Sobre
“Livro
de
Papel”
(BH,
2009)
da
poeta
Adriana
Versiani
dos
Anjos
Entre
a
prosa
poética
e
o
poema-em-prosa
Mesmo
que
ainda
não
tenhamos
uma
definição
positivista
para
o
termo
“poesia”,
temos
uma
definição
quase-positivista
do
termo
“prosa”.
Desde
Bakhtin,
e
outros
formalistas,
temos
mil
e
umas
definições
de
Prosaico.
(Como
se
definir
demais
fosse
definir
em
definitivo!)
Prosa
para
diferenciar
de
Poesia,
e
de
“Poema
em
Prosa”
(imortalizados
pelos
textos
clássicos
de
Baudelaire,
Rimbaud,
Lautréamont,
etc)
nos
momentos
de
transição
(recriando
o
Romantismo
nas
sutilezas
do
Simbolismo,
em
contraponto
ao
neoclassicismo
dos
sonetos
parnasianos)
No
Brasil,
lembramos
agora
de
Raul
Pompeia
(o
autor
de
“O
Ateneu”)
com
suas
“canções
sem
metro”,
onde
não
há
versos
em
estrofes,
mas
também
não
há
propriamente
narrativa,
mas
um
fluxo
de
confidências
líricas.
Também
encontramos
textos
que
no
Modernismo
transitavam
na
fronteira
entre
'poesia'
e
'prosa'
(um
exemplo
clássico
é
o
“Memórias
Sentimentais
de
João
Miramar”(1924),
de
Oswald
de
Andrade)
em
textos
ambíguos,
em
retalhos
de
fragmentos,
em
formato
prosaico,
mas
em
fluxo
lírico,
pulsando
além
das
amarras
da
prosa.
(1)
“Amarras
da
Prosa”?
Sim.
Visto
que
a
escrita
prosaica,
mais
racional
e
formalista,
considera
algumas
normas
precisas
(início,
meio
e
fim;
argumentação;
lógica;
síntese
e
conclusão;
uso
de
conectivos,
conjunções,
etc;)
mesmo
que
não
acompanhe
as
'amarras'
da
Poesia
(tais
como
ritmo,
versos,
silabas
métricas,
rimas,
aliterações,
assonâncias,
etc)
No
mais,
a
Prosa
objetiva
explicar
algo,
explicitar,
narrar,
coordenar
fatos
na
descrição,
convencer
o
interlocutor,
influenciar
uma
conclusão
(para
futura
concordância),
enquanto
a
Poesia
espera
atenção
e
projeta
emoção,
sem
precisar
deter-se
em
explicações
e
argumentações.
A
concluir,
o
que
distingue
a
Poesia
não
é
apenas
o
formato
(versos,
estrofes,
métrica,
rimas,
assonâncias,
etc)
mas
sobretudo
que
a
Poesia
é
espanto
é
ritmo
é
re-inventar
o
olhar
gerando
novas
emoções.
O
suporte
principal
da
Poesia
é
a
linguagem,
a
fala,
que
pode
ser
escrita,
copiada,
impressa,
divulgada.
(Ainda
que
muitos
defendam
uma
'poesia
visual',
à
la
Concretismo,
mas
seria
mais
um
exemplo
de
Artes
Plásticas
do
que
de
Poesia
-
que
sabemos
surgiu
dos
cânticos,
das
elegias,
das
baladas,
etc)
São
questões
que
pululam
em
nossa
mente
quando
diante
da
obra
“Livro
de
Papel”,
nos
dois
sentidos
do
termo
'obra':
o
objeto
livro
e
o
texto.
Quase
artesanal,
em
multicores,
ofertando
o
prazer
de
ser
folheado,
manipulado,
o
objeto
já
seduz.
Depois,
encontramos
o
texto.
Seria
Prosa?
Seria
Poesia?
De
fato,
um
livro
difícil
de
classificar,
ainda
mais
por
sua
pluralidade
de
personas
e
estilos
– até
porque
é
uma
'obra
2
em
1',
contendo
“Biografias
de
Vocês
que
não
Existem”
e
“Madrágora”.
Biografia
de
inexistentes
É
uma
poesia
que
'narra'
algo,
precisa
contar
uma
história,
a
equilibrar-se
na
fronteira
entre
o
lírico
e
a
narrativa,
ora
no
fluxo
poético
ora
na
contenção
prosaica.
Portanto,
essa
'indefinição':
é
poema
em
prosa
ou
conto
escrito
em
versos?
Há
uma
ausência
de
versos
e
estrofes,
mas
há
um
ritmo,
uma
fluência,
que
encontramos
nos
poèmes
em
prose
de
Baudelaire
e
Rimbaud,
nas
'canções
sem
metro'
de
Pompeia.
(2)
Objeto
que
fala
sem
palavras:
O
que
é
que
não
tem
língua
e
fala,
que
fala
e
não
tem
palavras?
O
que
é
que
está
guardando
além
do
que
está
guardado?
O
que
é
que
nos
faz
querer
estar
com
coisas
e
pessoas?
O
que
é
que
não
me
deixa
abandonar
essa
caixa?
O
segredo.
(p.11)
Há
realmente
um
segredo
aqui.
Antes,
um
mistério.
A
cativar
o
Leitor
para
testemunhar
confidências
de
outrem,
como
bons
voyeurs
que
somos.
Sempre
'dando
uma
espiadinha'
nas
biografias
de
vizinhos
e
celebridades.
Mas
aqui
trata-se
de
uma
biografia
de
inexistentes
– fragmentos
de
inexistências
– de
'possíveis
personas'
que
somente
existem
enquanto
'seres-textuais'.
Ou
seja,
biografias
de
Ninguéns.
Numa
poesia
que
não
fala
do
existente,
mas
uma
fala
poética
que
inventa
a
realidade,
que
pretende
tecer
um
corpo
textual
para
o
inexistente
(igualzinho
aos
'contos
de
fadas'...),
mas
poesia
não
é
simplesmente
'mentira'
(como
muitos
dizem
que
“Literatura
é
ficção,
é
mistificação”,
se
assim
fosse,
o
Paulo
Coelho
seria
o
nosso
guru...)
Eu,
esquecida
delirante,
pastora
da
igreja
invisível,
tenho
andado
em
estado
alterado
de
consciência.
Vivo
entre
papéis,
trouxas,
retalhos,
restos
deixados
por
meu
irmão
aqui
no
quartinho
dos
fundos
onde
ele
tocava
blues.
Sim,
eu
os
percebo.
Eles
estão
comigo.
(p.17)
A
voz
lírica
não
sendo
única,
una
e
onisciente,
é
mais
uma
'legião'
de
personas
dispersas,
habitando
desde
o
mundo
interior
até
longínquas
paragens
do
possível
(ou
do
impossível,
onde
somente
a
imaginação
pode
ir...)
Mil
imagens
de
seres
oníricos,
fadas,
feéricas
criaturas
feitas
de
brisas,
ou
bruxas
demasiadamente
siamesas
(ou
o
contrário),
ou
então,
vidas
bem
prosaicas,
cotidianas,
como
testemunham
as
confissões
de
esposas
traídas
(que
vivem
do
que
compartilham
com
o
marido),
conversas
francas
entre
amigas,
visões
místico-ecológicas,
os
duelos
entre
os
homens
e
as
mulheres
(estas
prolixas,
estes
reticentes
– até
serem
devorados),
ou
seja,
a
pluralidade
é
a
única
unanimidade
aqui.
mandrágora:
poema-veneno
A
mandrágora
é
uma
planta
cercada
de
lendas
mágicas,
esotéricas,
envoltas
em
poções
de
amor,
venenos,
encantamentos,
alucinações...
Ou
então
a
abir
os
olhos
da
persona
para
uma
'realidade
outra',
abrindo
as
'portas
da
percepção',
afastando
os
veús,
“move
o
véu
e
o
que
há
por
trás
das
palavras”
(p.79)
Uma
coletânea
de
imagens
fortes,
rubras,
inflamadas,
de
palavras
em
folhas
laranja-chama,
pois
é
paixão
ardente
que
move
a
Voz
lírica,
“Como
você
sabe,
sou
movida
a
paixões”,
e
assim
este
leitmotiv
leva
ao
próprio
ato
da
escrita,
a
vontade
de
gritar,
desabafar
o
cataclisma
íntimo
nos
ouvidos
de
alguém
(ainda
bem
que
inventaram
o
psicanalista...)
Aconteceu
de
um
dia
de
ele
lamber
minha
orelha,
assim
do
nada,
em
público
e
foi
dramático
cheio
d'água
e
saliva
e
enzima
digestiva.
Não
entenderam.
Tudo
gratuito,
desnecessário.
Talvez
não
pareça
uma
passagem
importante,
não
mereça
nem
relato,
mas
senti
que
dez
metros
são
diferentes
de
dois
centímetros.
Foi
um
segundo,
previ
tudo,
comecei
a
adoecer.
(p.53)
Não
é
tão-somente
uma
'voz
feminina'
– reduzir
ao
gênero
é
diminuir
a
multiplicidade
da
fala
poética,
assim
como
parcializar
em
cor,
etnia,
classe
social,
etc
– que
adoeceu
com
'uma
língua
no
ouvido',
e
pois
sente
saudades
da
mesmíssima
'língua
no
ouvido',
como
a
desejar
e
temer
o
que
deseja,
mas
a
apresentação
da
contradição
humana
– oscilando
entre
a
repressão
e
a
libertinagem,
entre
o
desejo
e
a
culpa.
Encharcada
de
suor
gelado
desmaiei
e
levantei
e
fiquei
ereta
e
olhei
em
volta
e
cuspi
e
aqui
estou
eu
acordando
animada,
nessa
manhã
fria
de
outono,
morrendo
de
saudade
da
sua
língua
em
meu
ouvido.
(p.57)
Destacam-se
os
poemas
da
Ana
(Uns
dos
Muitos
Sonhos
de
Ana,
Telhado
Azuis
– as
cartas
de
Ana
e
Girassóis
Dourados
– a
última
morada
de
Ana)
dotados
de
uma
beleza
ímpar
:
levam
a
'carga
prosaica'
ao
ápice
na
tentativa
de
fazer
desabrochar
o
'poema',
mas
as
contenções
da
própria
prosa
(frases
longas,
conectivos,
etc)
diminuem
a
'força
poética'
que
precisa
ser
concentrada
(o
próprio
Edgar
A
Poe,
autor
de
The
Raven,
dizia
que
'mesmo
o
poema
longo
é
feito
de
vários
poemas
curtos')
Sendo
'prosa'
e
não
conjunto
de
'poemas',
o
tom
lírico
se
perde.
Os
sonhos
de
Ana
são
dignos
da
atenção
psicanalítica,
com
suas
infindas
imagens,
relembranças,
referências,
citações,
num
cubismo
lírico,
que
quase
'corporifica'
a
persona
Ana,
apenas
um
nome
a
concentrar
um
ser
esfumaçado,
feito
de
linhas
escritas
num
papel
Offset
240
g/m2,
color
orange.
Se
quiséssemos,
poderíamos
virar
pedra.
Não
esculturas
de
sal
ou
granito
como
se
tivéssemos
cometido
algum
pecado
ou,
se
sem
espelho,
olhássemos
no
fundo
da
pupíla
da
bruxa.
Não,
era
só
se
quiséssemos.
E
eram
ágatas
de
superfície
lisa
e
colorida
onde
refletia
uma
nesga
de
luz.
(p.81)
As
cartas
de
Ana
possuem
um
odor
de
'romance
epistolar',
daqueles
que
os
Românticos
adoravam
(quem
ainda
não
leu
“Sofrimentos
do
Jovem
Werther”,
“Ligações
Perigosas”,
“Frankenstein”,
ou
“Drácula”?
Todos
arquitetados
na
forma
de
correspondência...)
Nas
cartas
líricas
encontramos
várias
vozes
femininas,
as
várias
personas
de
Ana,
desmembrada
na
comunicação
com
vários
remetentes,
as
projeções
de
Ana,
nos
mais
variados
lugares,
numa
mescla
dos
desejos
turísticos
e
das
idealizações
literárias
– ainda
que
Leningrado
não
se
chamasse
assim
em
1807,
mas
é
a
São
Petersburgo
de
Púshkin,
Gógol,
Dostoiévski,
Blok,
Bély
– em
datas
díspares,
numa
coletânea
de
possíveis
existências,
ou
(esotericamente
falando)
vidas
passadas.
Vou
contar-lhe
um
segredo:
-peguei
esquizofrenia
da
flor
de
lírio
branco,
agora
sou
dona
da
minha
dor.
(p.89)
e
Querida,
nosso
mistério
me
assombra.
Não
se
preocupe
com
os
outros,
eles
não
sabem
que
existimos.
Afinal
de
contas,
somos
de
papel.
(p.93)
Portanto,
daí
referir-se
a
uma
'multidão'
de
Anas
possíveis,
cada
uma
a
retratar
uma
época,
um
espírito
de
época
(“Zeitgeist”),
um
delírio,
um
desejo
de
transmutação
alquímica
(voltamos
ao
esotérico...),
para
ousar
uma
superação
da
condição
humana,
confinada
ao
imperativos
prosaicos
de
uma
vida
rotineira,
quando
exercendo
'funções
sociais'
a
pessoa
humana
esquece
de
si-mesma.
Na
consciência
de
ser
um
corpo,
de
despertar
desejos
e
acalentar
desejos,
sendo
um
sujeito
num
mundo
de
'objetos'
(inclusive
as
outras
pessoas...),
os
conflitos
do
amar
e
ser
amada,
mais
que
um
idílio
neo-romântico
vem
gerar
uma
realidade
de
entrechoques,
de
mal-entendidos,
que
desloca
o
ser
de
si-mesmo
(ele
precisa
aceitar
as
'máscaras'),
como
evidencia
o
'testamento'
de
Ana:
Anna
estou
a
luz
que
cega
inteira
e
que
fere
as
retinas
possíveis.
Nada
preenche
tempo
e
espaço,
vácuo,
Anna
sou
o
que
é
dado.
Anna
longe
de
Anna,
sonho
que
se
desmancha
sobre
o
telhado.
(p.99)
Mas
não
é
novidade
para
Ana
(ou
quem
quer
que
seja
a
Voz
lírica),
pois
antes
sua
mão
escrevera
sobre
o
papel
da
carta,
num
lampejo
visionário
da
realidade
humana
(no
e
fora
do
papel),
num
grito
mudo
de
fatalidade,
o
que
deveria
ser
a
frase
final
desta
obra
ambígua
“Livro
de
Papel”,“Lu,
a
tragédia
humana
não
tem
fim”.
Jan/10
revsd:
dez/12
Leonardo
de
Magalhaens
mais
poemas
/
textos
de
Adriana
Versiani
Notas
(1)Hoje
em
dia,
temos
o
romance
em
'prosa
poética',
com
imensos
fluxos
de
consciência,
como
são
exemplos
“Ulisses”,
de
J.
Joyce,
“As
Ondas”,
de
V.
Woof,
e
os
contos
de
Clarice
Lispector,
mas
com
narrativas
densas,
personagens
em
duelo,
como
mostram
as
obras
ímpares
de
Raduan
Nassar,
os
inclassificáveis
“Lavoura
Arcaica”(1975)
e
“Um
copo
de
cólera”
(1978),
com
uma
prosa-fluxo,
transpondo
fronteiras
líricas
e
prosaicas.
(2)A
prosa
poética
de
Baudelaire
e
Rimbaud
são
célebres,
estão
na
mídia.
Mas
poucos
conhecem
as
'canções
sem
metro'
do
nosso
Pompeia
(parece
que
a
gente
gosta
mesmo
é
de
estrangeiros...)
Então
eis
uma
pequena
amostra.
Vibrações
Comme
des
longs
échos
qui
de
loin
se
confondent
Dans
une
ténébreuse
et
profonde
unité,
Vaste
comme
la
nuit
et
comme
la
clarté,
Les
parfums,
les
couleurs
et
les
sons
se
repondent.
C.
BAUDELAIRE
Vibrar,
viver.
Vibra
o
abismo
etéreo
à
música
das
esferas;
vibra
a
convulsão
do
verme,
no
segredo
subterrâneo
dos
túmulos.
Vive
a
luz,
vive
o
perfume,
vive
o
som,
vive
a
putrefação.
Vivem
à
semelhança
os
ânimos.
A
harpa
do
sentimento
canta
no
peito,
ora
o
entusiasmo,
um
hino,
ora
o
adágio
oscilante
da
cisma.
A
cada
nota,
uma
cor,
tal
qual
nas
vibrações
da
luz.
O
conjunto
é
a
sinfonia
das
paixões.
Eleva-se
a
gradação
cromática
até
à
suprema
intensidade
rutilante;
baixa
à
profunda
e
escura
vibração
das
elegias.
Sonoridade,
colorido:
eis
o
sentimento.
Daí
o
simbolismo
popular
das
cores.