuais são
representadas como sendo porosas, possuem permeabilidade e permitem
uma série de movimentações e deslocamentos que seriam
representados pela dupla orientação das setas: o que, em um dado
momento, seria aceito como factual, em outra circunstância, poderia
se tornar ficcional.
Não
é difícil, para finalizarmos, evidenciar que as vozes em A
Morte do Leiteiro,
Caso
do Vestido
e Canção
da Moça-Fantasma
se diferenciam do Eu que se nomina Carlos em Poema
de Sete Faces,
quando se encontra possível referência ao próprio Autor Carlos
Drummond de Andrade e seu cotidiano. Em alguns poemas a voz do
eu-lírico vem se aproximar do/a Autor/a poeta, o eu empírico, ser
social, para em outros poemas apresentar um sujeito ficcional com
outras identidades, às vezes onisciente (pode observar a tudo) a
atuar com um olhar de câmera; às vezes atuando como ser idealizado,
ou entidade mitológica, no plano da fantasia.
Podemos
tentar explicar tal variação de ficcionalidade explícita nos
poemas de Carlos Drummond de Andrade, assim como em outros autores, a
partir da necessidade do poeta em dar voz aos que dela carecem, assim
a mulher enganada, ou o fantasma da jovem, ou o moço assassinado,
através de uma marcada pluralidade de vozes poéticas, eus-líricos
que intentam registrar e testemunhar os seus dramas – dominações
e tragédias – do cotidiano em forma estética.
Referências
ANDRADE,
Carlos Drummond de.
Antologia Poética.
40ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
FIORIN,
José Luiz. As Astúcias da Enunciação – As categorias de
Pessoa, Espaço e Tempo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2005.
MENDES,
Emília. O conceito de ficcionalidade e sua relação com a Teoria
Semiolinguística. In:
MACHADO, Ilda, L. et alli. Movimentos
de um percurso em análise do discurso.
Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005, p. 133-148.
Leonardo de Magalhaens
Fale / UFMG