sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um bom vizinho (ou: Um filho de Deus). 2024. Conto by LdeM.





Conto 


Um bom vizinho

(ou: Um filho de Deus)



    1


    Pretendo, neste curto relato, narrar a vida e as memórias de um homem excepcional. É com coração entristecido que falarei do nosso vizinho, o Sr. Veiga, cujos funerais se deram ontem. Ele conosco conviveu por duas décadas, depois de viúvo, aos cinquenta anos.


    É uma história triste e, ao mesmo tempo, de esperança. Um vizinho que nunca nos deu motivo para reclamação, lá no pacato terceiro andar, tendo que suportar os tumultos festivos dos andares acima. 


    O Sr. Veiga perdeu sua saudosa esposa Carmem, quando ela completaria cinquenta anos. Foi um caso de tumor que começou no seio. Quanto a ele, o homem tinha passado há pouco tempo do meio século.


    O casal se conheceu lá nos anos 70, época do regime fechado no Brasil. Ele era um estudante de Direito, porque o pai assim desejava. Sim, ele foi ser estudante de Direito e, para contrariar o pai, foi fazer amizades na esquerda católica. 


    Um bom católico, o Sr. Veiga. Nas missas toda semana e nas campanhas do agasalho. Recebia os romeiros e fazia as rezas com os devotos. Era mais amigo do sacristão do que do Padre. 


    Foi tudo seguindo assim por um tempo (cinco anos?) até que ele conheceu uma colega caloura. Carmem começava o curso deslumbrada com o mundo da faculdade. Não se enturmava bem, mesmo observando os  estudantes. 


    Depois os grupos de estudantes se dispersavam, ora subindo para a Praça, ora descendo para o Parque. Ela esperava o ônibus em frente ao edifício Maletta. O mesmo ônibus no qual embarcava o Sr. Veiga. Na época, o bacharelando Valdo P. Veiga. 


    As conversas com Carmem aconteciam entre a Augusto de Lima e a Assis Chateaubriand, onde Carmem descia. Ela era delicada e belíssima. Uma beleza não deslumbrante ou insinuante, mas de um carisma sossegado. 



    


    Três anos depois e estavam noivos. Boas famílias e boas propriedades. Bairros entre a Floresta e a Sagrada Família. Mas só uma coisa desagradou ambas as famílias: a de Veiga era tradicionalmente católica, enquanto a de Carmem era de protestantes ou reformados, ou, como dizemos, evangélicos.


    Os evangélicos na época eram raros e pouco apareciam. Eram chamados de 'os Bíblia ', pois andavam engravatados e com a Bíblia volumosa em mãos. Pareciam mesmo exibir a Bíblia ... 


    Católicos iam pra missa de roupa cotidiana e não se acompanhavam com suas Bíblias. Aliás, a Bíblia do Sr. Veiga ficava no quarto com a página aberta nos salmos. Vez ou outra, ele até lia um ou outro salmo do Rei Davi. Mas ele nunca se imaginou andando por aí com um Livro Sagrado...


    Tanto o Sr. Veiga quanto a esposa eram fervorosos na fé cristã, mas a Sra. Veiga era bem mais. Quando eles se casaram, ela tinha se formado, mas nunca exerceu a profissão. Ela então ficou por conta dos afazeres domésticos... E, com tal perfeição, que o Sr. Veiga nada falava dentro de casa. Só quando elogiava! 


    Muito apegado a esposa, o Sr. Veiga a acompanhava até os cultos, na praça Raul Soares. Nos primeiros dias, ficava na praça contemplando os arbustos globulares e a fonte luminosa. Mas depois se acostumou a entrar no templo reformado. 


    Dona Carmem também acompanhava o marido até a missa, uma vez por semana. Mas o Sr. Veiga nada tinha de devoto, então às vezes deixava passar duas semanas. Ou acompanhava algum feriado santo. Só Páscoa e Natal eram comemorados em família. Que aumentou logo: dois filhos e uma filha. 


    Aconteceu que o Sr. Veiga mais participava dos cultos do que das missas e ele abriu o coração para a fé reformada e a sola scriptura. Passou a ler a Bíblia que ficava empoeirando no quarto. Salmos e Provérbios e Eclesiastes e os Evangelhos. 


    Em pouco tempo o Sr. Veiga estava batizado na igreja reformada, para desgosto da tradicional família católica. O pai conservador foi o que mais se sentiu ofendido. Nas poucas visitas, o patriarca dava mais atenção aos netos do que ao casal... 


    O tempo passou e o Sr. Veiga esqueceu os feriados santos e as novenas e as preces aos santos e santas. Não tinha mais imagens da Virgem Maria.  Continuava reverenciando a mãe de Cristo, mas, agora evangélico, não demonstrava.


    Sr. Veiga, um homem pacato, um crente que não discutia religião. Ele se sentia zonzo com tanta confusão e tanto conflito entre os cristãos. Quando aquele pastor pentecostal chutou uma imagem de Nossa Senhora, em plena rede de TV!, o Sr. Veiga passou mal, e fez questão de pedir desculpas aos amigos católicos.


    Numa geração em que meus avós estavam ouvindo Tropicália ou Jovem Guarda, ou Novos Baianos ou Clube da Esquina, o Sr. Veiga e dona Carmem ouviam música sacra ou hinos gospel, canto gregoriano ou cantatas. Não tinham vida social fora do ambiente religioso. Não bebiam vinho nem no Natal. Vez ou outra algum programa de TV, mas geralmente preferiam o rádio. Passaram assim a vida. 




    Assim, o tempo passou. Na sua carreira de funcionário público, o Sr. Veiga criou os dois filhos e as filhas. Um virou advogado mesmo, até reconhecido. Outro, foi para as Exatas, é hoje um professor universitário de matemática. A filha estudou artes plásticas, passou um tempo no Rio de Janeiro e lá namorou e casou com um jovem de Copacabana. Duas vezes por ano, ela passava uns dias em Minas com a família. 


    A vida seguiu passando da aurora ao poente. Até que subitamente a doença da dona Carmem. Foi um choque total na família. Os custos com tratamento esvaziaram os tesouros do casal e o nível de vida nunca mais seria o mesmo. Gastaram com remédios e casas de repouso. Novas dívidas sobrecarregaram o funcionário público. 


    Então o inevitável aconteceu e a dona Carmem repousou na paz do Eterno. Ela descansou cercada pelo carinho da família reunida. Só o Sr. Veiga não se recuperou e caiu numa depressão. 




    3


    A melancolia do Sr. Veiga o fez se afastar dos cultos efusivos e festivos da igreja reformada. Ele não tinha mais contatos com os amigos católicos, mas vez ou outra, entrava na Catedral e ficava na penumbra. Ele tinha saudades dos cantos gregorianos. 


    Mas, no íntimo, ele sabia que não seria mais um bom católico. Imagens e estátuas nada mais lhe comunicavam. As rezas repetitivas não o atraiam. Só sentia arrepios com o refrão, 


    "Pois a Sua Misericórdia dura para sempre!"


    O Sr. Veiga não seguiu mais os cultos, e nem voltou às missas. A vida de antes estava selada no túmulo com a esposa. O Sr. Veiga jamais se casaria novamente. 


    Mas sendo homem de fé, ele não se desesperou. Não sabe como aconteceu, mas logo frequentaria outro culto religioso, no mesmo bairro, por convite do melhor colega na repartição, e um amigo próximo nas necessidades. 


    Rubem, um bom amigo do Sr. Veiga. No velório, em momento solene, pude conhecê-lo. É também funcionário público aposentado. Família numerosa. Já foi missionário no Caribe. 


    Foi na igreja adventista, com o colega, e depois amigo, Rubem que o Sr. Veiga encontrou uma paz. Virou sabatista, isto é, guardava o dia do sábado, e não mais o domingo dos católicos e reformados e pentecostais. E passou a seguir uma dieta alimentar controlada. Com certeza, eis o motivo de sua saúde de ferro. Ele não morreu de doença, mas de uma fatalidade. 


    O Sr. Veiga sempre se lembrava da falecida esposa. Em com os familiares e amigos, nas poucas vezes em que se reuniam. Ainda mais quando deixou sua casa, no bairro onde morou por três décadas, e apareceu aqui no terceiro andar. 


    O vizinho mais calmo e mais tranquilo do prédio. Pelo menos uma vez por mês recebia os filhos. A dona Clara, do segundo andar, indicou uma diarista para cuidar da limpeza do apartamento. 


    O Sr. Veiga seguia do trabalho para casa, e da casa para a igreja. Durante uma década foi esta a rotina do nosso vizinho. E foi assim até a sua aposentadoria. 


    O que aconteceu? O Sr. Veiga passou a ficar mais em casa e deixou a barba crescer. Um calmo e pacato ancião é quem a gente encontrava no elevador. E o Sr Veiga comprava livros e mais livros. Eu na portaria podia ver os envelopes e encomendas. Até livros em hebraico! 


    Descobrimos que o Sr. Veiga nem mais frequentava a igreja. Começou a criticar a igreja. E a evitar companhia dos irmãos de outrora. O que acontecera? Uma desavença teológica? Uma ofensa pessoal?  Não sabemos. O Sr. Veiga não falava muito de si mesmo. Quando falava dele mesmo é quando se lembrava da vida feliz com a dona Carmem. 


    Não saberia dizer como, mas o Sr. Veiga descobriu que a família da mãe, seu lado materno, tinha ancestral de origem lusitana judaica. Século 18, judeus católicos no interior das Minas. 


    Guardador do Shabat e das leis Kosher, o Sr. Veiga começou a se chamar Ben Avraham e se converteu ao judaísmo. Continuou fiel ao Messias de sua vida inteira: somente não era mais Deus Encarnado. O Messias é o filho de Deus, não a Segunda Pessoa da Trindade. Seguia unido a Torah numa mão e a Nova Aliança na outra. Nova Aliança?


    Foi numa tarde, no jardim, diante do prédio, que o Sr. Veiga me explicou esta de Nova Aliança. Tratava-se do nosso Novo Testamento. Com um olhar judaico (não ortodoxo…) que acredita no Jesus ou Yeshua como o Messias (que, portanto, já veio...). Nada de trinitarismos, agora o Messias era a imagem pura do Adam Kadmon, Homem Perfeito Enviado pelo Eterno. 


    Eu ouvia atentamente. Ele falava com pausas, muitas pausas. Misturava hoje com ontem, duas décadas atrás, falava dos filhos como crianças, não se apercebia que estas crianças agora eram adultos com suas próprias crianças. Sua mente não se atualizava, viajava mais e mais no tempo. Não saberia dizer o que leu de manhã nos jornais, tudo se esfumaçava. Mas lembrava do dia da formatura. Ou do dia em que conheceu sua esposa.


    Homem das antigas, o Sr. Veiga é contra o aborto e contra o casamento gay, mas se diz de esquerda. Na minha época ser de esquerda era lutar por justiça social, nos sindicatos, melhor os salários dos trabalhadores. Conhecíamos os freis e os sacristãos, pessoas sinceras que cuidavam das obras de assistência. Lá aconteciam as reuniões, quando se formou o Partido dos trabalhadores. Hoje é essa pouca-vergonha. Corrupção, dentro e fora do governo, e parada gay, e campanha a favor do aborto. É isso ser de esquerda? Por isso meus netos agora vestem a camisa da direita. 


    Homem sempre calmo, o Sr. Veiga só perdia a paciência, às vezes, quando apareciam os netos e as netas. É que ele implicava com bebidas e cigarro. E principalmente com as tatuagens: Que isso era coisa de gente sem noção, sem rumo na vida. Essas crianças aí sujando a pele! E acham que é arte! Ele ficava boquiaberto diante dos jovens com os piercings e dos alargadores de orelhas!



    Não era sempre que o Sr. Veiga queria prosear. Geralmente ficava sentado, de manhã ou de tardinha. Trocava umas palavras cordiais com o zelador ou o porteiro. Nunca foi visto com celular. Claramente desconhecia internet com seus memes e zaps e tictocs. De cinema só lembrava dos filmes religiosos. Os Dez Mandamentos. Jesus de Nazaré. Ben-Hur


    Foi ao teatro poucas vezes, quando estudante. Uma das peças era uma adaptação de Rei Lear, drama familiar na realeza. Obra de um certo bardo Shakespeare. Gostava de livros religiosos, com certeza são a maioria em sua estante. Mas também livros de histórias de detetive, de preferência da autora mestra Agatha Christie. No mais, jornais e revistas que ele apenas folheava, quando entediado. (O neto pretende doar todos os itens para a Biblioteca pública ou o centro cultural da regional.)



    Com o tempo aconteceu que o Sr. Veiga perdeu todos os amigos. Pouco contato com os vizinhos de outro bairro, pouco contato com parentes. Os que eram cristãos o evitavam, e ele não vencia a desconfiança dos judeus ( alguns aqui do bairro, mas a maioria ninguém da família conhecia...), de modo que só se encontrava com um outro estudante messiânico. Um dos poucos que o ouviam com atenção (além de mim) era o amigo Rubem. Mas logo estavam em desacordos sobre a essência do Messias.


    Sim, sem amigos, o Sr. Veiga tinha um irmão, seu amigo Jesus. Lá no banco do jardim, ele explicava as várias visões sobre o Messias. Para uns, Um rabino, um profeta, para outros, um espírito perfeito, ou o Deus Encarnado. Daí as tantas interpretações e seitas e heresias. Para o Sr Veiga, Jesus ou Yeshua era um Irmão, o filho de Deus, manifestado entre nós, pobres mortais. Yeshua é meu Mestre e meu Irmão, aquele que é , para nós, o modelo da Compaixão e da Caridade.



    Uma fase na solidão, realmente. Até descobrir uma sinagoga meio judaica e messiânica lá perto do Mineirão. Passou a ficar os sábados, ou Shabat, fora. Seus filhos o procuravam no sábado, mas nunca que o encontravam. Acharam tudo estranho. Coisa de velho, né? Manias de aposentado... Isso passa. 


    Mas não passou. Até o seu acidente, o Sr. Veiga foi este exemplo de homem cristão com vestes judaicas, e longa barba branca. As crianças do condomínio o chamavam de Papai Noel. Ele ignorava. Sempre dizia que o Messias não nascera num dezembro de inverno no norte. Que Messias Yeshua nascera ou em setembro ou em outubro em Sucot


    Sucot? Então ele calmamente explicava que era a Festa de Tabernáculos, que os judeus faziam cabanas para lembrar o tempo nômade no deserto. E que faziam mesmo cabanas nos quintais e garagens! 


    Tudo muito interessante, mas os vizinhos achavam inusitado e excêntrico. Acho que ele até queria fazer uma cabana lá no jardim. Eu era síndico na época e, gentilmente, expliquei que não seria possível etc


    O Sr. Veiga ficou cabisbaixo, murmurando, mas acho que não se magoou. Que ideias ele tinha! E pouco falava com os vizinhos. Sempre cordial, sempre foi educado. Mas não dialogava mais. Não queria convencer ninguém... Só ser deixado em paz. 


    Paz que desejamos que ele tenha agora no repouso do Altíssimo. Uma fatalidade o levou do nosso convívio. Uma queda na escada, como sabem. A triste manhã em que desceu a escada... Sabemos que idosos não devem descer tantos degraus… Vertigem, desequilíbrio.. Por que ele não teve paciência para esperar o elevador? Não sabemos. 



    Em memória do nosso vizinho, homem digno, e de saudosa lembrança, redigimos este Obituário para os amigos e as amigas do condomínio, e igualmente para os familiares e amigos da família. O Sr. Veiga não era um cristão ou um judeu. Mas um homem temente, digno de ser chamado um filho de Deus. 



Nov 24



Leonardo de Magalhaens 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG







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