segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Obsessões e Imagens Surrealistas na Poética Visceral de Miguel Nava



 






Sobre a poética de Luís Miguel Nava


in O Céu sob as Entranhas





Obsessões e Imagens Surrealistas na Poética Visceral de Nava




Leonardo Magalhães
Fale – UFMG


      A riqueza da poética do português Luís Miguel Nava está nos excessos. Há um excesso de vísceras e entranhas, embrulhadas em obsessões. Imagens excessivas que desafiam nossa lógica insuficiente. Uma necessidade de desabafar obsessões em repetidas imagens ao estilo surrealista, isto é, carregadas de nonsense, junção de opostos, cortes e sobreposições, em sinestesias sugeridas por metáforas exageradas.

      Algo de um simbolismo não-discursivo, onde fala de uma coisa se referindo a outra (roupa e pele, estacas e ossos, p.ex.), em um expressionismo de imagens deformadas por desejos repetidos, delírios que buscam corporificações, em ossos que são estacas, em águas que arrebatam avassaladoras, onde os sentimentos se atropelam, das trevas para a luz, órgãos expostos, em entranhas que se exibem.

      Em presenças obsessivas surgem pele e ossos, vísceras em sangue, tecidos esticados, corpos recortados, como nas poéticas expressionistas dissecadoras de um Gottfried Benn, ou de um Augusto dos Anjos. O corpo sem alma, como uma carne tão nossa e mesmo tão estranha, um familiar que é desconhecido, em tom de pesadelo que não finda, mas migra de poema em poema, numa gradação obsessiva. Os nervos expõe a tormenta interior, a hemorragia é o transbordar de um mar interno, quando o poeta ousa mergulhar em si-mesmo, a adentrar os poros.

       Pois a “nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua” quando o poeta se assusta com a possibilidade de “ver na rua um osso ou um órgão meu” em seu longo poema em prosa “A Cor dos Ossos” numa verdadeira dissertação lírica sobre a estranheza que é ter a consciência de um corpo. Pois a consciência nasce justamente desta percepção, uma vez que segundo o filósofo Espinosa (1632-1677), sem transcendências, a alma é a ideia que o corpo tem sobre si-mesmo.

      O corpo que é liricamente dissecado em imagens fortes, surrealistas, tais como ossos que são estacas fincadas no deserto,

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
                         (Estacas)

 
tais são os ossos ocultados sob a pele, uma roupa que nos reveste, estendida sobre nosso corpo estranho que é e não é a nossa identidade. Somos um corpo ou estamos numa corpo? Alma e corpo são aspectos da mesma coisa? Ou há mesmo um dualismo mente X corpo, ou espírito X carne, como professam as religiões espiritualistas? Afinal, trata-se de um sujeito lírico que sonda as “profundidades da alma” encarcerado num corpo de sombras e memórias.

os ossos se poderem refugiar, em certos casos, na memória, como se esta os absorvesse e quem por eles fosse constituído então se invertebrasse ou reduzisse a um mero filamento onde assentasse a carapaça da memória, no interior da qual o corpo inteiro se engolfasse até completamente se sumir. (A Cor dos Ossos)

       A alma é uma percepção e o corpo é uma densidade, materialização de sentimentos, que são enraizados, profundamente, então dissecados, obsessivamente, sem respostas, apenas mais desassossego, como se fossem as “cordas do nosso espírito esticadas num terraço” (Paisagem Citadina), quando as entranhas são o campo de batalha de trevas e luz, águas e lembranças, sendo que real e simbólico se mesclam em obsessões.

      Mesmo a escrita é problematizada, vista como inviável, como deformada, nunca desfazendo as trevas internas, nunca realmente mergulhando em busca de luz. Que luz? “A luz que desse sangue irradiava” ou “a luz que das vísceras emana” (Matadouro) em colagem de opostos, pois as entranhas são o local da escuridão, do desconhecido, do inenarrável.

      Nos poemas em prosa Insónia e Os Ossos temos as tentativas de poemas com narrativas, onde sujeitos se deparam com forças insondáveis, a presença do corpo que abriga consciência, que é habitado por pesadelos de dissecação, de desmembramento, como se submetido a uma pressão de dissociação, quando o corpo sem a alma é mera carne a ser pendurada, retalhada, exposta.

[…] esses ruídos lhe chegarem como vindos de dentro de si próprio,
de dentro desse coração a que os sentidos pareciam encostar-se, e, mediante uma identificação entre o espaço e o tempo a que a escuridão também era propícia, se lhe apresentarem como provenientes duma época remota, tão distante do presente como da sua cama o inimaginável troço de estrada ou de linha férrea donde a espaços irrompiam. (Insónia)

 
     Afinal, não temos controle sobre o corpo, nem vivos nem mortos. As vísceras funcionam involuntariamente, seus movimentos peristálticos constantes sem a nossa consciência. E ainda mais quando o corpo é cadáver. Não é mais um eu, uma alma, ou consciência, mas é uma coisa (quando o Eu também se coisifica), a ser examinada e sepultada. Não temos domínio sobre o nosso corpo após a more, que destinação terá, se um laboratório, ou um túmulo, ou forno crematório.

       O corpo, presente em toda a poética de Nava, é uma materialização e uma densidade, um cárcere e um objeto de desejo, e uma profunda obsessão ao ponto de alucinação, com suas metáforas exageradas, como bem aponta o autor Moisés David Sousa Gomes Ferreira, em seu artigo Luís Miguel Nava e o espaço do corpo em O Céu Sob as Estranhas, de 2009,

As descida que se opera ao universo visceral será um passo recorrentemente dado no caminho que a poesia de Luís Miguel Nava percorre, caminho de procura e sondagem de um conhecimento essencial em que, pela via de um peculiar, profuso e explosivo trabalho metafórico, se diluem as fronteiras entre sentidos/razão, sensível/abstracto, sensorial/espiritual. […] Este processo [trabalho metafórico] caracteriza-se pelo estabelecimento de uma relação de proximidade entre universos semânticos aparentemente afastados, originando efeitos por vezes desconcertantes.” (2009, p. 3)


      Em alucinações na obsessiva ruminação de ter um corpo ou ser um corpo, o sujeito busca símbolos para expressar seu desassossego, em repetições que levam ao mesmo ponto de partida, com sua duplicidade, matéria-consciência, sua descoberta/ocultação, sua razão insuficiente, com os opostos em tensionamento até às imagens surrealistas. Assim a pele é uma bandeira hasteada, ou uma partitura para os ossos, e ossos que são estacas cravadas, enquanto o espírito tem cordas esticadas, e a carne atrai as estrelas, e os órgãos podem ser expostos na rua, há uma luz que vaza das vísceras.

      Obsessivamente, o sujeito que é corpo, e divaga sobre o corpo, adentra o universo da linguagem como única forma de exteriorizar o abismo de suas entranhas. Ele disseca a si mesmo nas páginas, em escrita árida, difícil, ansiosa, turbulenta, desconcertante. Por isso voltar-se tanto para o trabalho com a linguagem, a labuta, em tanta metapoética. O sujeito-poeta tem algo urgente a dizer, mas é quase inviável. Muitas vezes não é possível entender. Mas a poesia sincera, a real poesia, é capaz de comover antes mesmo de ser compreendida. Em matéria de poesia visceral é mais questão de sentir do que de raciocinar.




Referências


FERREIRA, Moisés David Sousa Gomes. Luís Miguel Nava e o espaço do corpo em O Céu Sob as Estranhas. Artigo. 2009.

NAVA, Luís Miguel. Poesia Completa (1979-1994). Lisboa: D. Quixote, 2002.

SOUSA, Carlos Mendes de. A coração das vísceras. Representações do Avesso na poesia de Luís Miguel Nava. Universidade do Minho. Artigo.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

2 poemas de Ronaldo Werneck





RONALDO WERNECK


NOVA YORK

só num canto de loja distraído
esquecido numa rua do soho

a lupa no olho o relojoeiro
escuta o bater-rebater do mundo

e nos conduz sós ao topo do tempo
de seu consumo templário templo

fora do céu o skyline aqui está
tombando sol horizonte às avessas

a noite desce e escorre pelo mundo
nenhum barulho nem tampouco medo

do alto do império são formigas
as gentes grandes carros de brinquedo

o tempo nas mãos do relojoeiro
nada tem de sólido ou partido

tem 'pó esse mecanismo do mundo
mas nada de parado nem perdido



                           Nova York
                           maio de 2014








TEMPO EM TRÊS TEMPOS

Seja sábio, beba logo esse seu vinho
e trague a esperança para onde estamos,
mesmo agora, enquanto de nós nos falamos,
o tempo ciumento nos está fugindo.
Horácio By RW


1 .TEMPOEMA

no espaço do quarto
campo-fundo universo
tempo de onde parto

largo tempo largo
espaço de meu canto

um tempo-espaço avesso
de mim exíguo verso



2 .POEMA CINEMAR

o metro o cine copacabana e o mar
o rio pomba o nelo e o edgard

lá as salas de ar chiquê
as cançonetas derradeiras

cá não se ouve nem se vê
cenas de pulgas e poeira

metro mundo de lá
mundo metro de cá



3 .TEMPO ARREDONDADO

menino na janela
saia redonda alçar
a moça na calçada
o seu arredondar

tempo por trás do tempo
arredondadas formas
anos cinquenta e tanto
e lá vem ela e o vento

salta suave o espanto
um sôfrego apontar
saia rotunda saia
o seu arredondar

nesga uma só nesga
um quê de arredondada
saia ponta de perna
um tempo de si mesma

o menino se esconde
nele de si vexado
para dentro de si
de si ensimesmado

da janela o menino
redonda moça vê
ela a passar e o tempo
a passar atrás dela







                    in: o mar de outrora & poemas de agora / 2014








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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Romance Biográfico cria a personagem Augusto dos Anjos



 

Sobre o Romance A Última Quimera [1995]
de Ana Miranda

Romance Biográfico cria a personagem Augusto dos Anjos

Leonardo Magalhães
Fale - UFMG


       Augusto dos Anjos (1884-1914) nasceu na província da Paraíba, num engenho em decadência, de onde saiu para Recife, onde estudou Direito. Era um ser profundamente hipocondríaco, e acabou por morrer jovem, aos 30 anos, de pneumonia (e não tuberculose, como acreditam). Somente publicou um livro quando vivo, o hoje aclamado Eu (1912), a transbordar de ceticismo, pessimismo, melancolia e revolta.
 
        A poética de Dos Anjos não se encaixa em rótulos, os estilos de época. Em seus poemas há um formalismo parnasiano, com belos sonetos, cuidadosamente compostos, e há uma temática, até mesmo um vocabulário cientificista, a lembrar o naturalismo. Temos uma exploração sonora e imagética que lembra o simbolismo, com suas sugestões, mas há um exagero de deformações que é expressionista. A 'atmosfera' criada é do decadentismo, enquanto sua verve transgressora é de vanguardista pré-modernista.
 
          Tão difícil quanto situar a poética de Dos Anjos, é compreender a figura do escritor. Filho de latifundiários decadentes, estudioso voraz de filosofias e ciências, emocionalmente introvertido, tímido mas com traços de megalomania. Ele passou por sua época a colher somente incompreensões e injustiças. Estava além de rótulos.
 
           Outras figuras da nossa literatura não servem aos rótulos, nem foram compreendidas quando escreviam. Assim aconteceu com Raul Pompeia (1863-1895), Sousândrade (1832-1902), Pedro Kilkerry (1885-1917) e não foi diferente com Dos Anjos. Pouco sabemos sobre suas vidas, e faltam biógrafos interessados. Necessárias as biografias que apresentem um contexto para os textos.
 
            Afinal, o que é a biografia senão um relato de uma vida? Um gênero entre o factual, o documental, e o artístico, o ficcional. Em sua forma de buscar coerência, narratividade, uma unidade na multifacetada personalidade biografada, a biografia tende ao caricatural, a reduzir a densidade do vivido a um relato.

         Por seu caráter de 'narrar uma vida' a biografia muito se aproxima dos romances, aqueles que abarcam toda uma existência, do berço ao túmulo (from the cradle to grave), com o desenvolvimento dos protagonistas, como são os romances de formação (Bildungsroman), os romances de geração, testemunhos de uma época, muitos ao estilo roman à clef, com os nomes das personalidades ocultadas por pseudônimos, e os romances autobiográficos, declarados assim, ou não, com nomes reais ou fictícios.
 
           Mais do que se aproximar, o gênero biográfico compartilha características de romance, com uma narratividade intrínseca, em seleção e recriação de episódios, a partir de dados e depoimentos, com um ordenamento que não é do factual, mas da produção ficcional. A diferença fundamental é que ao gênero biográfico importam dados extratextuais, se possível cartas, documentos, arquivos, etc, que emprestem referencialidade.
 
         Considerando que toda biografia é romance, como defendem Roland Barthes e François Dosse, um romance que não se assume, com sua pretensa referencialidade, melhor seria ler um romance biográfico, que se assume sua ficcionalidade e oferta ao leitor marcantes fragmentos da vida das personagens, que se baseiam em personalidades. Assim o que são chamados de 'biografemas'.
 
           Para transformar a personalidade em personagem, para preencher as lacunas das referências com biografemas, a autora usa um narrador que tudo sabe da vida do 'poeta do hediondo', pois trata-se de um amigo que compartilhou a infância, visitante assíduo, sujeito familiar, um homem obcecado pelo talento e pela tragédia do outro, como um Dr. Watson obcecado por Sherlock Holmes, na série de Sir Conan Doyle. O narrador recria várias cenas e diálogos a partir de cartas, trechos de poemas, obras lidas, tomos de filosofias, notícias, depoimentos de contemporâneos.
 
             Cenas são recriadas com toques de ficção, pois é abertamente um romance. Ao saber da morte de Augusto dos Anjos, dois amigos do falecido poeta andam pelo centro histórico do Rio de Janeiro e se encontram com o famoso 'Príncipe dos Poetas' Olavo Bilac. Este ao saber da morte, curioso, quer ouvir um poema do falecido, mas ao fim desdenha, “Se quem morreu é o poeta que escreveu estes versos, então não se perdeu grande coisa.” No romance A Última Quimera o narrador (cujo nome jamais sabemos) é quem conversa com Bilac, é quem declama um outro poema, mas ouve o mesmo tom de desprezo. O poeta das cenas funéreas não foi bem recebido em sua época.
 
             A época que é cuidadosamente reconstituída, no melhor estilo do romance histórico, com o fim da Monarquia, e o estabelecimento da República no Brasil, com as revoltas e mudanças culturais, a modernização e as epidemias, a influência francesa e as querelas literárias. É uma época de transição, quando o parnasianismo e o simbolismo deixam o palco para os estilos agrupados no rótulo 'pré-modernismo', entre realismo e decadentismo. Apenas uma década após o lançamento de Eu acontece a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. As vanguardas chegam aos palcos da metrópole.
 
             Baseados em muitos poemas de Dos Anjos, os diálogos se estendem entre ciência e filosofia, em questões existenciais e metafísicas, com o ser humano consciente de sua finitude, de sua degradação, rumo ao nada. São as personagens num drama trágico, entre enfermidades e perdas, num clima de fatalidade que preenche as páginas. Personagens sofrem com doenças, perversões, solidão, misantropia, falta de reconhecimento. Todas giram em torno de Augusto dos Anjos, a personalidade inalcançável, indescritível, uma vez que confunde qualquer perspectiva de rotulação. Aliás, questões discutidas: qual o estilo do autor? A qual escola pertenceria? Como ler sua obra?
 
             Para melhor situar a poética de Dos Anjos, o narrador tece comparações entre os poema do falecido amigo e do reconhecido Bilac, fina-flor do estilo parnasiano, que abomina referências ao corruptível e se perde em olhares para as estrelas. Situa por contraste, sublime / hediondo, ou sentimento /intelecto, ou capital/província. 
 
Fico mudo por alguns instantes. Como explicar a alma de Augusto? Mesmo sua própria alma, a do senhor Bilac, tão mais luminosa, visível, que produz uma poesia voltada para o amor e as estrelas, contém um enigma. Além disso, o senhor Bilac é um homem nascido numa cidade e assim, talvez, jamais possa entender o que é alguém vindo de uma várzea úmida por cujo fundo passa um rio de águas negras, de uma coloração quase tão escura quanto a noite e, como ela, de uma sombra densa, profunda mas, paradoxalmente, repleta de mil matizes; um rio tão misterioso que parece carregar em suas águas a própria morte. (Parte 1, Eu, 8)

e também, adiante,

Há muitas estrelas, miúdas ou grandes, como se o céu comemorasse meu encontro com o poeta do "Ora (direis) ouvir estrelas". Assim como Augusto falava continuamente na morte e seus correlatos, Bilac trata das estrelas, diz que têm olhos dourados, que há entre elas uma escada infinita e cintilante; suas estrelas falam, abrem as pálpebras, o senhor Bilac vive cercado de centenas, milhares, milhões de estrelas, da Via Láctea, de uma nuvem coruscante, da estrela-mulher, da estrela-virgem, perdido no seio de uma estrela. (Parte 1, A luz lasciva do luar, 1)

 
                  É nas cartas e poemas que a autora Ana Miranda encontra embasamentos para as referencialidades que o narrador apresenta. São identificados os indícios biográficos, pequenos 'traços e gestos' que fazem surgir a personagem Augusto dos Anjos materializando na ficção a personalidade fugidia do escritor. Sabemos sobre a morte do filho, a saúde frágil da esposa, as dificuldades financeiras, a morte do pai, os pequenos roubos da ama-de-leite, a presença do tamarindo, a árvore da infância que deixa uma sombra sobre toda a vida.
 
           Como o narrador retrata seu biografado, ou melhor, personagem? Como uma somatória dos olhares alheios sobre a personalidade múltipla, excêntrica, que incomodava por não se encaixar nos padrões esperados.

Talvez o aspecto de Augusto, excessivamente magro e escuro, seu ar de morcego tísico, seu jeito diferente, sua fama de poeta macabro, de comedor de sombras, seus apelidos de Doutor Tristeza e Poeta Raquítico, sua imaterialidade - vivia decididamente em outras esferas - fossem a causa da desconfiança que sofria. (Parte 1, O Morcego Tísico, 12)

           Assim como a imagem do autor que se desenha nos poemas, com múltiplas referências ao estado doentio, à morte e putrefação, à consciência da finitude, como temáticas de uma mente preocupada, excessivamente preocupada com a condição humana, a buscar explicações em livros filosóficos ou religiosos, científicos ou esotéricos. Seu poemas assim retratam, a indicarem alguns biografemas então usados no romance A Última Quimera.

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

[...]
(Psicologia de um Vencido)

           Vejamos a referência ao poema no trecho da ficção, criada a partir de uma tessitura de biografemas,

Pobre Augusto, era profundissimamente hipocondríaco. Sofria tanto com suas crises artríticas. Ele morria de medo de ficar cego, por causa da conjuntivite granulosa que tivera. Dizia sempre que um dia iria deixar de ver. Tudo ia ficar escuro para ele, muito escuro. Às vezes ele caminhava pela casa com os olhos vendados, treinando para o dia em que ficasse cego. (Parte 2, Uma simplicidade campesina, 9)


           Do poema Ricordanza della mia gioventù, o dado factual sobre a cleptomania da ama-de-leite, que roubava moedinhas na casa dos patrões,

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
"- Não, não fora ela -" E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
 
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!


e o episódio assim recriado na ficcionalidade do romance, que também se refere aos poemas O Morcego, Debaixo do Tamarindo e Vozes da Morte ,

Lembrou-se do perfume das rosas que cresciam pelas paredes de tijolos da casa-grande, dos vidros violeta das janelas, das telhas tão velhas que pareciam plantações de fungos. Falou, como sempre, da história da moeda de ouro roubada por sua ama-de-leite, que ainda o oprimia e o fazia ter pesadelos. Dos banhos. Do trem. Dos morcegos. Do tamarindo. Do Misantropo. (Parte 1, A plenitude da existência, 6)


 
            Numa tessitura, ou rede de biografemas “no sentido de Roland Barthes, reconstruídos pelo autor, historiador ou romancista” (Dosse, p. 70), o romance biográfico transmuta uma personalidade realmente existente em um personagem, mais palpável do que uma biografia, onde o ficcional tiraria a credibilidade do referencial. O gênero do romance leva em consideração vida e obra, sem recorrer ao biografismo, isto é, explicar a obra pelo autor, pela vida do escritor. Afinal, do sujeito apenas temos uma imagem fragmentada. Antes importam mais os “traços e gestos da personagem” (Dosse, p. 74) que compõe um panorama mais amplo, a preencher algumas lacunas (como são exemplos os diálogos construídos com trechos de cartas e poemas).
 
         Biografemas e intertextualidade possibilitam uma melhor apresentação da vida e da obra, mais do que uma biografia oficial. O importante é conservar o factual no entrelaçamento do ficcional. Bem argumenta Eneida Maria de Souza, em seu ensaio A Crítica Biográfica, ao analisar as características do gênero,

A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, deve-se distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. (2011, p. 19)

 
           O Augusto dos Anjos que encontramos no romance biográfico, pelas lentes do narrador-amigo, é uma personagem que muito lembra a personalidade que viveu de 1884 a 1914, mas não é um herói de biografia, não tem sua vida em formato de biografia. Assim a ausência de pretensão documental torna mais leve e livre a narrativa, o que aumenta efeito sobre o leitor. Efeito que seria diverso se fosse o contrário: uma biografia que inserisse trechos ficcionalizados. Tal procedimento apenas atrairia desconfiança sobre a totalidade do relato. Assim, a mentira no meio da verdade, só debilita esta; mas algo de verdade na mentira, fortalece o narrativo.










Referências



ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Disponível em <http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Augusto_dos_Anjos> Acesso em: 17.11.2014.

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: Usos e Abusos da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

DOSSE, François. A biografia, gênero impuro. In: O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: USP, 2009.

____________ . Os biografemas. In: O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: USP, 2009.

MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002

_____________ . A Crítica Biográfica. In: Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: UFMG, 2011.



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Poética da Animalidade nos poemas de Manoel de Barros








 










Poética da Animalidade nos poemas de Manoel de Barros




Leonardo Magalhaes


Fale – UFMG

 
      Ao abordar o mundo animal, o irracional, o poeta é levado a abandonar a racionalidade, que o distingue, de modo a se aproximar dos pequenos e inabordáveis, as formigas e as lesmas, os lagartos e os sapos, que estão ao redor do sujeito poético, em plena natureza, não num aquário ou jardim zoológico.

       Ora o animal se humaniza, ou as coisas se animalizam, em comportamentos só percebidos e comunicados pelo poeta – como um exemplo da 'poética da animalidade', segundo o pensador G. Bataille – não apenas alegoria ou fábula, ou personificação. Trata-se de um fenômeno de 'salto poético', 
 

O melhor, a maneira correta de falar dele só pode ser abertamente poética, já que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível. Na medida em que podemos falar ficticiamente do passado como de um presente, falamos no fim de animais pré-históricos, assim como de plantas, de rochas e de águas, como de coisas, mas descrever uma paisagem ligada a essas condições é uma tolice, a menos que seja um salto poético.” (1993, p. 12)


 
       Os animais não são catalogados, ou explicados, antes imersos no habitat, no meio ambiente onde vivem e se reproduzem, ali onde o ser humano, poeta ou não, zoólogo ou não, é o intruso, o estranho. Não é o animal transportado ao mundo humano, ou domesticado, a ser exibido em jardim zoológico ou em condição de animal de estimação. O animal está na natureza e se confunde com ela, em relações de identificação e continuidade.

Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco.
[…]
Borboletas translúcidas quedam estancadas no tronco
das árvores -
Se enxergam por perto os curimpãpãs.



       Tendo o animal em sua animalidade, sem um olhar biológico, somente a poesia, com a 'poética da animalidade', poderia apresentar um painel ao leitor, ser de racionalidade. Para adentrar a animalidade o poeta se permite contemplar o irracional a ponto de deixar a linguagem 'contaminada' pela não-razão. É possível ao poeta tal desprendimento do racional ao apresentar sua criação, uma vez que ele se aproxima do animal, e não o contrário. Não aceitando o animal, com condescendência, mas olhando-o de perto. Bem de perto, a ponto de ver o mundo com olhar de animal, 
 

Por viver muitos anos dentro do mato

moda ave

O menino pegou um olhar de pássaro -

Contraiu visão fontana.

Por forma que ele enxergava as coisas

por igual

como os pássaros enxergam.


       Enquanto o olhar científico cataloga e sistematiza, o poeta tem cuidado em não explicar, pois não visa compreensão, antes descrição, apresentação, em acesso aos animais in natura, agindo espontaneamente nos habitats, longe das padronizações do comportamento humano. Para que explicar o que está fora do racional ? É preciso aceitar que há a não-razão. O que não significa desvalorizar a razão, que faz a distinção humana.

       É no equilíbrio razão-irrazão que se vislumbra a solução para o distanciamento animal racional – animal irracional. Ao humano não é possível abandonar sua visão antropocêntrica – uma vez que o racional é condição básica para o status humano – que pensa, em autoconsciência, que lembra passado e planeja o futuro. Enquanto isso, segundo Bataille, os animais vivem na imanência, isto é, sem ideia de tempo, sem memória e sem expectativas. É preciso negar a imanência para se tornar humano, ao se socializar, enquanto ser de cultura.

         Para abandonar momentaneamente sua razão, o poeta se identifica com a figura da criança, aberta aos devaneios e imagens surreais, como o menino que observa os animais ao seu redor, em tantas visões que fogem ao raciocínio lógico,

Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
[…]
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.


        Para ver os animais, o menino (e o poeta) se esquece, faz de si um ser sem razão, para adentrar o mundo natural. Ele precisa esquecer a linguagem ao adentrar um mundo onde as palavras, arbitrárias, demasiado humanas, não têm sentido. Então acontece o mesmo com a poética, assim cheia de transtornos da linguagem, a causar estranhamento para um pensamento racional. “Depois a palavra teve piedade / E esfregou a lesma dela em mim.” (2006, p. 69)

        Uma poética que se aproxima tanto dos animais, os não-humanos, não pode idealizar, não pode ser arbitrária, não pode teorizar, ainda que, ao mostrar o 'desgoverno' da linguagem, se evidencie muito de metalinguagem. Mas o principal não é o metapoema, é a confissão do estranhamento, o não conseguir falar racionalmente após adentrar o mundo da imanência, da não-linguagem. Em suma, ao voltar à natureza, de onde o humano se distanciou.






REFERÊNCIAS






BARROS, Manoel de. O Livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.


_____________ . Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.


BATAILLE, Georges. A Animalidade. Teoria da Religião. São Paulo: Ática, 1993.


LESTEL, Dominique. As origens animais da cultura. Trad. Maria João Reis. Lisboa: Piaget, 2002.


NUNES, Benedito. O animal e o primitivo: os Outros de nossa cultura. In: Pensar/escrever o animal. Maria Esther Maciel [org]. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.