segunda-feira, 16 de junho de 2014

Eugenio Montejo - No Pavilhão dos Prematuros [poema]






EUGENIO MONTEJO 


(Venezuela, 1938-2008)



Tradução de Floriano Martins


 

NO PAVILHÃO DOS PREMATUROS

I

Caíram de algum salto de Deus,
sem outro grito que o desejo de ver o mundo,
de nos acompanhar no tempo da terra.
Caíram de si mesmos, de suas sombras;
algo que viram os fez anteciparem-se,
algo invisível a nossos olhos, salvo em sonhos,
porém que nos ilumina por dentro e fora,
incólume ao curso das horas e dos astros.

 
II

Chegaram sozinhos ou veio alguém com eles,
alguém, além da vida,
como impalpável raiz, como substância?
Ao longe se veem árvores mudas
e luzes pálidas que vertem
sobre os muros seus enigmas intactos.
As janelas estão cheias de noite
e a noite de névoas indecifráveis.
Se alguém os trouxe, não restam rastros;
pode estar nas lâmpadas, e é sombra,
no silêncio, e é palavra.
De muito longe veio o lume de seu grito,
prolongando o relâmpago que somos
nesta terra onde ninguém sabe nada.

 
III

Os pais velam em um silêncio branco
e ficam absortos olhando em seus corpos
algo remoto, um acúmulo de luz que se amontoa,
uma constelação que nasce.
Podem apalpar seus rostos, porém estão longe;
tocam seus pés, suas mãos, sem alcançá-los;
seus corações pulsam ainda fora do mundo,
à velocidade de horas futuras,
em outro tempo, em um país longínquo...

 
IV

E as cegonhas? E os sons secos
quando sacodem o bico das cegonhas?
Já ninguém recorda sua fábula,
nenhuma pode trazer-nos o que nasce.
Apenas estas lâmpadas hieráticas nos restam
que noite a noite se acendem e se apagam
com obstinada rotina tênue.
Porém não voam,
jamais viram suas asas no ar.
São apenas lâmpadas.
E quando se derramam cresce uma névoa fria
como as plumas que saem de um espelho
e arrasta o vento ao fundo da rua.

 
V

Me inclino a ver em uns olhos
recém abertos, cheios de outro mundo,
seu primeiro grito diante do mistério.
Ao fundo surge de imediato o rosto meu,
cinquenta anos atrás, com meus pais ao redor,
enquanto a noite cai sobre a sala
com um opaco sussurro de enfermeiras...
Não sei por onde entra o ontem. Minha poesia
está escrita no assombro desses olhos;
posso ler cada palavra em suas retinas,
com minhas horas de lâmpada, minhas viagens,
linha por linha sem que falte uma letra.

 
VI

As mães entram e saem da névoa
que a insônia acumula entre suas pálpebras.
O tempo é quase táctil ante sua angústia;
contam as horas como gotas de sangue.
A noite as envolve e não adormecem,
vão ficando mudas como pedras
à margem de um rio de olhos velozes
que não termina nunca de passar,
porém seu grito retumba em outra parte.

 
VII

Anteciparam-se ao voo de sua sombra,
aos relógios que guardam o futuro.
Estará aqui o que sonharam, o que sonham?
Que reino buscam para chegarem tão rapidamente?
Ainda não respiram sem ajuda,
o pulso se acelera inatingível,
e em sua pele restam marcas de outros astros,
manchas de Sírio, sombras de Saturno,
luas remotas que vemos em tatuagens.
Anteciparam-se tanto que esta noite,
enquanto ao lado de seu sonho vou e venho,
temo ser um fantasma falando só,
alguém que é pó e esteve aqui e não sabe
onde termina a redondeza do tempo.

 
VIII

Impetuosos, velozes, a tempo ou não,
ainda titilante seu lume de centelha,
já estão aqui após a longa viagem.
Nenhum ignora antes de abrir os olhos
que veio à terra para estar de guarda.
Por mais que dure a noite nas ameias
e friccione o vento seus ecos nos muros,
ao nascer trazemos tão somente uma vida:
- nossa sombra é a única muralha.
Todo o resto, até o fim, é a vigília
e o grito de alto! que nos ouvem as horas
sem que nenhuma se detenha um instante.

 






__________
Obra poética
Elegos. Editorial Arte. Caracas. 1967.Muerte y memoria. Universidad de Carabobo. Caracas. 1972.Algunas palabras. Monte Ávila Editores. Caracas. 1976.Torredad. Monte Ávila Editores. Caracas. 1978.Trópico absoluto. Fundarte. Caracas. 1982.Alfabeto del mundo. Fondo de Cultura Económica. México. 1986.Adiós al siglo XX. Ediciones Aumaría. Caracas. 1992.


...

Nenhum comentário:

Postar um comentário