ELE
SÓ QUERIA SUBIR NA VIDA
conto by
LdeM
É,
moço, ele queria subir na vida, eu sei, via o Joel lá no depósito,
depois servindo as pizzas,
lá com o Ricardo, você conhece, até na faxina, ele lá no batente,
e depois a tarde toda lá no depósito do tio, é, do Seu Terêncio,
que é lá de Amarantes igualzinho ao Joel, a família do pai é toda
de lá, acho que é pros lados do Espírito Santo, ai, que Deus o
tenha, agora aí, deitado assim, parece que tá dormindo, né?, nem
acredito, a gente fica assim, meio baqueada, sou nada dele não, nem
amiga, só prosa mesmo, sou da idade dele, minha mãe lava roupa pro
Seu Terêncio, o do depósito, e a casa dele é em cima, é um
sobradão, dois andares, lá encima ainda uma varandona, para secar
roupa, é lá no asfalto, na entrada da comunidade, naquela rua que
os polícia bloquearam, chegaram lá atirando, o moço sabe, não viu
no jornal da TV?, naqueles noticiários de caras engravatados
xingando os bandidos e querendo mais polícia, e mais polícia, mas
na porta deles não, né?, no morro, na comunidade,
eles querem mais fardado, tudo atirando na gente, e é isso, é
naquela rua, que desce até o depósito, onde o Joel trampava depois
do almoço até a hora que o tio descia, e fechava logo depois, nunca
ficava aberto até sete, lá muito escuro, ele, o tio, foi roubado
duas vezes, é, os manos do crack, claro, nem conversam, prosa
nenhuma, só a arma na sua cabeça, sabe como é, já foi assaltado,
né?, não?, sorte sua, hein!, pois é, eu via o Joel saindo do
colégio, aquele municipal lá perto do lixão, é grande, tem uma
quadra, e lá nos fundos os manos com os cachimbo, e lá toda manhã,
o Joel pra formar o fundamental, ele lá com quase uns vinte, mas
atrasadão, é que ficou na roça, com família lá, no roçado, um
tempo sem estudar, antes de morar com o tio aqui, sem estudar lá,
uns três anos, acho, né?, mas ele queria subir na vida, daí o
lance é estudar, moço, nada de matar aula, eu sei, minha prima
estuda lá, diz que ele nem matava aula, ela sabe, 'tava de olho,
sabe?, ela 'tava afim dele, ela tem dezesseis, tinha um namorado, mas
ele ficava noiado,
ficando com umas vadias, aí, a Angela, ela 'tava de olho nele, no
Joel, por isso eu lembrava dele, lá na pizzaria, a Angela não foi,
mas eu lembrei, ele falava pouco, servia direitinho, anotava tudo,
carregava os refri, a cerveja no ponto, e tudo direitinho, e não
rusgava, nem quando criavam caso, os caras, uns barra-pesada, até
aporrinhavam, mas ele na dele, pelo menos nas vezes que eu fui lá, a
Angela também queria ir, mas aí, tudo isso, ela nem sentiu ainda,
ela tava afim, claro eles tinham nada, nem sabia da Angela, toda
caída por ele, mas, quem sabe?, de repente, aí ele meu parente,
então a gente sente.
E
então ele aí, deitado, pudia 'tá dormindo, mas os fardado não
perdoam, né?, até que se ele fosse um bandido, um maninho fumando
crack atrás do colégio, mas ele só queria subir na vida, estudava
pra caramba, né?, até no balcão lá no depósito, estudava os
cálculos, as equação, eu fui buscar roupa outro dia mesmo, e ele
'tava com uma tabela daquelas de Química, hidrogênio, oxigênio,
alcalinos, gases nobres, estas coisas, ele adorava estas coisas de …
exatas, acho que era fraco em português, redação, mas ele era
cobra-criada em equação, reações, fusão, ebulição, essas
coisas, será que ele seria cientista?, aqueles caras que fazem
sabão, xampu?, pois é, não vai dar mais, né?, estudar o quê?,
hein?, a química do solo?, não brinca não, moço, a vida é dura,
aqui morre gente quase todo dia, é bala riscando pra todo lado,
salve-se quem puder, bandido e gente de bem, maninho e trabalhador,
tudo na mira, é preto é branco, morre um quase todo dia, e o cara
estudando, dando duro, no esforço e acaba assim!, a gente estuda
muito, o colégio é péssimo, tem que fazer ENEM, tem que aparecer
bonito na fita, pra gringo ver, igual time na Copa, sorrindo pra
câmera, e vem os fardado e mão na cabeça, não pode olhar as
autoridades, falam alto, passam a mão nas meninas, descem a mão nos
manos, salve-se quem puder, quem tem cabeça obedece, senão leva
tiro nas costas, somem com o corpo, ninguém acha mais, acabou, e a
gente não passa no vestibular, não arruma emprego, se vira com
pouco, com as migalhas dos ricaços, lava a roupa, vende chiclete nos
coletivos, toma conta de carro, se vira, né?, igual ao Joel,
estudando, aguentando o tio, que fala alto, mais patrão que tio,
achando que faz favor ao Joel, e agora aí pagando tudo, olhe quanta
flor, olhe a madeira o verniz brilhando, ele gastou, agora não
adianta, tinha que ajudar o Joel antes, não implicando tanto, quase
batendo boca, fazendo ele carregar saco de cimento, pilha de tijolo,
e rasgava os dedos com arame farpado, e rodava as caixas d'água, e
cortava a lona, e o Joel lá calmo, não rusgava, e reagia o tio
chamava de malcriado, de ingrato, como se ele fosse escravo do Seu
Terêncio, sempre colocando defeito, acho que ele queria mesmo é que
o Joel desistisse e voltasse para Amarantes, pro roçado, e nem
estudasse, né?, o tio nem estudou, devia ter inveja, né?, tinha
casa e depósito, mas estudo nenhum, só aí na lida, de pedreiro,
mestre-de-obra, braço-direito de engenheiro lá do asfalto, que
chegava aqui de carrão, e aí o Seu Terêncio subiu na vida, pegando
pesado nas obras lá no asfalto, pros lados do lixão, só na massa,
rachando o pé, pois é, minha mãe me conta tudo, lava roupa pra
família dele, conhece a mulher dele, a dona Celestina, ela é aqui
da comunidade, tratava bem o Joel, sem rusgar tanto, ele não era de
bagunça, ficava pouco em casa, e quando 'tava lá ninguém notava,
ele não fazia caso, nem aparecia, nada de música alta, ele nem
gostava de ouvir música, sabe?, o Joel só dava as caras pra
almoçar, tomar banho, essas coisas, não incomodava, a dona
Celestina nunca reclamou dele pra minha mãe, sabe?
Pois
é, acho que o Joel só gostava mesmo era de futebol, bater uma bola,
torcer pro Galo, ver uns jogos lá no Independência, vez ou outra ia
com o meu irmão Jonas lá pro Horto, o meu irmão é mais fanático
ainda, só fala de bola, craque, campeonato, só isso, não quer
estudar, só isso de futebol, de pular catraca, de surfar encima de
busão lotado, de apanhar de cruzeirense, só isso, nisso ele é bem
outro, nada a ver com o Joel, os dois só eram amigos no lance da
bola, de jogar na quadra, nos fundos da escola, lá onde os manos
acendem os cachimbo, lá os dois com camiseta de seleção, Neymar,
Huck, David Luiz, Ronaldinho Gaúcho, esses craques de bola, que
ganham milhões, e os manos lá, e os dois batendo bola, sem neura,
né?, ninguém embaçava, tudo na camaradagem, que meu irmão é
viciado em bola, não bagulho, e o Joel passava longe, sabe?, nem
baseado, então veja a injustiça, moço, ele nem tinha bagulho e os
tiras apagaram ele, desceram no morro, só tiro, tiroteio feio, moço,
e a gente se joga no chão, debaixo das camas, e bala furando
vidraças, vazando cortinas, queimando a muleira de menino dormindo,
e o Joel 'tava indo pra pizzaria, onde o Ricardo abre às sete, pros
motoqueiros fazerem as entregas, e então era sexta, né, sexta
passada, é, liberaram o corpo só ontem, domingão, então na sexta,
os fardado desceram atirando, o Joel se assusta, né, não sabia o
que fazer, eu acho, e deve ter se agachado, ou corrido pro canto, ou
se escondido, mas os tiras aqui nem querem saber, confundiram ele com
os manos, o Joel de jaqueta, sem boné, só jeans e tênis, que ele
colocava sapato só lá na pizzaria,
e um avental branco, tudo de higiene, que o Ricardo é exigente, sei
disso, já fui muito lá na pizzaria, o Ricardo me conhece, e já
fiquei com o irmão dele, na festa junina, tomamos altos quentão lá,
mas aí, na sexta, quase sete horas, já escurão, as rotam parando,
os polícias gritando, parando os manos, o Joel saindo, ele não deve
ter parado, ou então ia dizer algo, ou se defender e aí aconteceu,
né, a tia dele até ouviu os tiros, nem sabe quantos, ele saindo pra
pizzaria, 'tava nem um ano aqui, a maior amizade com o Ricardo, que
tratava ele melhor que o próprio tio, tudo indo bem, né, minha
prima, a Angela achando ele o maior bom partido, rapaz que batalhava
mesmo, não ficava aí à toa, fumando, vagabundando aí, que nem o
Valdo, que pegava minha prima, que nem o Jonas, meu irmão, que fazem
nada, enquanto o Joel, morto aí, tiro nas costas, bala de polícia,
o Joel aí, moço, só queria era subir na vida.
18/19jun14
Leonardo
de Magalhaens
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