quarta-feira, 30 de julho de 2014

Belô! Belzonte! Belorizonte! - poema by LdeM






Belô! Belzonte! Belorizonte!

a cidade dos mil-e-um bares
onde jaz a geografia sentimental de Nava

a cidade do sempre subir-e-descer
onde aponta o dito de Mendes Campos

a cidade entre a Floresta e a Bahia
onde enxameiam os soluços da boemia

a cidade dos luares & bazares
onde o noturno encantou o Mário

a cidade do tabuleiro de xadrez
onde trilham passos dos Drummonds

a cidade das praças para puxar-angústia
onde se perdiam os jovens amigos de Sabino

a cidade dos mil-e-tantos literatos
que logo arrumam suas malas rumo ao Rio

a cidade dos novos poetas
atentos ao calendário dos concursos

a cidade dos dois mil turistas
que buscam descanso antes de Tiradentes e Inhotim

a cidade no alto das alterosas
onde se vê a igreja no mar de morros


a cidade de novenas-quermesses-quadrilhas
onde ainda se ouve os sinos das igrejas

a cidade dos bons políticos mineiros
de mãos dadas com Campos & Juscelino

a cidade entre Bias Fortes e Afonso Pena
cheia de candidatos ao Palácio of Liberté

a cidade-maquete dos prédios-caixotes
e dos prédios-curvas de Niemeyer

a cidade dos bares cantinas sebos
livrarias lan-houses PFs do maletta

a cidade de alguma memória biônica
onde procriam museus arquivos acervos

a cidade verdadeira selva-de-concreto
com as carrancas dos índios no edifício

a cidade-monumento dos pontos turísticos
com as carrancas dos fundadores no parque

a cidade que antes era jardim
agora exibe seu perfil de prédios

a cidade da parisiense Plaza de la Liberdad
onde os casais trocam juras entre rosas

a cidade dos românticos flâneurs
onde os seresteiros foram asilados

a cidade da geração da esquina
onde cada músico tem seu clube

a cidade do Falabella-enciclopédia-do-rock
das bandas de garagem dos shows no porão

a cidade-celeiro de bandas exportáveis
com acordes & urros de sepultura overdose eminence

a cidade do nada-modesto show-business
com o som pop de skank pato fu jota quest

a cidade dos mil-e-tantos torcedores
azuis-celestes e alvinegros colecionando gols

a cidade dos mil e um bordéis
onde o sujo fala do mal lavado

a cidade dos novos cowboys high-tech
em boates inferninhos com som caipira

a cidade-vitrine de mil megaeventos
entregue às exposições feiras shows congressos

a cidade dos tantos jornais
onde os novos autores almejam a imprensa oficial

a cidade dos prestativos funcionários
a trocarem memorandos & fofocas ao café

a cidade das rádios bregas
onde os locutores se acham moderninhos

a cidade da classe média em ascensão
onde os ladrões de carro não param

a cidade-capital que se acha metrópole
cercada de pacatas cidades-dormitório

a cidade desenhada-planejada-setorizada
que se percebe um caos urbano

a cidade das faculs & barzinhos
com a peãozada ébria de axé samba rock

a cidade do brumoso horizonte
onde a fuligem já cobriu a beleza

a cidade-tabuleiro de amplas avenidas
já sufocada entre Praça Sete e Savassi

a cidade em camadas pra-cima & pra-baixo
em viadutos elevados túneis trincheiras

a cidade-curral dos reis & tropeiros
onde a aristocracia tem bom-gosto burguês

a cidade das musas social-estatistas
onde o capitalismo brilha em cada vitrine

a cidade da prometida sorte-grande
onde faturam bingos lotéricas caça-níqueis

a cidade do troca-troca & leva-e-traz
povoada de catadores topa-tudos carreteiros

a cidade mais parece um paliteiro
com suas torres-ninhos de telefonia

a cidade que deseja ser cartão-postal
convivendo com o esgotão da pampulha

a cidade de estádio renovado padrão-fifa
onde a seleção canarinho vence nos penâltis

a cidade de hotéis pousadas albergues
povoados de gringos & hermanos & emigrés

a cidade da exemplar (i)mobilidade
sobrevive sem metrô & engole BRT

a cidade de moderna (i)mobilidade
onde viaduto nem-inaugurado desaba na tarde

a cidade palco do incremente mineirazo
quando canarinho levou goleada de sete.


Jul/14

Leonardo de Magalhaens


sexta-feira, 25 de julho de 2014

Poética do simples e do lúdico com mensagem - A poesia de Diovani Mendonça





Poética do simples e do lúdico com mensagem

Sobre a poesia de Diovani Mendonça


por Leonardo de Magalhaens


Uma introdução

      Muitos se ufanam da poesia do complexo, da poesia da erudição, da poética acadêmica peso-pesado de referências intertextuais, mas se esquecem que o mais poético pode germinar e brotar no mais simples, com uma poética do sentir mais do que aquela do pensar, do refletir, do especular. Alguns mesmo se destacam na nossa literatura. Assim já sabia Manuel Bandeira, quando reagiu aos beletristas do Parnaso e aos hermético do Simbólico. Assim sabia Mário Quintana ao ressaltar a simplicidade do dia-a-dia extraindo pérolas do banal cotidiano. Assim brincava José Paulo Paes com poemas lúdicos e divertidos (não apenas para as crianças...). Assim sempre soube Manoel de Barros quando explora o que há de simples e menosprezado no reino dos seres & coisas.

      Poetas que muito prezam o que os outros desprezam, que procuram pedras preciosas no lodo, ou drenam os atoladouros para encontrarem pepitas, onde outros tampam olhos e narinas, os exploradores do mínimo acham materiais para a construção de castelos líricos (ou antilíricos, no relativismo atual …) que destinam para aqueles que passam pela vida altaneiros e distraídos, narizes empinados e almejando palacetes no ar.

      Assim é que encontramos na poética de Diovani Mendonça, mineiro demasiadamente mineiro, que vive no bucolismo da vida campestre, que desliza profissionalmente no mundo virtual, que inventou & fez vicejar o Pão e Poesia (pois não só de pão viverá o homem...), um reflexo deste olhar sobre o mínimo, do flertar com o que outros fingem, nem ver, numa poesia que é feita de poeminhas-imagens, ou poeminhas-epigramas, ou longos poemas-desabafos que nada devem aos poetas acima citados (reconhecidamente fortes influências e leituras de cabeceira...), sempre a divulgar lirismo para todos. Sem demagogias.

     Sim, poesia para todos. Pois todos merecem. Daí a popularização da poesia não ser 'plebeização' da poética, mas antes meio de acesso até à criação literária, onde todos podem encontrar em si mesmo o modo de expressão (escrito, falado, gestual, teatral, etc) no momento em que toma contato com a Poesia que nutre juntamente com o Pão. Por isso, o poeta e divulgador Diovani Mendonça está por aí, em várias escolas de várias cidades, a recitar, a declamar, a falar de fazer-poesia. Poetas, alunos e professores, crianças e adultos, todos deixam seus versos para novas embalagens que logo estão na padaria mais próxima.

      Na sua poética, Diovani Mendonça não faz diferente, sempre focado na simplicidade e sem esteticismos pedantes que incomodem a veiculação da mensagem, ou dos seus insights, suas epifanias, por isso nada de falar-difícil, mas deixando a poesia fluir, pipocar, saltitar no mundo-do-leitor. Pois de nada adianta falar uma coisa que somente ele entende ou entenderia. Quem não se comunica, fala... sozinho. Quem fala difícil só fala para os mestrandos e doutorandos. E quem precisa de poesia fica subnutrido, enquanto os acadêmicos só falam para … outros acadêmicos.

     Então, a poesia para o povo não precisa de plebeísmos, nem citar subgêneros musicais, nem falar de loiras geladas ou marcas de material esportivo, nem celebrar o pão-e-circo das torcidas que dentro e fora dos estádios se perdem em depredações. A Poesia pode se popularizar sem ficar mais burra, sem se diminuir em estatura. O poeta só precisa fazer de tudo para que a poética se realize – em si mesmo e nos leitores. E quanto mais leitores, melhor. Importa tanto a quantidade quanto a qualidade, uma não se sacrifica à outra.

      Afinal, poesia não é apenas texto num papel, mas vida, ou seja, é esforço. A vida é uma luta. E quanto mais preparados estivermos, melhor. E daí a verdadeira utilidade da Poesia: ajudar a viver. Não serve para ganhar dinheiro nem Prêmio Nobel, mas aguça a sensibilidade e irriga a sabedoria. Daí a importância do poeta: falar o que não podemos falar, o que nos passa distraído ou que nos sufoca.


Adentrando os poemas-poeminhas

     Consciente de sua arte, o poeta arrisca algumas dicas para ler & escrever poesia, sem sistemas ou metodologias, exceto da inspiração e da emoção, em momentos de inesperada epifania,

não carece um sistema
o poeta apenas precisa
além de caneta papel
que a poesia se mostre
num estalo dum átimo
na pauta do tempo-espaço
semibreve numa fresta

do breu
(para parir um poema)

pois seu 'sistema' não é de cálculo ou previsão, seus poemas não são previamente agendados, não tem hora marcada para acontecer, eles explodem em supernovas a cada momento de inspiração, e cabe ao poeta colher tal fruto-poema e salvaguardá-lo para si mesmo e para as futuras gerações.

      O poeta não tem pretensão de ser algo além de um porta-voz das forças poéticas que estalam em seu coração e mente. Há um momento de íntima explosão que ativa a sensibilidade poética a conduzir a energia para o mundo arbitrário da linguagem onde se traduz em palavras,

para o exato momento da explosão
para quando salta à minha frente
alguns poucos e loucos demônios
quanto às facas
as amolo no brilho duma fé
(Das Intenções)

então é que a condução do sentimento lírico aflora nas palavras que são entregues a quem deseje ler e adentrar (a compartilhar) o mesmo sentimento que avassalou o eu-lírico. Ser que saltita junto com a poeta que lhe escapole das mãos,

a poesia
tem que ser pop

p

u

l

a

r

na panela de pressão da realidade

elétrica e saltitante
enlouquecer
a métrica

(pop poesia)


     Como se fosse um andarilho Don Quijote, do conhecido romance fundador de romances, o poeta anda em meditações, silente meio ao falatório da mesmice, a despreza o que agrada aos olhares comuns, que ambiciona alturas e riquezas, pois o dinheiro nada mais é que um meio, não um fim em si-mesmo, enquanto ele segue seu caminho,

em
silêncio
caminho
entre

a multidão falante que não v
a poesia
muda

cresSer
diante de pés que calçam

os velhos
sapatos
das urgências
das urgências

(quixote sem dom)

assim, alheio ao dinheiro que escraviza, e transmuta o dia em algarismos, a criar servos e escravos, submetidos aos sacrifícios pelo Deus Dinheiro, enquanto, o poeta, ao contrário, se refugia em sua sombra e água fresca na casinha de sapê, consciente das engrenagens do sistema financeiro, alienante e mercenário,

capiau da unha larga dentro
duma casinha de sapê
que não tem nem fiapo
de rabo preso às
engrenagens do $istema bruto
que não perdoa suas vítimas)


      O poeta se abriga em sua 'torre de marfim' feita de sapê para receber as energias poéticas, mas em seguida adentra o mundo virtual para compartilhar, divulgar, profetizar a fala do mundo não-alienado, não-padronizado. E é toda a liberdade da qual ele precisa.

     Não há precisão de fórmulas , metodologias ou formação acadêmica que só trazem tipificações e rotulações longe da originalidade do pensamento livre, entendamos, autodidata, que conduz ao encontro consigo mesmo, sem intermediações. Daí a preferência do poeta pelos 'radicais livres', mais ácidos e corrosivos visto que não 'adestrados' pela técnica erudita,

entre os radicais
prefiro os + livres

os que não foram
adestrados por livros

e desenvolveram faculdades
de outras esferas e órbitas

(Recado prum camarada poeta)

     Então o que ele pode almejar além de uma mensagem com simplicidade e uma riso lúdico de malabarismo com as palavras? Sua flexibilidade será em não se guiar por prognósticos ou tendências ou 'escolas literárias', mas a deixar fluir sua verve sem condicionamentos, sem departamentalizações, sem pesquisas de mercado.

     É justamente por sua não-pretensão é que a poesia passa a mensagem, sem as amarras de métrica ou rima, sendo que estas surgem ao correr da pena, sem esquematizações ou projetos segundo uma 'estética' já premeditada. Assim é que poeta-capiau Diovani Mendonça vem marcar sua presença original na poética mineira, e quiçá nacional, sem deixar de lado o que os tantos outros desprezam no mundo das poéticas: senso lúdico e simplicidade.



Jun/14


Leonardo de Magalhaens


terça-feira, 22 de julho de 2014

João Ubaldo Ribeiro - Chegada (Um Brasileiro em Berlim)


 

João Ubaldo Ribeiro


Chegada
(Um Brasileiro em Berlim)

     Quem não estiver apto a disputar o pentatlo nos Jogos Olímpicos não deve viajar do Rio de Janeiro a Berlim no que as companhias aéreas chamam de "classe econômica", embora saibam que se trata de um eufemismo para "vagão de búfalos" (exceção feita à comida, já que a dos búfalos é certamente melhor). Foi o que pensei, ao levantar-me, um pouco antes da hora do pouso, para batalhar com os outros búfalos por um lugar na fila do banheiro. Qualquer um que tenha participado de um evento desse tipo o trará sempre na memória - aquela coleção tocante de velhotas ansiosas, jovens senhores de tornozelos entrelaçados e olhos cravados no teto, damas de bolsa na mão fingindo que vão ali apenas para retocar a maquilagem, um cavalheiro de ar severo que mira seus antecessores na fila com evidente rancor, a indignação geral contra a gordinha que acaba de entrar e fechar a porta levando consigo um exemplar de A montanha mágica, um menino de nariz escorrendo explicando à mãe que não se responsabiliza pelo que pode acontecer se não lhe conseguirem uma vaga imediatamente.

     Pentatlo não, decatlo, penso outra vez, ao descermos em Frankfurt, submergindo em sacolas e maletas, e descobrirmos que nossa conexão para Berlim deve ser feita em A-23, logo à direita de A-42, atrás de B-28, passando pelo controle de passaportes ou, se preferirmos algo mais simples, só três quilômetros mais distante, à esquerda de A-17, ignorando o corredor B e indo direto ao objetivo, não sem antes nos submetermos à inspeção de bagagem em A-15E. Tentamos ambas as hipóteses. No curso de umas duas horas, entramos numa fila de passageiros para Bangladesh, saímos no último instante para uma fila de turistas italianos interessados em visitar as vitrines de mulheres de Hamburgo, assinamos uma petição a favor da independência da Lituânia achando que estávamos nos inscrevendo na lista de passageiros para Berlim, quase nos incorporamos a um grupo japonês que ia conhecer a Bolsa de Frankfurt e, finalmente, escorregamos sem querer de uma esteira rolante que nos conduziria a Bad Homburg sem escalas e, ao levantarmos os olhos, nos achamos - milagre! - diante de A-23. Minha filha Chica, de seis anos, exausta mas aliviada como todos nós, fez um comentário.

—A Alemanha é maior do que o Brasil, hem, pai?

—Não. O Brasil é muito maior.

—Pode ser, mas o aeroporto aqui de Fanfu é maior do que o Brasil, não é, não?

—Ah, isso é, cabem uns cinco Brasis aqui dentro — concordei, despencando numa cadeira, olhando em tomo e me dando conta pela primeira vez de que estava mesmo na Alemanha e, se tudo corresse como previsto, ainda estaria por muito tempo.

    Por que a Alemanha? Sim, há várias explicações, digamos, superficiais ou parciais: fui convidado pelo DAAD (
Deutscher Akademische Austauschdienst – Entidade alemã que convida artista para passar temporadas em Berlim – N. do A.), vivo de escrever e, portanto, posso trabalhar em qualquer lugar, tenho amigos aqui etc. etc. Mas isto não satisfaz, porque sei, embora não possa explicar, que existe algo mais entre este país e eu, algo misterioso. Fico imaginando se não teria sido alemão numa vida pregressa. Se Shirley McLaine teve tantas vidas pregressas, por que não posso haver tido pelo menos uma? Olho para o senhor sisudo a meu lado, com uma peninha faceira adornando seu chapéu, em amável contraste com sua expressão austera. Sim, talvez eu tenha sido alguma vez um bávaro, um gordinho chamado Johannes, famoso em toda Munique pela capacidade de consumir cerveja em quantidades industriais — um bávaro como outro qualquer, pensando bem. Quase viro para esse meu conterrâneo e lhe dirijo um sorridente "Grüss Gott!". Mas me contenho. Posso ter sido bávaro em outra vida, mas, infelizmente, para a presente encarnação brasileira, não trouxe comigo meus conhecimentos da língua alemã, que hoje falo com menor desenvoltura do que falaria um homem de Neandertal.

     O devaneio, contudo, não passa. Esta minha ligação com a Alemanha, eu sempre voltando aqui, meus livros lidos aqui, tantos amigos aqui, sentindo-me tão bem aqui... Claro, meu sobrenome pode ser traduzido como Bach. Claro, claro, minha outra encarnação foi na qualidade de parente do Johann Sebastian, limpando o cravo que meu primo tão bem temperava e fazendo outros servicinhos em Brandemburgo, inclusive os que meu talento musical permitia, tais como acionar os foles do órgão da igreja. É, pode ser, pode ser.

     O embarque é anunciado, entro no avião distraído, ainda preocupado com minha elusiva identidade alemã. E me encontrava no século XVIII, num baile em Magdenburg, em vistoso uniforme militar e de olho na bela filha do
Bürgermeister, quando Chica me interrompeu as reminiscências com uma cotovelada.

—Pai, pai, Berlim! Berlim!

    Sim, Berlim! Levantei-me, arrepanhei sacolas e maletas, encaminhei-me de peito erguido para a saída. Berlim, vida nova, a História desenrolando alguns de seus mais empolgantes capítulos à minha frente, glórias e emoções logo ali, a esperar-me de braços abertos.

    
Hélas!— como exclamou Napoleão, no dia em que, em certo prado de Waterloo, tive oportunidade de vê-lo, na minha então condição de alferes de um regimento prussiano. As coisas nem sempre são previsíveis, seja para os Bonaparte, seja para os Bach. E eis que, hoje aqui, pleno residente de Berlim, não disponho de glórias para contar-vos, mas de histórias quiçá melancólicas, tais como a do Tartamudo do Kurfürstendamm, a do Fantasma do Storkwinkel e a do Moscão da Schwarzbacher Straße. Histórias que contaria agora, se me permitisse o espaço, mas que contarei depois, se vos permitir a paciência. Ich bin ein Berliner, como já se disse antes.


Texto extraído do livro "
Um Brasileiro em Berlim", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1995, pág. 11.




quarta-feira, 9 de julho de 2014

Notícia de Jornal - crônica de Fernando Sabino


 





Notícia de Jornal




Fernando Sabino


     Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.

     Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto-Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

     Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

     O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico-Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

     Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

      Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

     E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

     E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da Cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

     Morreu de fome.




Fernando Sabino




In: A mulher do vizinho. 17 ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
In: As Melhores crônicas. Rio de janeiro, Record, 1986.

...

terça-feira, 1 de julho de 2014

no ideas, but images --- poema by LdeM


 



no ideas, but images

penso em imagens
não penso em tempo ou espaço
penso em imagens
não penso em conceitos : mas quadros
uma mão segura uma criança inquieta
um floco de neve flutua na vidraça
o flash do celular-câmera em outro selfie
a moça de cabelo cacheado esboça um sorriso
um guru em lótus digere uma sensação
a jovem dama de cabelo rosa atende ao balcão
um trem descarrilha numa curva nublada
um homem engravatado ergue o telefone móvel
na beira de um lago um iate desliza entre asas
um casal em beijos num carro veloz numa highway
uma nuvem desliza com sua forma de jabuti
dentro de uma trincheira se debate um soldado pálido
um atleta negro dá um tremendo salto
o homem engravatado abaixa o telefone beija um papel
dá um sorriso
manifestantes meio à fumaça entre black blocs
e tropas de choque
no alto do prédio em ruínas um soldado ergue
uma bandeira rubra
um homem sozinho parado estanca uma coluna
de blindados
uma mãe ergue o filho nos braços e solta um gemido
duas notas de dez dólares entregues por uma mão
trêmula sob a mira de uma arma
perto de uma represa um carro derrapa e cai
da ponte
num shopping center uma família mãe pai duas filhas
contemplam uma vitrine
não penso em ideias : coleciono imagens
é quase meia-noite no alto relógio da matriz e dois corpos
se esfregam
dois jogadores disputam a bola no gramado
um jogador se contorce quando a bola sacode a rede
um locutor se esguela ao gritar um urrante gooooool
na fila de banco público um estudante completa as
palavras-cruzadas do jornal
duas mocinhas cintilantes trocam beijos na portaria da
discoteca lotada
um mendigo atravessa a avenida em altos brados
na baía um barco um golfinho dois golfinhos outro barco
vários golfinhos surgem em ondas
um delgado assina inquéritos enquanto um detetive olha
pela persiana
uma cientista anota uma equação hermética num
quadro-negro
nada de hipóteses: somente comprovações
uma risada de criança ecoa no saguão do hotel
um guarda-municipal olha com suspeita a mulher que
reclama da falta de médicos
um motociclista atropela uma idosa e desaparece na
tarde cinzenta
outro motociclista conserva o capacete adentra uma
loja aponta uma pistola
na lotérica um jogador aponta números com a ponta
da caneta
um espectador grita no telefone no pregão da Bolsa
de Valores
os surfistas esbanjam sorrisos num comercial de cigarros
a mãe sorri para a criança rindo e rindo entre as bagagens
um gesto de mulher reclama da demora no atendimento
uma montanha de cadeiras quebradas entulha o depósito
da escola
na baía o rebuliço de golfinhos é filmado no celular da turista
a professora na sala lotada grita sem voz contra dois alunos
em luta livre
a mãe segura firme a criança enquanto atravessa o saguão
de bagagens
um braço agita uma bandeira azul-e-branca na janela
do carro
outro braço se ergue no coletivo e um homem e um menino
se levantam à espera da parada
no altar o noivo contempla os vitrais e espera a noiva
uma jovem mãe troca as fraldas molhadas do bebê inquieto
nenhum dogma além de fotogramas
outro torcedor ergue uma bandeira entre os carros – é
tricolor
uma jovem mascarada acerta uma vidraça com uma
pedrada furiosa
um jato de água bombardeia a rua de barricadas onde
os estudantes fogem
o prefeito se ergue no palanque e inaugura outro viaduto
um garçom desliga os ventiladores de teto e lança um
olhar fatigado
dois moços seguem de bicicleta pela orla da lagoa
poluída
uma fila de automóveis se forma na portaria do jardim
zoológico
na avenida deserta não se vê mais a coluna de blindados
os olhos da lavadeira piscam e brilham nos reflexos
da bica
um helicóptero militar dispara míssil contra um comboio
de rebeldes
nada de axiomas : somente roteiros
um homem de bermuda e um menino de boné lavam
um carro azul diante de uma garagem aberta
carros e mais carros apodrecem num pátio ferruginoso
mais carros criam raízes num congestionamento
descomunal
o choro da criança inquieta a mãe na porta da lanchonete
um guarda suspeita de um vulto atrás de uma cerca
um paraquedista atinge o campo coberto pela lona
verde-azulada
um cientista declama que uma rosa vermelha é de todas
as cores menos vermelha
uma buzina desengonçada proclama o amanhecer
o pé de um semiadormecido procura o chinelo sob a
cama
dois vultos se afastam antes da explosão do caixa
eletrônico
a mãe vem ninar o bebê em prantos no berço rosado
uma atriz morena troca farpas & tapas com uma atriz loira
num programa de auditório
a presidenta discursa em rede nacional a garantir
Bolsa-família e a melhor Copa do mundo
os jogadores cantam o hino nacional com fervor & lágrimas
um dos jogadores não canta o hino nacional
a estudante de mochila colorida perde o ônibus
numa varanda de samambaias uma mulher estende
roupas num varal
as crianças no parque público entregam as pipas multicores
ao vento
os recém-nascidos olham o teto enquanto as mães
descansam
um médico e uma enfermeira abrem a porta da
enfermaria 22
no cemitério-parque quatro homens erguem um caixão
seguidos por familiares
nenhuma teoria: somente materializações
na autoestrada o caminhão-contâiner atravessa o
meio-dia
na praia a menina de óculos-escuros envia torpedo
ao namorado no morro
na zona norte o namorado envia torpedo à mocinha na
zona sul
a dona de casa encara o monitor a calcular suas dívidas
a secretária confere os valores da declaração de
imposto de renda do patrão
o soldado camuflado mira seu alvo enquanto rasteja
um policial arremessa um menino negro para dentro
da rotam
outro policial faz uma revista completa em dois outros
pivetes
o andróide se contempla numa foto de sua infância
inventada
um operário se senta no refeitório e abre o marmitex com
carne & salada
um carro esportivo decola 2 metros numa praia cheia
de dunas
o aguçante solo de guitarra perfura o anoitecer
uma tropa de cavaleiros avança para uma muralha
prateada
um dragão bizarro cuspe fogo sobre uma aldeia medieva
o proclamado rei arranca uma mítica espada de uma rocha
uma descomunal estrela-da-morte desintegra em segundos
um planeta habitado
num duelo de sabres-de-luz um jovem guerreiro perde
a mão
uma nave espacial avança rumo ao planeta vermelho
do meio da quadra o astro do basquete acerta a cesta
um megagrandioso avião comercial decola subindo
para eclipsar o sol
o mafioso sorrindo enquanto espanca a amante seminua
não há ideias : mas películas
um pequeno príncipe aparece num deserto sob a sombra
de um avião em reparos
quatro animais cantores asno cão gato galo se erguem
diante duma janela
um cãozinho perdido transita entre pernas de transeuntes
a criança estende a mão num gesto de fome
um jogador de futebol em sua camisa 10 com novo
penteado sorri para as câmeras
um rojão explode na sombra do estádio efervescente
depois outro
um casal de banhistas tiram as calças jeans e estendem
toalhas na areia
outro garçom desliga a TV e retira a toalha da mesa
mais próxima
um mestre-cuca experimenta um prato depois outro
um homem ergue uma taça e vê através do vinho
diante da tela a pintora contempla girassóis que derretem
nada de conceitos : só aquarelas
no palco o guitarrista ainda viaja num solo de virtuose
no quarto 33 o amante contempla a amante nua
adormecida
o segurança observa a porta da boate lotada
um homem se senta na esquina e delira na rua vazia
um helicóptero sobrevoa a cidade administrativa
bloqueada por barricadas
na praia o homem sem camisa troca olhares com a
surfista ao lado
na montanha o homem barbado escala perde o equilíbrio
quebra a perna
há promessa de violência no punho erguido do segurança
do outro lado da avenida a tropa de choque se forma
e avança
outro rojão explode acima da onde verde-amarela de
torcedores
nenhuma metafísica : apenas cenários.



26&28jun14



Leonardo de Magalhaens





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