segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Uma festa inesquecível. Conto by LdeM. BH, 2024.

 





Conto


    Uma festa inesquecível 


    1


    -- Bruno, faz favor de atender o interfone, meu filho! 


    Era a minha mãe gritando da cozinha. Ideia dela de comemorar aqui mesmo o niver de 45 anos. Uma hora dentro da cozinha com a tia Bruna (daí vem o meu nome...) e a prima Melissa, correndo entre a pia, o forno e a geladeira. Melhor ter pedido umas pizzas. 


    Fui atender. Era a Luma, a amiga da minha mãe, também professora, lá na escola municipal. Ela chegou com o noivo, que chamam de Messias, e o irmão dele, o Lemos, da empresa Lemos & Filhos. 


    Gente muito educada e saudável. Descobri que o Messias é personal trainer, com academia na Pampulha. Não entrou para os negócios da família Lemos, percebe-se. 


    Papai e o Xavier (meu tio, marido da Bruna e pai da Melissa) deixaram o churrasco por um minuto e vieram fazer reverências aos recém-chegados.


    Parece que até abaixaram o volume do som. Papai é daqueles fãs de MPB e sempre ouvindo Caetano e Gil quando pode.


    Alguém me perguntou se eu estudava engenharia. Claro que me confundiam com papai, que tem trinta anos de carreira na construção de shoppings por aí. Eu explico, tranquilamente, que sou do Direito, que tem muito corrupto por aí precisando de bons advogados. 


    Alguém riu. Não lembro se o Messias ou o irmão dele, o Lemos. Estavam todos juntos, suados e ofegantes, cuidando do churrasco. Eu fiquei na varanda e ouvia tanto pedaços de conversa da cozinha, quanto fragmentos ao redor da churrasqueira. 


    As mulheres falavam sobre preços aumentando, ou compras para o Natal e Réveillon, enquanto abriam e fechavam o forno, ou guardavam as saladas na geladeira. 



    Nisso chegou a vizinha, a Dona Vanda. Sem o marido e o filho. Aproveitaram o feriado para uma pescaria. Com mais pratos e dois refrigerantes, a vizinha entrou e não demorou em se misturar nos afazeres da cozinha.


    Papai trocou a soundtrack. Alguém pediu bossa nova. Ok. Mas o tom da conversa continuava o mesmo. Uma mistura de religião e política. Tudo porque alguém comentou sobre as eleições nos States e outro sobre um cidadão perturbado que jogou bombas no Supremo Tribunal em Brasília. 


    Parecia que papai e o Messias faziam uma dupla de esquerda. Papai um católico que foi líder estudantil, e hoje é do sindicato. E o Messias que é da geração saúde, um cara 'super-mente-aberta', que vota nos progressistas. 


    O Xavier, o meu tio, todos já sabemos que é daqueles evangélicos da teologia da prosperidade que vota com a direita e apoia os judeus contra os palestinos terroristas. 


    Logo o Lemos começou a apoiar o Xavier, numa comunhão dos empresários, ou justos empreendedores, na cruzada contra o Estado inflado e gastador. Interessante que o Lemos, fui descobrindo, é filantropo, conhecido por doações aos lares espíritas. O resto da família só pensava em ganhar dinheiro. Exceção ali é o Messias, um jovem anarquista, agora dono de academia. 


    Na cozinha as mulheres falavam de contas pra pagar e as dívidas futuras. Haja cartão de crédito! Tia Bruna é daquelas que gastam mesmo. O marido empresário que pague as contas. Minha tia idolatra o marido, símbolo da prosperidade, e não hesitou em se batizar na igreja dos evangélicos. Ela que sempre acompanhava mamãe quando jovens seguiam para as missas. Mamãe nunca foi devota, mas gosta de ler a Bíblia. Papai nem isso. Ele continua católico por inércia social -- "Porque ainda não tivemos justiça social", ele diz. 


    Papai insiste que não conhece evangélicos de esquerda, que todos ficam aí comemorando a eleição do Agent Orange lá pra White House.


    -- Um cidadão que deveria estar preso! O que acontece nos States? O cara vira Presidente! 


    Aí titio Xavier vai lembrar que a culpa é das esquerdas, com esta doutrinação woke, e sem preocupar com os trabalhadores, só nessa de identitarismo e tal. Então o Lemos começou a fazer um discurso do atrasado das esquerdas ditas progressistas que nem entendem de redes sociais, o verdadeiro termômetro das campanhas políticas. 


    O Lemos falando até deixava o irmão Messias sem fôlego. Até parecia que fazia tudo isso mais para irritar o irmão do que para apoiar o tio Xavier. 


    Alguma treta aqueles irmãos tinham no armário. Mas a discussão não seguiu porque as mulheres chegaram com pratos e talheres. Tia Bruna trazia as saladas e um vinho. A Melissa correndo com as travessas de empadas e coxinhas. Mamãe seguia atrás com a panela de arroz temperado. 


    Eu olhava pra Melissa mas ela me ignorando. Novo corte de cabelo, batom brilhando, unhas com efeitos. Lembro que duas vezes puxei assunto. Sabia que ela estava nos ENEM da vida.... Psicologia ou nutrição, algo assim. Mas ela nem queria saber de estudos... É daquelas que só estudam pra passar. Acho que sou mesmo o único nerd da família. Só porque eu leio os diálogos do Platão....


    Mas se Melissa nem olhou pra mim, não disfarçava os olhares para o Lemos. Logo vi que a coisa ia desandar. O Lemos falava e falava para conquistar a confiança do tio Xavier, e nisso, mais cedo ou mais tarde, ele acabaria duelando com o próprio irmão. 


    O Messias até parece um messias daqueles de filme religioso. Tem barba e cabelo longo preso. É moreno e tem fala mansa. Mas não demora muito e o homem se exalta. Por exemplo, ele acha que religião é perda de tempo. Religião é esse lance de assistência e tal. 


    Dar esmolas? O povo continua aí pedindo esmola! Filantropos não mudam nada ... Cadê a justiça social? O povo precisa se organizar.... Deixar de viver das migalhas...


    O discurso leninista ali não seria aceito, logo se viu. A professora Luma, até então a mais calada, foi falar pro noivo pra ele não falar de política e tal. Messias perdeu a pose messiânica e fez cara feia para a noiva. Será que só eu percebi? 




    2



    A sorte foi que dona Vanda começou a arrumar as coisas na mesa e chamar o pessoal para se servir logo, antes que tudo esfriasse, ou chegasse mais chuva. "Não viram que choveu tanto aqui que a lagoa do Nado se rompeu e vazou toda?!"


    Aí começaram a falar de BH debaixo daquela água toda. Vilarinho inundada, carros e pessoas arrastados. Pânico geral. E daí a falar mal dos políticos de BH, que era uma vergonha a esquerda apoiar candidato continuísta de direita pra não votar em candidato de extrema direita. 


    "Por que não se uniram logo numa candidatura forte de esquerda?" Era o meu pai falando. Mas o tio Xavier entrou defendendo a 'mudança' que seria a eleição do candidato da direita, da verdadeira direita, que isso de 'extrema direita' era propaganda esquerdista...


    E Dona Vanda se preocupando em servir todo mundo, pois mamãe já ficava nervosa com tanta falação, aqui ali era uma reunião de família, mas parecia mais um barril de pólvora. 


    Para evitar discutir com o titio Xavier, papai logo foi virar a carne e cortar mais porções de churrasco. A fumaça tomou conta da varanda. "Parecia gelo seco em show de rock." O comentário foi da prima Melissa e gerou risada geral. 


    Todo mundo comendo e ouvindo Marisa Monte. Se via que o tio Xavier e a professora Luma preferiam um gospel. O Messias perguntou se podia tocar um Tom Zé. Papai se levantou e buscou o controle do som. 


    Eu pouco me ligava pra trilha sonora A ou B. Observava os olhares da Melissa para o Lemos. Vimos logo que o homem é dos veganos. Encheu o prato de salada. Comeu a farofa, mas nem mexeu na carne. A tia Bruna também fazia o tipo vegano e parece que a Melissa estava seguindo a dieta da titia. Quanto mais salada aparecia no prato do empresário Lemos, mais transbordava no prato da Melissa. Estranho fenômeno. 


    Tio Xavier fazia tudo para agradar ao Lemos e o Lemos fazia de tudo para ter a confiança do tio. Melissa, entre o pai e mamãe, correndo os olhos de um para o outro. 


    O Messias trocava amabilidades com papai, que servia mais carne. O personal trainer gosta de carne bem passada. Nisso era acompanhado pela noiva, a professora Luma. A colega de mamãe era a pessoa mais calma e serena ali. É de família de religiosos (testemunhas de Jeová, segundo me disse mamãe, depois) e seguia em tudo com muita fé e prudência. Algum dia poderia ser diretora da escola. Por enquanto é a professora de matemática. 


    Mamãe seguia outra carreira, cuidava das aulas de português e de redação e de inglês. Não tinha a cabeça de Exatas, cheia de números, aos moldes do marido engenheiro e da colega. 






    3



    Depois da farta ceia e de um início de discussão sobre se a República nasceu de um golpe militar, "o primeiro de muitos que vieram" , segundo o meu pai dizia,  a dona Vanda teve uma inspiração de pedir logo o sorvete de chocolate e flocos, antes do bolo de aniversário e do happy birthday for you... 


    "Democracia ainda não daria certo no Brasil porque aqui o povo não sabe votar", papai dizia, experimentando o sorvete, e olhando para o tio Xavier que já preparava a resposta, "O povo vai aprendendo, veja aí os protestos de 2013, o povo quer política decente e Estado mínimo...", e o Messias olhava perplexo o homem, que se dizia conservador, aplaudindo protestos populares.... "Era agora o pessoal de direita que apostava no vox populi.... O povo sabia votar? Votou num populista que virou genocida durante a terrível pandemia.... " 


    Ainda bem que a discussão não seguiu mais. A noiva tocou de leve no braço do noivo exaltado e fez leve carícia de "acalma os nervos, meu filho ", sei como é.


    Então o sorvete foi recolhido pela dona Vanda e pela Melissa enquanto os homens elogiavam o magnífico jantar. De barriga cheia o bom humor voltava a reinar. 


    Depois de tocar umas músicas da Adele, que foi pedido de Melissa, todo mundo se juntou na varanda em torno do bolo de aniversário. Dois andares e todo enfeitado de pétalas lilases. Duas velas rosa chock: 4 e 5… Pediram discurso e mamãe agradeceu e agradeceu. Que nossa família seguia unida ( mamãe abraçou a tia Bruna) apesar de toda política que assolava o país etc. E deu o primeiro pedaço de bolo para papai, que, surpreendido, quase engasgou. (Também eu pensei que o bolo seria para a tia Bruna....) 


    Papai ficou calmo depois da gentileza de mamãe. E a discussão foi ficando entre os irmãos Lemos, com o forte apoio do tio Xavier ao empresário Lemos. O personal trainer lançava olhares de socorro ao meu pai, mas ele agora só dava atenção para mamãe. 


    Todos viram que os irmãos estavam exaltados, mas ninguém imaginou que daria treta e soco na cara. Aliás ninguém viu a briga. Só percebemos, um tempo depois a calma professora Luma entrar na sala com os olhos chorosos, a pedir desculpas pelo noivo, e aquela confusão com o irmão. Eu não entendi. E onde estava Melissa? Depois do happy birthday e o bolo de dois andares, cadê a Melissa? 


    Lembro que fui ao banheiro, depois olhei mensagens no zap, depois mandei fotos nas redes sociais (é, realmente, preciso sair das redes sociais...) e só voltei a me materializar ali na hora que acabava a novela global das nove. 


    Pouco depois da vinheta do Globo Repórter, que falava de animais e vida silvestre, é que entrou a professora Luma a pedir desculpas, e morrendo de vergonha. Precisava ir embora. O noivo dela estava de treta ( ela não usou estes termos...) com o irmão. 


    Depois o tio Xavier entrou brigando com a Melissa, que nem olhou pra ninguém e foi buscar a bolsa dela lá no quarto dos hóspedes. 


    Aí foi a tia Bruna conversar com a professora Luma. As mulheres falavam baixo, por isso não entendi. E ninguém me explicou. O que explicava tudo era a cara borrada da Melissa, minha prima. 


    Os irmãos não tinham brigado por causa de política? Por causa do Trump? Por causa dos eleitores de BH? Por causa da injustiça social? Ou por culpa do globalismo? 


    Não tinha testemunha, era a palavra de um irmão contra a do outro. Parece que a gota d'água foi o Messias surpreender, lá na garagem, o empresário Lemos roubando um beijo da minha prima vestibulanda. E Melissa não confirma, nem nega.



Nov 24




LdeM


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG


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