segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Os Mortos

Os Mortos



    Reclinado na cama, em confortável postura, o homem tentava terminar o parágrafo. Leitura lenta e pausada, sempre interrompida. Eis que a mulher voltava alisando a camisola.

    - o Natal é uma época mágica...

    A voz melodiosa dava uma conotação dançante às sílabas banais. O parágrafo parecia longo demais. Descrições se arrastavam levando os olhos por um passeio nos litorais de cera capital europeia.

    - a expectativa dos presentes, aliás, a própria troca de presentes, entende?

    Duas mocinhas observavam o acariciar ruidoso das ondas nas fendas dos rochedos. Um homem passeava na praia. As mocinhas seriam sereias?

    - minha mãe que o diga... quando o Natal, você sabe...

    Dublin. A cidade do livro. Chama-se Dublin. E ele, o leitor, já quase esquecia o capítulo anterior. Aquela literatura era muito prolixa. Prolixa. Um termo que ele aprendera recentemente. Certamente em alguma palavra-cruzada, ele que não detinha diplomas, nem era formado (ou formatado, como ele dizia.)

    Em Dublin, um homem vagueava tentando vender anúncios para um jornal. Sua mulher o traía. Seus colegas o ironizavam. Suas palavras eram desprezadas.

    - não importa se é consumismo... comprar é sempre prazeroso...

    Não, ele não discutiria. Não devido ao preço do livro. O livro que estava em suas mãos. Ela fora longe demais? Ou afinal compras são compras? Toleráveis até que estouram o limite do cartão de crédito?


    Na cidade que ousam chamar de Dublin, um homem comum perambula por infindáveis mil páginas (não tanto assim, afinal ele não lera um romance em série que finalizava após três mil? Coisa de francês...)

    - e o papai noel é um símbolo. E cristo é outro símbolo. E o que não está à venda...?

    Ela evitava desabafar, mas quando começava era melhor falar e falar tudo de uma vez. Afinal era a única época do ano em que tinha dinheiro.

    Na cidade de Dublin, num anoitecer, o homem procura o eterno feminino, idealiza sereias, ouve o ressoar dos sinos e o revoar dos morcegos. As mocinhas são o desejo inalcançável. Insaciável.

    - veja que eu até sou paciente... não fico aí investigando suas contas...

    O cara de Dublin é traído. Sem lugar no mundo, tal o Judeu Errante. E vergonhosamente traído. Sua mulher uma tal de Molly. O homem (agora o leitor, confortavelmente reclinado em seu leito conjugal) pensa em suas suspeitas. Claro, convenhamos, que de início tudo foram flores. Literalmente.

    A praça. A flor ofertada meio ao trânsito. As sereias são meras buzinas. Os rochedos são motoristas estressados. A praça. Entupida de gente. Gente, gente aos montes. Nenhum banco disponível. Exposição em série de casais aos beijos e abraços. Gigantesca vitrine da libido.

    Depois ele voltara para reviver a cena. Encontrara um poeta (velho amigo) e a praça isolada. Atores em trajes de época, figurinistas apressados, seguranças carrancudos, câmeras de TV. Estavam gravando o capítulo de um minissérie. Outra superprodução global. Aí alguém comentou que um tal Juscelino fora prefeito da cidade. Que Juscelino? O JK? Ele nem se lembrava mais. Agora revivia a igrejinha às margens do lago (pouco idílico, visto que poluído...) e lembrava que sua relação com o passado era realmente meio televisiva.

    - mas você nunca presta atenção no que eu digo... fica aí olhando pro teto... eu falando que nem uma idiota. Depois não quer que eu fique irritada...

    A praça. O banco junto a fonte luminosa. As estátuas gregas. Tudo isolado. Tudo privatizado. A praça retrocedera no tempo e seus transeuntes se tornaram figurinistas.

    - você acaba com o meu humor...

    O cara de Dublin também não se dava muito bem com a mulher. Ele (o leitor confortavelmente reclinado etc) sabe que no final a mulher (a do livro, a tal Molly) fica a noite toda num palavrório mental sem pontuação e parágrafos. Ele, o leitor, fique claro, teme que a mulher, a dele, obviamente, fique no mesmo estado prolixo (ele adora esta palavrinha!) e em infindáveis cirandas verbais. Ele preferiria que ela pensasse em imagens. Que tal se ela fizesse uma oficina de pintura? Ele até compraria umas cópias de Van Gogh, Monet, Picasso ou Munch.

    Pensar em imagens é difícil, ainda mais num hospital cheio de estudantes falastrões (outra palavra que ele, o leitor, obviamente, adora!)

    - eu só queria agradar, você sabe.

    O leitor confortavelmente reclinado em seu leito conjugal desvia o olhar dos signos linguísticos e observa o deslizar da mulher sob as cobertas. O cheiro de uma fragrância floral se insinua entre os parágrafos. O homem lembra de suas primeiras noites de paixão e confiança, embalados por melodias marroquinas e baladas líricas. O incenso deixando aquela névoa no quarto, enquanto os corpos saciados esperavam uma ducha quente, para repousarem enlaçados.

    Por que o homem (o leitor, obviamente) se ocupa de outro homem (o do livro, claro) quando sua esposa o espera ao seu lado? Poderá ele reclinar o livro (quem sabe até fechá-lo!) e dormir sossegado? Negará uma massagem nos pés da amada? Não se entregarão à brincadeiras noite adentro?

    Uma criança é dolorosamente parida em Dublin aquela noite. Dores do parto. Ele que nunca vira na mulher uma mãe. Ele que sempre quisera aquele corpo - e toda a atenção possível - apenas para ele e sua satisfação. Filhos? Para que fazê-los?? "Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-lo?" E parava, coçando os sobrolhos. Ele ali deitado lembrando palavras de um morto! Claro, os poetas são eternos, ainda mais aquele ali, o velho Moraes.

    - eu só quero que você seja real comigo... que seja você mesmo.

    O homem que anda por Dublin (ele ainda anda por Dublin? Um século depois? Ou ele para de andar quando fecho o livro?) também almeja ser real, mas não passa de uma personagem de romance! Ele quer ser íntegro, mas não é atendido, ninguém lhe dá uma chance. Ele anda falando consigo mesmo. Escondendo um EU de outro-EU. O homem que anda Dublin, num dia qualquer de junho, verão irlandês, estará realmente morto? (ele morre no final?) estará realmente morto o autor? O ilustre, imortalizado autor?

    - ora, largue isso, essas velharias!

    - Ahn? Hein?

    - ora, você sabe. James Joyce está morto.




(texto escrito em 2006)
Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com





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