Sobre
a poética de Luís Miguel Nava
in
O
Céu sob as Entranhas
Obsessões
e Imagens Surrealistas na Poética Visceral de Nava
Leonardo Magalhães
Fale – UFMG
A
riqueza da poética do português Luís Miguel Nava está nos
excessos. Há um excesso de vísceras e entranhas, embrulhadas em
obsessões. Imagens excessivas que desafiam nossa lógica
insuficiente. Uma necessidade de desabafar obsessões em repetidas
imagens ao estilo surrealista, isto é, carregadas de nonsense,
junção de opostos, cortes e sobreposições, em sinestesias
sugeridas por metáforas exageradas.
Algo
de um simbolismo não-discursivo, onde fala de uma coisa se referindo
a outra (roupa e pele, estacas e ossos, p.ex.), em um expressionismo
de imagens deformadas por desejos repetidos, delírios que buscam
corporificações, em ossos que são estacas, em águas que arrebatam
avassaladoras, onde os sentimentos se atropelam, das trevas para a
luz, órgãos expostos, em entranhas que se exibem.
Em
presenças obsessivas surgem pele e ossos, vísceras em sangue,
tecidos esticados, corpos recortados, como nas poéticas
expressionistas dissecadoras de um Gottfried Benn, ou de um Augusto
dos Anjos. O corpo sem alma, como uma carne tão nossa e mesmo tão
estranha, um familiar que é desconhecido, em tom de pesadelo que não
finda, mas migra de poema em poema, numa gradação obsessiva. Os
nervos expõe a tormenta interior, a hemorragia é o transbordar de
um mar interno, quando o poeta ousa mergulhar em si-mesmo, a adentrar
os poros.
Pois
a “nossa
anatomia é uma terra enigmática e longínqua”
quando o poeta se assusta com a possibilidade de “ver
na rua um osso ou um órgão meu”
em seu longo poema em prosa “A
Cor dos Ossos”
numa verdadeira dissertação lírica sobre a estranheza que é ter a
consciência de um corpo. Pois a consciência nasce justamente desta
percepção, uma vez que segundo o filósofo Espinosa (1632-1677),
sem transcendências, a alma é a ideia que o corpo tem sobre
si-mesmo.
O
corpo que é liricamente dissecado em imagens fortes, surrealistas,
tais como ossos que são estacas fincadas no deserto,
Os
meus ossos estão espetados no deserto, não há
um
só no meu corpo que lhe escape.
Cravados
todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos
outros, alinhados.
(Estacas)
tais
são os ossos ocultados sob a pele, uma roupa que nos reveste,
estendida sobre nosso corpo estranho que é e não é a nossa
identidade. Somos um corpo ou estamos numa corpo? Alma e corpo são
aspectos da mesma coisa? Ou há mesmo um dualismo mente X corpo, ou
espírito X carne, como professam as religiões espiritualistas?
Afinal, trata-se de um sujeito lírico que sonda as “profundidades
da alma”
encarcerado num corpo de sombras e memórias.
os
ossos se poderem refugiar, em certos casos, na memória, como se esta
os absorvesse e quem por eles fosse constituído então se
invertebrasse ou reduzisse a um mero filamento onde assentasse a
carapaça da memória, no interior da qual o corpo inteiro se
engolfasse até completamente se sumir.
(A
Cor dos Ossos)
A
alma é uma percepção e o corpo é uma densidade, materialização
de sentimentos, que são enraizados, profundamente, então
dissecados, obsessivamente, sem respostas, apenas mais desassossego,
como se fossem as “cordas
do nosso espírito esticadas num terraço”
(Paisagem
Citadina),
quando as entranhas são o campo de batalha de trevas e luz, águas e
lembranças, sendo que real e simbólico se mesclam em obsessões.
Mesmo
a escrita é problematizada, vista como inviável, como deformada,
nunca desfazendo as trevas internas, nunca realmente mergulhando em
busca de luz. Que luz? “A
luz que desse sangue irradiava”
ou “a
luz que das vísceras emana”
(Matadouro)
em colagem de opostos, pois as entranhas são o local da escuridão,
do desconhecido, do inenarrável.
Nos
poemas em prosa Insónia
e
Os Ossos
temos as tentativas de poemas com narrativas, onde sujeitos se
deparam com forças insondáveis, a presença do corpo que abriga
consciência, que é habitado por pesadelos de dissecação, de
desmembramento, como se submetido a uma pressão de dissociação,
quando o corpo sem a alma é mera carne a ser pendurada, retalhada,
exposta.
[…]
esses ruídos lhe chegarem como vindos de dentro de si próprio,
de
dentro desse coração a que os sentidos pareciam encostar-se, e,
mediante uma identificação entre o espaço e o tempo a que a
escuridão também era propícia, se lhe apresentarem como
provenientes duma época remota, tão distante do presente como da
sua cama o inimaginável troço de estrada ou de linha férrea donde
a espaços irrompiam. (Insónia)
Afinal,
não temos controle sobre o corpo, nem vivos nem mortos. As vísceras
funcionam involuntariamente, seus movimentos peristálticos
constantes sem a nossa consciência. E ainda mais quando o corpo é
cadáver. Não é mais um eu, uma alma, ou consciência, mas é uma
coisa (quando o Eu também
se coisifica),
a ser examinada e sepultada. Não temos domínio sobre o nosso corpo
após a more, que destinação terá, se um laboratório, ou um
túmulo, ou forno crematório.
O
corpo, presente em toda a poética de Nava, é uma materialização e
uma densidade, um cárcere e um objeto de desejo, e uma profunda
obsessão ao ponto de alucinação, com suas metáforas exageradas,
como bem aponta o autor Moisés David Sousa Gomes Ferreira, em seu
artigo Luís
Miguel Nava e o espaço do corpo em O
Céu Sob as Estranhas,
de 2009,
As
descida que se opera ao universo visceral será um passo
recorrentemente dado no caminho que a poesia de Luís Miguel Nava
percorre, caminho de procura e sondagem de um conhecimento essencial
em que, pela via de um peculiar, profuso e explosivo trabalho
metafórico, se diluem as fronteiras entre sentidos/razão,
sensível/abstracto, sensorial/espiritual. […] Este processo
[trabalho metafórico] caracteriza-se pelo estabelecimento de uma
relação de proximidade entre universos semânticos aparentemente
afastados, originando efeitos por vezes desconcertantes.” (2009, p.
3)
Em
alucinações na obsessiva ruminação de ter
um corpo ou ser
um corpo, o sujeito busca símbolos para expressar seu desassossego,
em repetições que levam ao mesmo ponto de partida, com sua
duplicidade,
matéria-consciência, sua descoberta/ocultação, sua razão
insuficiente, com os opostos em tensionamento até às imagens
surrealistas. Assim a pele é uma bandeira hasteada, ou uma partitura
para os ossos, e ossos que são estacas cravadas, enquanto o espírito
tem cordas esticadas, e a carne atrai as estrelas, e os órgãos
podem ser expostos na rua, há uma luz que vaza das vísceras.
Obsessivamente,
o sujeito que é corpo, e divaga sobre o corpo, adentra o universo da
linguagem como única forma de exteriorizar
o
abismo de suas entranhas. Ele disseca a si mesmo nas páginas, em
escrita árida, difícil, ansiosa, turbulenta, desconcertante. Por
isso voltar-se tanto para o trabalho com a linguagem, a labuta, em
tanta metapoética.
O sujeito-poeta tem algo urgente a dizer, mas é quase inviável.
Muitas vezes não é possível entender. Mas a poesia sincera, a real
poesia, é capaz de comover antes mesmo de ser compreendida. Em
matéria de poesia visceral é mais questão de sentir do que de
raciocinar.
Referências
FERREIRA,
Moisés David Sousa Gomes. Luís
Miguel Nava e o espaço do corpo em O Céu Sob as Estranhas. Artigo.
2009.
NAVA,
Luís Miguel. Poesia
Completa (1979-1994).
Lisboa: D. Quixote, 2002.
SOUSA,
Carlos Mendes de. A
coração das vísceras. Representações do Avesso na poesia de Luís
Miguel Nava.
Universidade do Minho. Artigo.