quarta-feira, 25 de abril de 2012

Sobre "Minerar o branco" - de Ronaldo Werneck



sobre os poemas de “Minerar o branco” (2008)
do poeta Ronaldo Werneck


Quando a poesia precisa minerar além do poema


A Crítica

Muito já se discutiu sobre poesia enquanto jogo de palavras, i.e., exploração da oralidade ou destaque visual, com alguma disposição gráfica de versos. São assuntos com farta bibliografia. Sejam dos adeptos de uma ou outra forma, sejam dos puristas ou dos vanguardistas. Poema é som ou desenho numa folha? Poesia é para ser lida ou contemplada? É conjunto de versos ou um verso só já é poema? Um objeto, uma coisa, é poesia? Para os adeptos do poema-objeto a resposta é afirmativa.

Como podemos ver, cada teórico teoriza o que lhe agrada ou interessa, dependendo do grau de devoção, se adepto do oral ou do visual, se devoto da oralidade ou do concretismo. Cada igreja forma os seus ideólogos, os seus bispos defensores, os seus xamãs teorizadores. O difícil é ressaltar o poético, o lírico, em cada obra e tentar ouvir o que tem a dizer. Ou o que ela quer que vejamos.

Por mais objetiva que seja uma crítica, esta ainda está carregada de subjetivismo. Há um crítico que a idealiza e produz. Não temos máquina de ler e interpretar poesia. Ainda bem, convenhamos. Assim se um crítico prefere poesia oral, epopeias rítmicas do cordel, talvez pouco vá se interessar por poemas-visuais, ou poemas-objetos. Se o poeta é vanguardista, muitas vezes nem abre um livro de cordel, acha que é coisa popular, tradicional, e que precisamos abraçar o futurismo (espere aí! o futurismo já está nos museus!) ou propagar o concretismo.

Críticos que preferem poesia oral, baladas, ritmos de cordel, poesia cantada, precisam fazer um esforço para entender poesia visual, poesia-objeto, poesia no blog. Senão, com tanta subjetividade contra, não poderiam tecer um ensaio objetivo, segundo critérios estéticos. Aqueles mais vanguardistas (ou se consideram assim) mostram dificuldades ao lidarem com formas tradicionais, ou entender as letras de canções como formas poéticas. Qual a diferença entre um cantor e um poeta? Os acordes e refrões?

Por outro lado, poesia não é simplesmente aquilo que o Crítico considera poesia. E muito menos aquilo que o autor considera poesia. Para o poeta tudo o que escreve é poesia (mas pode ser apenas desabafo...) e para o crítico apenas é poesia o que sobra quando se tira a casca de sentimentalidades. É poesia o que sobrevive além da 'intenção autoral', daquilo que o poeta quer dizer. Principalmente, é poesia aquela amálgama forma-conteúdo que é transmitida ao leitor – mesmo quando ele/ela nada entende. Posto que a poesia não é necessariamente racional.


A Obra

Técnicas

Quando o poeta cuida da parte gráfica alguns fenômenos podem ocorrer. Ou a obra ser risível ou genial. Pode também ser mais do mesmo ou algum tipo de inovação. Quando o poeta trabalha a tipografia dos versos – assim os estilos de Mallarmé, Maiakovski e Octavio Paz, p. ex. - o interesse não é apenas sonoro, mas também visual. Como o poema deve aparecer aos olhos do leitor.

A poesia enquanto fenômeno visual não exclui a sonoridade – jogos de palavras e aliterações são abundantes no concretismo – nem outras particularidades da forma oral, apenas que espera-se um olhar atento do leitor. As palavras estão em arranjos, distribuídas segundo critérios (ou não) que interessam à intenção autoral.

Assim é a questão do tipo preto na página branca, ou do tipo branco na página escura, ainda o trabalhado entre contraste claro escuro, quando tudo integrado, percebe-se o quanto a disposição gráfica é relevante, sejam as marcas tipográficas, sejam os arranjos de palavras. O 'despedaçar dos versos' em degraus, ou escorrendo pela página. Algum propósito tem – nem que seja o de levar o crítico a apontá-lo.

Afinal, podemos escrever o verso “A menina ouviu em pânico o som áspero” na íntegra, ou segmentá-lo em sintagmas, para ressaltar os constituintes. Assim podemos escrever o verso em degraus, um elemento por linha,

A menina desperta
                          ouviu em pânico
                                                o som áspero

se desejo ressaltar que é uma menina - e não é um menino, ou senhora – e que ela ouviu em pânico – e não caiu no sono, ou escovou os dentes – e o que ela ouviu, um som que julgamos desagradável (o ranger de uma porta? O estilhaçar de um vidro?), mas é possível ainda, se quero destacar o estado de pânico e o tipo de som, escrever assim:

A menina desperta
                         ouviu
                                em pânico
                                              o som
                                                        áspero


O verso ocupa mais espaço na página, pode ser melhor visualizado, pode ser lido mais prontamente ou lentamente, a depender o estado de suspense para o leitor – que pode deslocar ênfases para 'em pânico' e 'áspero'. A disposição gráfica apenas facilita, norteia, não determina. Antes, os determinantes seriam uso de negritos, itálicos, parênteses, fontes diferentes em cores e tamanhos, mais próximo ao concretismo.


A menina (desperta)
                           ouviu em pânico
                                               o som áspero

Portanto foi um pânico imenso que a menina (não qualquer uma, mas a desperta) ouviu o tal som áspero (muito áspero, percebe-se pelo tamanho da letra e pela cor rubra) , ou seja, o poeta pré-determina a leitura do leitor ao ressaltar trechos do verso. Destaques em tamanho e cores são recursos visuais, enquanto na poesia falda o declamador pode sussurrar ou gritar, acelerar ou frear a leitura.

Citando a obra, ressaltamos que o verso é 'não noites não nozes não vozes' mas graficamente se dispõe assim, em degraus descendentes,

não
      noites
                não
                      nozes
                             não
                                  vozes

(p. 211, “Velhos Natais”)

Outra marca tipográfica que destacamos é o uso de certos tipos de letras – ora maiúsculas ora minusculas, ou o predomínio de uma ou outra. Aqui, na obra que folheamos, eis a preferência por letras minúsculas – alguma influência do poeta e. e. cummings (1894-1962), que adorava inovações tipográficas? É possível que sim, pois poemas inteiros são escritos em minúsculas,

vem da mata o menino
de mim das minas claras
de miniminas raras

vem da mata o menino
no alto-gerais traços
tontos trecos e trapos

vem da mata o menino
solta-se das gerais
de si minas não mais

(p. 138, “Vem da Mata o Menino”)

Assim, estamos abordando as técnicas, que são muitas. O trabalho com as palavras é sensível e visível. Percebemos repetições, aliterações, palavras cognatas, ou que parecem cognatas, rimas, assonâncias, fusões, derivações. Mais, jogos verbais, fragmentação silábica, jogos de palavras, trocadilhos, citações, referências, paródias, intertextualidade (com livros, autores, filmes, etc) em recursos que lembram os estilos de Affonso Romano de Sant'Anna e Affonso Ávila, só pra ficarmos aqui em Minas,

                                            balas bailam tontas
                       zunem zonzas
a metralha ruge
a mortalha rouge

(p. 61)

o corpo-roto
               de selva & sangue
o mito-morto

(p. 67)

reluz teu rosto farol fresta facho
de outrora clarão que se locomove
            chiaoscuro caro cálido colo
            vem de volta vem comigo vem rosto

(p. 87)


olhos meus olhos
sobre meus olhos

(p. 91)

minhas mãos / tuas mãos / as muitas tuas / minhas mãos

(p. 92)

o amor bateu / forte / ardeu forte
ao amor / bateu / sorte

(p. 92)


erra o poeta pelo erro
erra o poeta por não ser
em si manhã e por não ser
em si manhã e por não ver
que ver rever reverberar
o erro não mais é errar
pelo mundo errar aspirar
errar pelo erro de errar
errar pelo tempo profundo

(p. 152)

e fala magra e mansa e magro
e tão mago e leve

(p. 218)


Intertextualidade

De influência em influência, os autores dialogam com autores, os textos carregam 'pistas' para outros textos. É sensível aqui, em “Minerar o Branco”, o diálogo com outros poetas, por exemplo, o futurista russo Maiakovski,

maiakovksi me olha
                           maiaca me mira
maiatédio
              é melhor morrer de vodka

(p. 76, “Annamanhece”)


ou com Tennessee Williams (1911-83, norte-americano, o autor de “Um Bonde chamado Desejo”, 1948), no leme treme tennessee” (p. 96), poema no qual enxerta a tradução do poema “How calmly does the olive branch(“com que calma o ramo de oliveira”),

Com que calma o ramo de oliva
Vê a tarde ficar menos viva
Nenhuma súplica ou ruído
Seu desespero não é sentido”

mais info em


ou com Manuel Bandeira, o poeta de Pasárgada, em “Pindamoraminas” (pp. 155-56),

não, não vo'm'embora
pra lua-pasárgada
meu tempo é agora


nada de pasárgada
-vem, vamos embora
pindamonhangaba
é aqui, aurora


Outro detalhe: se o poema é muitas vezes hermético, não nos preocupemos, pois o próprio poeta cuida em explicar tudo em notas de rodapé (assim como em “Itinerário de Pasárgada”, Manuel Bandeira explicava, detalhava, expunha as 'chaves' dos poemas de sua autoria...)

Assim, no poema “A Voz”, p.ex. só quem leu a biografia de Frank Sinatra vai entender imediatamente – então o poeta vem socorrer o leitor - “a voz” é o próprio Sinatra, chamado 'the voice', pela plenitude de sua expressão vocal, de talento indiscutível.

São várias as referências a autores, livros, filmes que o leitor (ainda mais o jovem) pouco reconhece, daí se justificassem as notas de rodapé. Quem foi Hemingway? Quem foi Godard? Quem são os ícones do cinema ou da literatura que ainda nos influenciam hoje? Enquanto cinéfilo e poeta, ou poeta e cinéfilo, Ronaldo Werneck poderia polemizar, criar mesmo as controvérsias. Quem são os nossos referenciais? Quais os nomes para os quais não precisamos de notas de rodapé?


Metalinguagem

Ressaltamos as influências pois estamos em território do autor-leitor, ou seja, um autor que se entrega a ler e reler obras de outros autores, e intertextualidade certamente não faltará. Esta leitura constante faz o autor pensar a própria escrita, quase um escrever e meditar sobre o ato de alinhar palavras, ao ressignificar o mundo.

Tudo em abundante recorrência de um fenômeno normal em nossa era: metalinguagem. A poesia adora falar de poesia, parece. O poema aponta para si mesmo, enquanto poema. Lembra o tempo todo ao leitor que se trata de um poema (como se precisasse ficar reafirmando isso!),

Em “Preto Nu Branco” (p. 39) temos uma dica

                            não leia
             de arranco:
opresso é
             o poema:
                eco
mas a poesia
                  salta
             do branco
            -ecco!


Mais metalinguagem entre os jogos de palavras, que se destacam em rimas internas ou aliterações, deslocados em blocos descendentes no branco da página,

              pó poesia
pois é um voo em vão que se desvela
                    e resvala
                sentinela
inconstante

(p. 41, “De Céu e Nuvem”)

e

            o pó do poema
          a poesia recompõe
                                     em meus braços
                                                               a poesia

(p. 122, “A Poesia nos Braços”)


e também,

poesia
o poema
trabalhado

poesia?
O poema
só suor

poesia?
O poema
apanhado

(p. 129, “Sim-Sim: Cinco Minutos”)


Convenhamos, o poema se esforça, se espreguiça, se alinha, se derrama para falar sobre si mesmo. Metapoema é uma recorrência, tal um espelho refletindo a si mesmo em infindas, num fenômeno de recursividade. O poema que fala sobre o poema no poema... Aqueles contos do Borges que falam de contos, ou os romances de Calvino que lembram o tempo todo que são romances do Calvino... onde o referencial? Nem mais pretende 'representar' o real, o mundo exterior. A poesia torna-se assim um jogo alienado, voltado para o próprio umbigo.

Temáticas

Pensemos, além de falar de Poesia qual outros assuntos despertam a fala do poeta? O que deseja falar o poeta além do fazer poesia? Será que há um mundo lá fora? Ou tudo se resume a jogos de linguagem? Tudo é palavra ao lado de palavra e estamos conversados.

Mas certamente o poeta quer falar sobre o mundo externo, o tempo que flui, a infância, a vida de descobertas, a cidade, as polêmicas literárias, o viver (e o sobreviver) de poesia. É nessa ânsia de comunicar que destacamos os poemas “Vem da mata o menino” (pp. 138-39), “Ah! Há controvérsias” (p. 157-58), além de “Política do Troco” (pp. 58-59), onde a identidade do eu-lírico se faz presente e repensada, o ser mineiro, o chão de Minas, a voz que cria controvérsias, o poeta errante que carrega a cidade natal consigo,


vem da mata o menino
vem trem-do-mato tralhas
de minas imantadas

vem da mata o menino
alto mato seu trem
trem-do-mato trem-trem

vem da mata o menino
e do mato no asfalto
mata angústia mato


e

mudo o mundo muda
na praça sem pressa
sim: há controvérsias

um dito um não dito
novas tão funestas
não: há controvérsias

...

fado: fogo-fátuo:
minas é o que resta:
ah! há controvérsias


o preço da pressa
o fausto da festa
ah! há controvérsias


Controvérsias existentes ou não, a poesia pode falar do mundo exterior – deve falar da vida ao redor, do imposto de renda, da desigualdade social, da subnutrição, dos lobbies no legislativo, do câncer da corrupção, pois o poeta é um operário, sim, um proletário da palavra. Perguntam: o poeta tem ideologia? Responde-se: existe um discurso não-ideológico? Alguma fala sem propósito, sem emissor e receptor? A voz no poema se identifica com quem na 'luta de classes' ?


apenas mais um
                        como você
                                       um operário
                                                        da palavra
(…) p. 58

um operário
                 que na terra
                  cava
                          a vida avara

(p. 59, “Política do Troco”)


Em que nível o intelectual é um operário? Qual a 'consciência de classe' do intelectual ? Precisamos lembrar em que contexto transitamos. Em plena década de 1960 – época de luta de classes – ideologias, golpe militar, repressão política. Luta armada, guerrilha urbana, guerrilha nas selvas, torturas. E onde se encaixa o intelectual? Quem fala de mais não é obrigado a se exilar? Caso contrário não terá um fim trágico no paredón?

Mas antes de tudo a voz do poeta volta-se para a própria poética – que não se reduz ao panfletário, propagandístico, manifesto revolucionários ou reacionário. Tematiza o que o incomoda pessoalmente até mais do que socialmente, p. ex. o tema: a Americalatina e suas veias abertas (vejamos Eduardo Galeano e sua obra “As Veias Abertas da América Latina”, onde acusa o imperialismo europeu e norte-americano pela exploração do nosso continente, hoje dado ao subdesenvolvimento ), trata-se de um tema retomado nos anos 1990,


natinovo leão
de latinoamérica

(p. 61)


surge súbita
a pré-fabricada
nas oficinas
       da américa latina

das oficinas da américa
das oficinas de sombra e medo
       suja morte em selva

(p. 66)

E certamente alguma ironia com o desejo dos argentinos de serem europeus? Buenos Aires certamente não é Paris, a cidade-luz, por mais que nossos hermanos tenham ânsias de potência do Cone-sul, seja no comércio, na cultura, ou no futebol,

buenos aires
não é paris
              nem o sena o prata
                                       que contracena
em noite pequena
lua-que-lua
solta na rua
                 de pedra e prata
                               salve as matas
                                             as mulatas
e o inca sem gravata

(p. 69)


Conclusão

Concluímos, e repetimos, além de técnicas, de metapoemas, de intertextualidades, de temáticas, importa que o autor, principalmente o poeta, supere ideologias, propagandas, lavagens-cerebrais, prisões de época e de ego, empecilhos de criação e 'esqueletos no armário', desista de bens e heranças, renegue a família e as tradições, e ouse criar o novo, o não esperado, o-que-nem-vamos-digerir-agora, mas as próximas gerações podem assimilar e canonizar.

Afinal, trata-se não de teorizar ou tematizar, mas de viver e sobreviver. Sai e entra governo, mudam-se os planos de previdência social e os planos de carreira, mudam-se as legislações, alteram-se os quadros partidários, e como lidamos com tal efemeridade, fora da torre de marfim? É preciso viver o poema. Viver o poema? Sim, eis uma profissão de fé que soa singela e sincera, o verso que guardamos depois de fechar “Minerar o branco”, do poeta-cinéfilo Ronaldo Werneck, “morrer não vou sem viver este poema” (p. 46)


abr/12

Leonardo de Magalhaens



...

mais sobre o poeta Ronaldo Werneck









poemas de “Minerar o Branco


VEM DA MATA O MENINO


vem da mata o menino
de mim das minas claras
de miniminas raras

vem da mata o menino
no alto-gerais traços
tontos trecos e trapos

vem da mata o menino
solta-se das gerais
de si minas não mais

vem da mata o menino
marilumina a lua
que blue e bamba atua

vem da mata o menino
dobra a noite a montanha
sobre o céu sol de antanho

vem da mata o menino
degredado vem veloz
trensloucado empós

vem da mata o menino
vem-vai-vai-vem agora
verde mato de outrora

vem da mata o menino
vem trem-do-mato tralhas
de minas imantadas

vem da mata o menino
alto mato seu trem
trem-do-mato trem-trem

vem da mata o menino
e do mato no asfalto
mata angústia mato


Copacabana, 29.01.91


...


AH! HÁ CONTROVÉRSIAS


mudo o mundo muda
na praça sem pressa
sim: há controvérsias

um dito um não dito
novas tão funestas
não: há controvérsias

nada mal presentes
fogo na floresta
sim: há controvérsias

fado: fogo-fátuo:
minas é o que resta:
ah! há controvérsias

não às reticências
chagas sem compressa
não: há controvérsias

o preço da pressa
o fausto da festa
ah! há controvérsias

cães na praça restos
no caos que atravessas
sim: há controvérsias

nada tal e qual
na vida adversa
ah: há controvérsias

nem tangos nem tangas
só minas homessa
não: há controvérsias

o pó que perpassa
poalha sem pressa
sim: há controvérsias

em tudo uma fresta
o azul é o que resta
ah! há controvérsias?

E pronto e basta
chega de conversa
não há controvérsias


In : “Minerar o branco” (2008)


terça-feira, 17 de abril de 2012

sobre 'Embarcações' e 'A Singradura do Capinador' - de Luís Serguilha




Sobre as obras Embarcações (Ausência, 2004) e
A Singradura do Capinador (Indícios de Oiro, 2005)
do poeta Luís Serguilha (Portugal)


o transbordar contínuo das palavras do vertiginoso excesso

É com estes sinais abrasadores de cisternas fracturadas
que imoderadamente enamoro as arcadas sulfatadas da
invenção” (Embarcações)

Ofereço-lhes o texto que escrevo, ignoro se o entendem,
como ignoro se a minha presença activa bate asas como
a borboleta que causa um tufão sobre o Pacífico”
(Maria Gabriela Llansol, Anagnoses)

A maldição de pensar fez suas vítimas: em minha geração,
vi muitos poetas se transformarem em críticos, teóricos,
professores de literatura.”
(Paulo Leminski)


A necessidade fremente de deixar transbordar sentimentos nas palavras que compõem o léxico de idiomas, que podem se metamorfosear em vocábulos líricos, tem motivado os poetas e as poetas por toda uma história literária e performática com uso abundante de verbetes inacessíveis aos incautos e terminologias repassadas aos neófitos que se deixam mesmerizar por pseudo-verdades repassadas de geração a geração mas sem nenhuma validade metafísica ou demasiadamente física.

Congregadas por semânticas ou sonoridades nos bailados de sentido e de ritmo, as palavras vem e vão sobre a página ao pulsar dos olhares de leitores embasbacados a perder o fôlego num sem rumo de leituras que o próprio versejar promove ao não limitar as múltiplas interpretações em diferentes e bifurcados níveis de leitura.

Linearmente limitadas cerceadas em teses dissertações monografias memorandos ofícios bulas atestados de boa conduta et cetera, as palavras se prendem num nível de significação a perder todos os outros níveis de leitura e deixando um saudosismo da pluralidade de sentidos que somente o poeta é capaz de captar no mar de vibrações sonoras que poluentemente nos envolvem.

Aqui graficamente o estilo de Luís Serguilha, com fluxo de versos a se espalhar a se disseminar na página, vem lembrar o estilo de Vladimir Maiakóvski, o futurista russo que cantou e sofreu a Revolução Russa de 1917, inovador ao aproveitar todo o espaço onde se desloca o olhar para distribuir a cascata de versos que não se limitam mas se interceptam se interdigerem a se imiscuir em significados uma das outras, a dinamitar as algemas das definições lexicais.

O Estilo poema em prosa ou prosa em verso de L Serguilha deixa-se fluir num excesso de conectivos no/na/s ou do/da/s a costurar sequências seguimentos cadências de substantivos mais adjetivos mais advérbios terminados em -mente, num aprisionamento de palavras com sonoridade afins, proparoxítonas esdrúxulas, em sentidos diversos, antagônicos dissonantes.

É preciso fôlego e tolerância lírica para navegar nas Embarcações (Emb)poéticas de poemas prolixos caudalosos de Luís Serguilha a despejar um vasto vocabulário que desafia o leitor a armar-se de um bom dicionário vulgo pai-dos-burros para servir de bússola e astrolábio nas navegações onde as conceituações típicas de surrealismo e cubismo e expressionismo se perdem nas várias imagens simultâneas e sem sentido sem nexo além da própria expressão vertida do poeta assim nesta “ameaça de incomunicabilidade”, onde o poeta enfrenta o silêncio no emaranhado dos discursos para tecer considerações metafísicas sobre a linguagem como possibilidade se localizar enquanto ser no mundo,

O silêncio enlaça-se na amamentação do abismo para
escriturar uma estrutura ininterrupta debaixo da subversiva folhagem
(Emb, p. 162)

A celebração da homogeneizada fragilidade rumoreja no
fenómeno multiplicado da hibernação
onde a conveniência das distâncias sobrevive à descompostura
nostálgica da sensualidade
que amanhece no écran oceânico dos rostos
(Emb, p. 116)

Caminhamos exaustos na profecia tumultuosa da planície
albergando distraidamente
a regeneração das orquídeas no asilo feliz do sol
(Emb, p. 141)

Partimos como pianistas enrolados nas sentinelas dos ecos
desejando o alarme incorrigível das estrelas marítimas
Filtramos as irreconciliáveis lavanderias das construções
sobre as delicadíssimas transmutações dos astronautas
(Emb, p. 144)

As embarcações desnecessárias bebem as expectativas
dos hospitais crepusculares
que formulam as coincidências dos sulcos
entre os pomares inexplorados do deserto
(Emb, p. 155)

Isto tudo porque somos a iniciação fértil das coincidências dos lábios
tempestivos
Isto tudo porque os parágrafos fluviais das árvores órfãs
evitam sinuosamente
os jarros impudentes do frontispício solar
(SC, IX, p. 42)


Meio ao discurso verborrágico, nas reações em cadeia de palavras e metáforas, podem se destacar as pérolas líricas onde as imagens poéticas as figuras de linguagem podem alçar voo das páginas amontoadas de símbolos signos significados onde o poeta precisa “perder a dor minuciosa da escrita para recortar os subterfúgios das raízes sonolentas”, e as pérolas líricas surgem dispersas dentro das ostras encadeadas no esforço do transbordar de signos enleados por afinidades lexicais ou sonoras ou desafinidades de semântica, ou seja,

A cavalgada confiante dos dedos eleva-se na breve luz
das árvores desocupadas
onde a desordem inteligente dos enxames fecha precisamente o
glossário tacteado da alegríssima seiva
(Emb, p. 111)

A fisionomia dos terraços regulam a particularidade das alfaias
abandonadas
onde o trote brilhante dos castanheiros alisa o desarme das estações
metamorfoseadas
(Emb, p. 131)

Os pássaros dissimulados entre as palhetas de sol
parecem lavradores a simplificarem
a orientação dos minúsculos helicópteros no rumor incestuoso das
manhãs
(Emb, p. 136)

A contradição latente das flores apercebe-se do estremecimento
remotíssimo das maxilas de terra
manejadas delicadamente
pela realeza cinzelada nos convés das
indeterminadas vegetações
(Emb, p. 147)


O marfim dos alvos atravessa a lembrança majestosa dos poentes-suicidas
como uma projecção de interruptores das colinas
sobre os mensageiros dos liquenes dos animais
modulando imperceptivelmente
a milenar batedura dos olhares sonhadores
(SC, VI, p. 35)

O sol e ópio das metáforas deleitam o recolhimento dos anéis aquáticos
na mobilidade contrária às hélices dos corações exóticos
(SC, VIII, p. 41)

Os solitários voos lançam-se nos vacilantes tronos das savanas
onde as preguiçosas combustões encrespam os gracejos
furtivos das pálpebras
(SC, XI, p. 47)

Os amantes inventam as acanaladuras das ginjeiras
sobre esquecimento isolador das cavernas
para consumirem os liames das transparências
entre as descobertas estonteantes dos girassóis
(SC, XIII, p. 56)

como lençóis nebulosos a engrandecerem as teias anatómicas do tempo
(SC, XXII, p. 82)

Um coração selvático estilhaça-se nos mastros tocadores
das pastagens antropológicas
para compartilhar o mistério redondo das constelações
(SC, XXIV, p. 90)

onde o tear mutante do oceano restaura a verdadeira morada dos amantes
(SC, XXXVII, p. 120)


Onde as descrições se perdem e se encontram nos entrechoques de imagens metafóricas e intercaladas simultâneas de registro verbal de evento pictórico assim um crepúsculo recriado pela linguaguem em torvelinhos na página 137 de Embarcações,


Partimos nos desenhos hidráulicos dos pintassilgos
que entrechocam pacientemente nos
suicídios da luminosidade
remodelando os cotovelos desastrados das cidades
sobre as tesouras das lavagens ainda amarelas
são nuvens de aveia estremecendo num dicionário de silêncios
como transitórios e esbeltos muros no interrogatório ambicioso
dos poentes
são ensaios intraduzíveis das adormecidas algas
sobre o ensinamento decisivo das lutas crepusculares
equivalentes aos aposentos subtraídos dos xistos
perpetuamente desalinhavrados


ou na página 69 de Singradura do Capinador,

As constelações dos pássaros beligerantes ponteiam perfeitamente
a congruência dos grãos das fortalezas
como a colagem musical das casas caleidoscópias a invadir as manobras
geométricas das rendilheiras
sobre a consciência silenciosa das amplas bússolas


Um excesso de imagens certamente a criar uma vertigem cinematográfica sinestésica de movimentos em caleidoscópios, pois “a sublimidade dos pormenores cinematográficos mergulha nas engrenagens dos divãs aéreos para trespassar serenamente a consonância inominável dos intérpretes”,

As arquitecturas velocíssimas das antenas verdes
derramam demoradamente
as curvaturas dos pássaros convulsivos
até ao equador alternativo
das guitarras selvagens
(Emb, p. 99)

As atléticas borboletas cultivam o êxtase azulado do florescimento
sobre a fidelidade reajustada das rodas de resina
e as bagagens dos pássaros citadinos
equilibram prodigiosamente os cruzamentos
do lugar claro
na disponibilidade da veterana chuva
(Emb, p. 104)

O zumbido do sangue projecta-se depurado na nulidade da labareda
para reavivar as ligações das fábulas nas
épicas cacimbas solares
que recompõem internamente
os forros astronómicos da periferia fluvial
(Emb, p. 113)

as laborações das sílabas flamígeras das colinas
como a dramaturgia a prumo fluindo
sobre os abastecimentos quotidianos das janelas
alucinadas
(Emb, p. 124)

As frontarias febris dos veios terrestres cambaleiam
para desordenarem as pupilas dos rouxinóis das laranjeiras
(SC, XXII, p. 85)

As cores prodigiosas dos insectos abençoam as exaltações das maçãs
na confluência do fogo
é aqui que a impressão necessária da água soergue
os exercícios enigmáticos das finíssimas armaduras
(SC, XXX, p. 99)



Imagens sensuais eróticas insinuantes podem se ocultar no meio de semelhante palavreado a distrair nossa atenção do que realmente importa, “convivências das bocas” “ancas felizes” “convicções soalheiras dos lábios” “orlas morenas do sexo” “seios esplendorosos” “fenda voluptuosa” “reavaliadas coxas” “desfiladeiro caudaloso das coxas” “maçãs disciplinadas dos beijos” “docemente um umbigo desnudado inclina-se na recompensa instantânea dos trigais” a comporem um mosaico de sensualismo disperso que parece estar nos bastidores de todo o fluxo jorrante de verbetes pretensamente desconexos, “a cavidade dos espasmos” “cópulas dos fogos rasteiros” “anarquismo da pélvis universal” “sede propulsora dos ovários” “parapeitos genésicos as mulheres tântricas” tudo embolado interpenetrado a lembrar aquelas imagens dos templos indianos com miríades de posições sexuais orgiásticas de kamas sutras e afins.

Os talos nocturnos anotam genialmente o
vidro do desregramento na crispação da voz
e nas procurações das mãos passam contrafortes de
formigueiros cheios de oprimidos canaviais
a confessarem principalmente
a voluptuosidade do incêndio azul
sobre a fascinação sobreviente da invadora jangada
(Emb, p. 108)



Nos parapeitos genésicos as mulheres tântricas discutem a imperfeição
dos ciclos das piruetas lunáticas
que vaticinam os sismos das arquicteturas pélvicas
sobre as resinas capitosas das pálpebras

(SC, XII, p. 49)


Intercaladas percebem-se as várias leituras possíveis de determinados trechos em diferentes disposições tabulações na página em exemplo que destacamos em Singradura do Capinador (SC, p. 23),

1 A orquídea cósmica reúne minuciosamente os imponentes
2 amparos da livre plumagem
3 para inclinar os lábios purificados da cidade-desembarcadouro
4 na preciosidade da momentânea tempestade
5 e a demarcação esplendente das rosáceas enfeitiça a fertilização
6 dos golpes equilibrados nos profundos inventários das mós atlânticas
7 onde as cortinas inenarráveis dos úteros se contraem sonoramente

onde são possíveis as leituras pelas tabulações semelhantes onde seguimos a sequência 1 + 3 + 5 + 7 em leitura paralela a sequência 2 + 4 + 6 e ambas criam sentidos significações textuais diversas e assim por diante, p. 52,

1 As barbatanas mágicas bamboleiam nas garatujas dos ventos
2 para atrelarem os colares da abstracção às fulvas campânulas
3 das hospedagens
4 onde os estandartes aspiraram fortemente os percursos escarpados
5 das chuvas
6 como montanhas exaustas a manipularem as transferências das
disposições exóticas

e assim por diante, em experiências nas páginas seguintes, por exemplo a página 57, que eu deixo por conta do leitor, enquanto prosseguimos nas experimentações, nas páginas 58 e 59, com outras disposições de leitura, a lembrar os exemplos estudados por Roman Jakobson, de seleções e colagens de eixo sintagmático e de eixo paradigmático, segundo uma nomenclatura de Saussure, aqui citamos

A seleção é produzida sob a base da equivalência, da similaridade e dissimilaridade, da sinonímia e antinonímia, enquanto a combinação, a construção da sequência baseia-se na contiguidade. A Função poética projeta o princípio de equivalência do eixo da seleção para o eixo da combinação. A equivalência é promovida a fator constitutivo da sequência.” (citado em “Bakhtin e O Formalismo Russo” de C. Tezza, 2003)

no/na/s + substantivo* + do/da/s + substantivo (*ou substantivo + adjetivo + adjetivo ):

que se debruça nos vestíbulos aniquilados
nas escaleiras distantes das artérias
nos casebres incessantes das praças......

ou repetição de sequência + verbo + substantivo + adjetivo + do/da/s + substantivo:
O esforço do fogo volátil ordena a indolência calamitosa das árvores
O esforço do fogo volátil desenraiza as irregulares fisionomias das perguntas....

ou na página 63, com o esquema

onde o/a/s + substantivo + do/da/s + verbo + substantivo + do/da/s + substantivo:

onde as grainhas dos pássaros cinzelam as cabeças das vegetações
onde as passagens dos diademas possuem os orgasmos
dos insectos nómadas
onde o vértice estancado das estrelas improvisa as analgias.....

sem contar que o Eu Lírico está sempre a relembrar ao Leitor que tudo se trata de um universo auto-referente nos metalinguísticos dizeres de “a fuga arquitetural das palavras” “as engrenagens das línguas” “as abóbadas auspiciosas das línguas” “os nervos elípticos das metáforas” “o lirismo redemoinhante dos fósseis” “os sinónimos árcticos dos veleiros-parábolas” a situar o derrame de palavras enquanto poesia no próprio plano discursivo de estar vertendo poesia onde o artesão revela as tessituras exibindo sua arte onde a poesia é recuperação sonora é oralidade despejada pois “os músculos da canção são amorosamente flagelados” e “onde o colóquio tentacular do guitarrista se metamorfoseia no adágio altíssimo das travessias

Eis as várias leituras em níveis escalonados na página em branco graficamente farta e inchada nos possíveis e impossíveis níveis de leitura de um 'lance de dados a não abolir o acaso' de um prestidigitador Mallarmé, a brincar com signos e significados, lutando 'a luta mais vã' com as palavras, disposto, tal um Drummond, a viver e morrer pela literatura em glória e vã-glória.


Obviamente que tais departamentalizações são meramente didáticas, pois o lírico o existencial o erótico o discursivo o semântico e o hermético estão lado a lado nos cataclismos da linguagem em cascata de sons e sentidos a pavimentarem estradas de sonhos para as famigeradas imagens poéticas tão ansiadas pela cosmovisão lírica de Octavio Paz a exaltar a 'primivitividade' dos signos na fala do poeta da poeta que resgatam o idioma primevo da palavra plurissignificante.

Seja poema em prosa ou prosa poética, o Estilo de L Serguilha mostra-se apto a emaranhados de sentidos na leituras possíveis ao mesmo tempo em que deve certamente ironizar a falação contemporânea o excesso dos planos discursivos as encenações verbais que não passam de retórica com suas palestras verdadeiras quedas d'águas de belos floreamentos verbais a dizerem absolutamente nada.

Querendo ou não, consciente ou não, a Voz Poética desvela o sem-sentido das verborragias cotidianas nos conceitos traçados sobre os interlocutores num jogo encenado de interlocução ou de comunicação ou de dialogismo como bem queriam um Saussurre, um Bakhtin, um Habermas ao demonstrarem de forma integral os níveis de interação entre os enunciados e os enunciadores, entre os remetentes e destinatários que se reconhecem interpenetrados pelo mesmo universo simbólico quando usam -- e também são usados -- pelas palavras.


Embarcações” (2004)
A Singradura do Capinador” (2005)


LUÍS SERGUILHA nasceu em 1966 em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Poeta e ensaísta, suas obras são: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Lorosa´e Boca de Sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do Vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), estes últimos em edições brasileiras. Seu livro de prosa intitula-se Entre nós, de 2000, ano em que recebeu o Prémio de Literatura Poeta Júlio Brandão. Participou em vários encontros internacionais de literatura e possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil e em Portugal, além de outros trabalhos traduzidos em língua espanhola e catalão.


fev/mar/10
(revsd: abr/12)
 

por leonardo de magalhaens


Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa), 34 a., é belorizontino, é escritor e tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem engavetados três volumes de poesia e três volumes de contos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seis volumes.

Tem divulgado sua contribuição ensaística de crítica literária, se especializando em autores vivos, demasiadamente vivos.

Participa como poeta oficineiro no Pão e Poesia nas Escolas, projeto criado pelo poeta Diovani Mendonça, que leva oficinas de sensibilização poética para alunos em escolas, no Barreiro / BH e Brumadinho, em parceria com a V & M do Brasil.

Atualmente persiste no curso de Letras na FALE/UFMG, com ênfase em Literatura Brasileira - Poesia.