segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A Aposta de Pascal . Conto by LdeM dez 2024

 




Conto 



    A Aposta de Pascal


    1


    Um mês antes de morrer, o Sr. Seixas nem pensava em morrer. Vivia da casa para o serviço e do serviço para casa. Pagava seus impostos, jogava xadrez com os amigos, mandava sonetos para as amigas, jantava aos sábados na casa da filha, e almoçava aos domingos na casa do filho.


    Vivia bem. De nada fazia reclamação. Vez ou outra criticava o governador ou o presidente. Tinha parentes militares e se dava bem com todos. Os evangélicos da família é que criticavam o catolicismo esporádico do patriarca.


    Sr. Seixas era gerente de uma empresa de exportação, desde a década de 80, e poderia ter montado a própria empresa, mas não o fez, por falta de adaptação. Quero dizer que não poderia se adaptar a outra rotina. E, no mais, era quase um sócio.


    Seguia de bom ao melhor, o Sr. Seixas. Até que um dia, ao acordar, sentiu pontadas no abdômen. Será que não bebi água? Será que é pedra nos rins? Ou uma hérnia? Vá saber...


    Bebeu bastante água. E soltou uns ares... Talvez fosse um problema de gases ... Teve um alívio naquela aflição. Tinha que se livrar os refrigerantes. Foi até a geladeira e pegou a garrafa gigante de C-C. E despejou tudo na pia! (Depois a esposa certamente ia dar um grito!) O Natal a C-C comprou... Até o bom velhinho o Papai Noel mercenário estava na folha de pagamento da C-C!


    É que o Sr. Seixas não gostava de Natal. Se seguia a época e suas boas festas era por causa de tradições. Nem sabia mesmo se o Salvador tinha nascido num 25 de dezembro... Quem terá inventado esta? Um CDL da vida ...



    


    Foi pouco antes da época do Natal que o Sr Seixas ficou doente. Suas dores abdominais aumentaram. Eram os rins? Uma hérnia? O apêndice inchado? Uma tripa entupida?


     Começou a romaria aos médicos. Exames de sangue, urina e fezes. Exames que ele detestava, simplesmente detestava! Provas dantescas da indignidade! Sentia-se exposto num microscópio... Alguém analisava suas entranhas! 


    Ele seguia com o trabalho, mas os patrões não gostaram das faltas. Neste mês o senhor faltou duas vezes. E eis os atestados. O senhor foi embora mais cedo na terça-feira? E explicações e justificações. O Sr. Seixas detestava se explicar. E mais atestado na mesa do RH. 




    3


    O Sr. Seixas cismou que tinha um tumor e que pouco tempo lhe restava. O que faria no seu último mês? Uma viagem às praias cariocas? Um retiro nas montanhas mineiras? Uma odisseia internacional? Pampas, Chile, Titicaca, Machu Picchu, canal do Panamá, Miami... 


    A esposa achava o marido meio deprimido, era até exagerado, coisa de hipocondríacos... Que ele buscasse botar a mão na consciência e fazer um pacto com o Pai Divino. Deixasse esta vida de estresse, e buscasse com Deus uma cura. De repente, a esposa do Sr. Seixas se redescobria cristã.


    O Sr. Seixas não apedrejava a Santa Igreja, mas também não era de ir às missas. Não era devoto nem era do clube dos ateístas. Ele participava de missas e novenas e casamentos e batizados. Era sua vida cultural. A Bíblia? Só lia os trechos das liturgias... Não se preocupava. Bíblia é coisa para padres.


    Foi depois de um tempo, então o Sr. Seixas começou a pensar em Deus. Que destino ele teria se estivesse sob um olhar divino? Acredito em Deus? Em que Deus eu acredito? Se não acredito em Deus e, ao chegar no outro lado, Deus não existe, é o fim. Mas se Deus existe, estou em apuros. Melhor acreditar que Deus … e não se surpreender lá diante do Trono! Acredito em Deus? Ou é prudente acreditar em Deus?








    4


    Depois de fazer os exames todos, e reunir os resultados, o Sr. Seixas marcou o retorno. Dia do bendito (ou maldito?) diagnóstico. Hérnia, apêndice, rins, tripas traiçoeiras? 


    Ele seguia com ares perturbados. Não quis ir de carro. Era só uma lotação só. Desceu no ponto errado, mas tudo bem. Foi só um quarteirão...


    Andava olhando tudo, como se precisasse escrever um relatório. Ele viu logo um homem falando ao celular. E uma criança chamando a mãe na porta do correio. E depois uma mocinha fazendo cara feia para o namorado (?). Mil coisas aconteciam ao mesmo tempo. O Sr. Seixas descobrira o Agora. Tudo ao mesmo tempo agora. 


    Ele viu um menino que pedia esmolas. Ele viu uma moça de cabelo afogueado que corria atrás de um ônibus. Ele viu, e nunca saberá para onde foi, uma ruiva de blusa branca numa bicicleta rosa. Ele viu a sombra da torre da igreja matriz. Ele viu um pombo que pousou numa varanda. Ele viu carrinho de supermercado debaixo de uma árvore: ao lado um ser semelhante ao homo sapiens


    No entanto, infelizmente, o Sr. Seixas não viu um carro que descia a ladeira na lateral da praça matriz. Um carro mascarado, cinza brilhante, de marca japonesa, guiado por um motorista sem noção, que nem percebeu o sinal fechado. Assim o Sr. Seixas nada percebeu, só o fim do jogo. No fim, o Sr. Seixas perdeu a chance de saber o verdadeiro diagnóstico.



    Dez 24 



Leonardo de Magalhaens 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG 


https://www.youtube.com/@leonardodemagalhaensliteratura 


.:



sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um bom vizinho (ou: Um filho de Deus). 2024. Conto by LdeM.





Conto 


Um bom vizinho

(ou: Um filho de Deus)



    1


    Pretendo, neste curto relato, narrar a vida e as memórias de um homem excepcional. É com coração entristecido que falarei do nosso vizinho, o Sr. Veiga, cujos funerais se deram ontem. Ele conosco conviveu por duas décadas, depois de viúvo, aos cinquenta anos.


    É uma história triste e, ao mesmo tempo, de esperança. Um vizinho que nunca nos deu motivo para reclamação, lá no pacato terceiro andar, tendo que suportar os tumultos festivos dos andares acima. 


    O Sr. Veiga perdeu sua saudosa esposa Carmem, quando ela completaria cinquenta anos. Foi um caso de tumor que começou no seio. Quanto a ele, o homem tinha passado há pouco tempo do meio século.


    O casal se conheceu lá nos anos 70, época do regime fechado no Brasil. Ele era um estudante de Direito, porque o pai assim desejava. Sim, ele foi ser estudante de Direito e, para contrariar o pai, foi fazer amizades na esquerda católica. 


    Um bom católico, o Sr. Veiga. Nas missas toda semana e nas campanhas do agasalho. Recebia os romeiros e fazia as rezas com os devotos. Era mais amigo do sacristão do que do Padre. 


    Foi tudo seguindo assim por um tempo (cinco anos?) até que ele conheceu uma colega caloura. Carmem começava o curso deslumbrada com o mundo da faculdade. Não se enturmava bem, mesmo observando os  estudantes. 


    Depois os grupos de estudantes se dispersavam, ora subindo para a Praça, ora descendo para o Parque. Ela esperava o ônibus em frente ao edifício Maletta. O mesmo ônibus no qual embarcava o Sr. Veiga. Na época, o bacharelando Valdo P. Veiga. 


    As conversas com Carmem aconteciam entre a Augusto de Lima e a Assis Chateaubriand, onde Carmem descia. Ela era delicada e belíssima. Uma beleza não deslumbrante ou insinuante, mas de um carisma sossegado. 



    


    Três anos depois e estavam noivos. Boas famílias e boas propriedades. Bairros entre a Floresta e a Sagrada Família. Mas só uma coisa desagradou ambas as famílias: a de Veiga era tradicionalmente católica, enquanto a de Carmem era de protestantes ou reformados, ou, como dizemos, evangélicos.


    Os evangélicos na época eram raros e pouco apareciam. Eram chamados de 'os Bíblia ', pois andavam engravatados e com a Bíblia volumosa em mãos. Pareciam mesmo exibir a Bíblia ... 


    Católicos iam pra missa de roupa cotidiana e não se acompanhavam com suas Bíblias. Aliás, a Bíblia do Sr. Veiga ficava no quarto com a página aberta nos salmos. Vez ou outra, ele até lia um ou outro salmo do Rei Davi. Mas ele nunca se imaginou andando por aí com um Livro Sagrado...


    Tanto o Sr. Veiga quanto a esposa eram fervorosos na fé cristã, mas a Sra. Veiga era bem mais. Quando eles se casaram, ela tinha se formado, mas nunca exerceu a profissão. Ela então ficou por conta dos afazeres domésticos... E, com tal perfeição, que o Sr. Veiga nada falava dentro de casa. Só quando elogiava! 


    Muito apegado a esposa, o Sr. Veiga a acompanhava até os cultos, na praça Raul Soares. Nos primeiros dias, ficava na praça contemplando os arbustos globulares e a fonte luminosa. Mas depois se acostumou a entrar no templo reformado. 


    Dona Carmem também acompanhava o marido até a missa, uma vez por semana. Mas o Sr. Veiga nada tinha de devoto, então às vezes deixava passar duas semanas. Ou acompanhava algum feriado santo. Só Páscoa e Natal eram comemorados em família. Que aumentou logo: dois filhos e uma filha. 


    Aconteceu que o Sr. Veiga mais participava dos cultos do que das missas e ele abriu o coração para a fé reformada e a sola scriptura. Passou a ler a Bíblia que ficava empoeirando no quarto. Salmos e Provérbios e Eclesiastes e os Evangelhos. 


    Em pouco tempo o Sr. Veiga estava batizado na igreja reformada, para desgosto da tradicional família católica. O pai conservador foi o que mais se sentiu ofendido. Nas poucas visitas, o patriarca dava mais atenção aos netos do que ao casal... 


    O tempo passou e o Sr. Veiga esqueceu os feriados santos e as novenas e as preces aos santos e santas. Não tinha mais imagens da Virgem Maria.  Continuava reverenciando a mãe de Cristo, mas, agora evangélico, não demonstrava.


    Sr. Veiga, um homem pacato, um crente que não discutia religião. Ele se sentia zonzo com tanta confusão e tanto conflito entre os cristãos. Quando aquele pastor pentecostal chutou uma imagem de Nossa Senhora, em plena rede de TV!, o Sr. Veiga passou mal, e fez questão de pedir desculpas aos amigos católicos.


    Numa geração em que meus avós estavam ouvindo Tropicália ou Jovem Guarda, ou Novos Baianos ou Clube da Esquina, o Sr. Veiga e dona Carmem ouviam música sacra ou hinos gospel, canto gregoriano ou cantatas. Não tinham vida social fora do ambiente religioso. Não bebiam vinho nem no Natal. Vez ou outra algum programa de TV, mas geralmente preferiam o rádio. Passaram assim a vida. 




    Assim, o tempo passou. Na sua carreira de funcionário público, o Sr. Veiga criou os dois filhos e as filhas. Um virou advogado mesmo, até reconhecido. Outro, foi para as Exatas, é hoje um professor universitário de matemática. A filha estudou artes plásticas, passou um tempo no Rio de Janeiro e lá namorou e casou com um jovem de Copacabana. Duas vezes por ano, ela passava uns dias em Minas com a família. 


    A vida seguiu passando da aurora ao poente. Até que subitamente a doença da dona Carmem. Foi um choque total na família. Os custos com tratamento esvaziaram os tesouros do casal e o nível de vida nunca mais seria o mesmo. Gastaram com remédios e casas de repouso. Novas dívidas sobrecarregaram o funcionário público. 


    Então o inevitável aconteceu e a dona Carmem repousou na paz do Eterno. Ela descansou cercada pelo carinho da família reunida. Só o Sr. Veiga não se recuperou e caiu numa depressão. 




    3


    A melancolia do Sr. Veiga o fez se afastar dos cultos efusivos e festivos da igreja reformada. Ele não tinha mais contatos com os amigos católicos, mas vez ou outra, entrava na Catedral e ficava na penumbra. Ele tinha saudades dos cantos gregorianos. 


    Mas, no íntimo, ele sabia que não seria mais um bom católico. Imagens e estátuas nada mais lhe comunicavam. As rezas repetitivas não o atraiam. Só sentia arrepios com o refrão, 


    "Pois a Sua Misericórdia dura para sempre!"


    O Sr. Veiga não seguiu mais os cultos, e nem voltou às missas. A vida de antes estava selada no túmulo com a esposa. O Sr. Veiga jamais se casaria novamente. 


    Mas sendo homem de fé, ele não se desesperou. Não sabe como aconteceu, mas logo frequentaria outro culto religioso, no mesmo bairro, por convite do melhor colega na repartição, e um amigo próximo nas necessidades. 


    Rubem, um bom amigo do Sr. Veiga. No velório, em momento solene, pude conhecê-lo. É também funcionário público aposentado. Família numerosa. Já foi missionário no Caribe. 


    Foi na igreja adventista, com o colega, e depois amigo, Rubem que o Sr. Veiga encontrou uma paz. Virou sabatista, isto é, guardava o dia do sábado, e não mais o domingo dos católicos e reformados e pentecostais. E passou a seguir uma dieta alimentar controlada. Com certeza, eis o motivo de sua saúde de ferro. Ele não morreu de doença, mas de uma fatalidade. 


    O Sr. Veiga sempre se lembrava da falecida esposa. Em com os familiares e amigos, nas poucas vezes em que se reuniam. Ainda mais quando deixou sua casa, no bairro onde morou por três décadas, e apareceu aqui no terceiro andar. 


    O vizinho mais calmo e mais tranquilo do prédio. Pelo menos uma vez por mês recebia os filhos. A dona Clara, do segundo andar, indicou uma diarista para cuidar da limpeza do apartamento. 


    O Sr. Veiga seguia do trabalho para casa, e da casa para a igreja. Durante uma década foi esta a rotina do nosso vizinho. E foi assim até a sua aposentadoria. 


    O que aconteceu? O Sr. Veiga passou a ficar mais em casa e deixou a barba crescer. Um calmo e pacato ancião é quem a gente encontrava no elevador. E o Sr Veiga comprava livros e mais livros. Eu na portaria podia ver os envelopes e encomendas. Até livros em hebraico! 


    Descobrimos que o Sr. Veiga nem mais frequentava a igreja. Começou a criticar a igreja. E a evitar companhia dos irmãos de outrora. O que acontecera? Uma desavença teológica? Uma ofensa pessoal?  Não sabemos. O Sr. Veiga não falava muito de si mesmo. Quando falava dele mesmo é quando se lembrava da vida feliz com a dona Carmem. 


    Não saberia dizer como, mas o Sr. Veiga descobriu que a família da mãe, seu lado materno, tinha ancestral de origem lusitana judaica. Século 18, judeus católicos no interior das Minas. 


    Guardador do Shabat e das leis Kosher, o Sr. Veiga começou a se chamar Ben Avraham e se converteu ao judaísmo. Continuou fiel ao Messias de sua vida inteira: somente não era mais Deus Encarnado. O Messias é o filho de Deus, não a Segunda Pessoa da Trindade. Seguia unido a Torah numa mão e a Nova Aliança na outra. Nova Aliança?


    Foi numa tarde, no jardim, diante do prédio, que o Sr. Veiga me explicou esta de Nova Aliança. Tratava-se do nosso Novo Testamento. Com um olhar judaico (não ortodoxo…) que acredita no Jesus ou Yeshua como o Messias (que, portanto, já veio...). Nada de trinitarismos, agora o Messias era a imagem pura do Adam Kadmon, Homem Perfeito Enviado pelo Eterno. 


    Eu ouvia atentamente. Ele falava com pausas, muitas pausas. Misturava hoje com ontem, duas décadas atrás, falava dos filhos como crianças, não se apercebia que estas crianças agora eram adultos com suas próprias crianças. Sua mente não se atualizava, viajava mais e mais no tempo. Não saberia dizer o que leu de manhã nos jornais, tudo se esfumaçava. Mas lembrava do dia da formatura. Ou do dia em que conheceu sua esposa.


    Homem das antigas, o Sr. Veiga é contra o aborto e contra o casamento gay, mas se diz de esquerda. Na minha época ser de esquerda era lutar por justiça social, nos sindicatos, melhor os salários dos trabalhadores. Conhecíamos os freis e os sacristãos, pessoas sinceras que cuidavam das obras de assistência. Lá aconteciam as reuniões, quando se formou o Partido dos trabalhadores. Hoje é essa pouca-vergonha. Corrupção, dentro e fora do governo, e parada gay, e campanha a favor do aborto. É isso ser de esquerda? Por isso meus netos agora vestem a camisa da direita. 


    Homem sempre calmo, o Sr. Veiga só perdia a paciência, às vezes, quando apareciam os netos e as netas. É que ele implicava com bebidas e cigarro. E principalmente com as tatuagens: Que isso era coisa de gente sem noção, sem rumo na vida. Essas crianças aí sujando a pele! E acham que é arte! Ele ficava boquiaberto diante dos jovens com os piercings e dos alargadores de orelhas!



    Não era sempre que o Sr. Veiga queria prosear. Geralmente ficava sentado, de manhã ou de tardinha. Trocava umas palavras cordiais com o zelador ou o porteiro. Nunca foi visto com celular. Claramente desconhecia internet com seus memes e zaps e tictocs. De cinema só lembrava dos filmes religiosos. Os Dez Mandamentos. Jesus de Nazaré. Ben-Hur


    Foi ao teatro poucas vezes, quando estudante. Uma das peças era uma adaptação de Rei Lear, drama familiar na realeza. Obra de um certo bardo Shakespeare. Gostava de livros religiosos, com certeza são a maioria em sua estante. Mas também livros de histórias de detetive, de preferência da autora mestra Agatha Christie. No mais, jornais e revistas que ele apenas folheava, quando entediado. (O neto pretende doar todos os itens para a Biblioteca pública ou o centro cultural da regional.)



    Com o tempo aconteceu que o Sr. Veiga perdeu todos os amigos. Pouco contato com os vizinhos de outro bairro, pouco contato com parentes. Os que eram cristãos o evitavam, e ele não vencia a desconfiança dos judeus ( alguns aqui do bairro, mas a maioria ninguém da família conhecia...), de modo que só se encontrava com um outro estudante messiânico. Um dos poucos que o ouviam com atenção (além de mim) era o amigo Rubem. Mas logo estavam em desacordos sobre a essência do Messias.


    Sim, sem amigos, o Sr. Veiga tinha um irmão, seu amigo Jesus. Lá no banco do jardim, ele explicava as várias visões sobre o Messias. Para uns, Um rabino, um profeta, para outros, um espírito perfeito, ou o Deus Encarnado. Daí as tantas interpretações e seitas e heresias. Para o Sr Veiga, Jesus ou Yeshua era um Irmão, o filho de Deus, manifestado entre nós, pobres mortais. Yeshua é meu Mestre e meu Irmão, aquele que é , para nós, o modelo da Compaixão e da Caridade.



    Uma fase na solidão, realmente. Até descobrir uma sinagoga meio judaica e messiânica lá perto do Mineirão. Passou a ficar os sábados, ou Shabat, fora. Seus filhos o procuravam no sábado, mas nunca que o encontravam. Acharam tudo estranho. Coisa de velho, né? Manias de aposentado... Isso passa. 


    Mas não passou. Até o seu acidente, o Sr. Veiga foi este exemplo de homem cristão com vestes judaicas, e longa barba branca. As crianças do condomínio o chamavam de Papai Noel. Ele ignorava. Sempre dizia que o Messias não nascera num dezembro de inverno no norte. Que Messias Yeshua nascera ou em setembro ou em outubro em Sucot


    Sucot? Então ele calmamente explicava que era a Festa de Tabernáculos, que os judeus faziam cabanas para lembrar o tempo nômade no deserto. E que faziam mesmo cabanas nos quintais e garagens! 


    Tudo muito interessante, mas os vizinhos achavam inusitado e excêntrico. Acho que ele até queria fazer uma cabana lá no jardim. Eu era síndico na época e, gentilmente, expliquei que não seria possível etc


    O Sr. Veiga ficou cabisbaixo, murmurando, mas acho que não se magoou. Que ideias ele tinha! E pouco falava com os vizinhos. Sempre cordial, sempre foi educado. Mas não dialogava mais. Não queria convencer ninguém... Só ser deixado em paz. 


    Paz que desejamos que ele tenha agora no repouso do Altíssimo. Uma fatalidade o levou do nosso convívio. Uma queda na escada, como sabem. A triste manhã em que desceu a escada... Sabemos que idosos não devem descer tantos degraus… Vertigem, desequilíbrio.. Por que ele não teve paciência para esperar o elevador? Não sabemos. 



    Em memória do nosso vizinho, homem digno, e de saudosa lembrança, redigimos este Obituário para os amigos e as amigas do condomínio, e igualmente para os familiares e amigos da família. O Sr. Veiga não era um cristão ou um judeu. Mas um homem temente, digno de ser chamado um filho de Deus. 



Nov 24



Leonardo de Magalhaens 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG







.:

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Uma festa inesquecível. Conto by LdeM. BH, 2024.

 





Conto


    Uma festa inesquecível 


    1


    -- Bruno, faz favor de atender o interfone, meu filho! 


    Era a minha mãe gritando da cozinha. Ideia dela de comemorar aqui mesmo o niver de 45 anos. Uma hora dentro da cozinha com a tia Bruna (daí vem o meu nome...) e a prima Melissa, correndo entre a pia, o forno e a geladeira. Melhor ter pedido umas pizzas. 


    Fui atender. Era a Luma, a amiga da minha mãe, também professora, lá na escola municipal. Ela chegou com o noivo, que chamam de Messias, e o irmão dele, o Lemos, da empresa Lemos & Filhos. 


    Gente muito educada e saudável. Descobri que o Messias é personal trainer, com academia na Pampulha. Não entrou para os negócios da família Lemos, percebe-se. 


    Papai e o Xavier (meu tio, marido da Bruna e pai da Melissa) deixaram o churrasco por um minuto e vieram fazer reverências aos recém-chegados.


    Parece que até abaixaram o volume do som. Papai é daqueles fãs de MPB e sempre ouvindo Caetano e Gil quando pode.


    Alguém me perguntou se eu estudava engenharia. Claro que me confundiam com papai, que tem trinta anos de carreira na construção de shoppings por aí. Eu explico, tranquilamente, que sou do Direito, que tem muito corrupto por aí precisando de bons advogados. 


    Alguém riu. Não lembro se o Messias ou o irmão dele, o Lemos. Estavam todos juntos, suados e ofegantes, cuidando do churrasco. Eu fiquei na varanda e ouvia tanto pedaços de conversa da cozinha, quanto fragmentos ao redor da churrasqueira. 


    As mulheres falavam sobre preços aumentando, ou compras para o Natal e Réveillon, enquanto abriam e fechavam o forno, ou guardavam as saladas na geladeira. 



    Nisso chegou a vizinha, a Dona Vanda. Sem o marido e o filho. Aproveitaram o feriado para uma pescaria. Com mais pratos e dois refrigerantes, a vizinha entrou e não demorou em se misturar nos afazeres da cozinha.


    Papai trocou a soundtrack. Alguém pediu bossa nova. Ok. Mas o tom da conversa continuava o mesmo. Uma mistura de religião e política. Tudo porque alguém comentou sobre as eleições nos States e outro sobre um cidadão perturbado que jogou bombas no Supremo Tribunal em Brasília. 


    Parecia que papai e o Messias faziam uma dupla de esquerda. Papai um católico que foi líder estudantil, e hoje é do sindicato. E o Messias que é da geração saúde, um cara 'super-mente-aberta', que vota nos progressistas. 


    O Xavier, o meu tio, todos já sabemos que é daqueles evangélicos da teologia da prosperidade que vota com a direita e apoia os judeus contra os palestinos terroristas. 


    Logo o Lemos começou a apoiar o Xavier, numa comunhão dos empresários, ou justos empreendedores, na cruzada contra o Estado inflado e gastador. Interessante que o Lemos, fui descobrindo, é filantropo, conhecido por doações aos lares espíritas. O resto da família só pensava em ganhar dinheiro. Exceção ali é o Messias, um jovem anarquista, agora dono de academia. 


    Na cozinha as mulheres falavam de contas pra pagar e as dívidas futuras. Haja cartão de crédito! Tia Bruna é daquelas que gastam mesmo. O marido empresário que pague as contas. Minha tia idolatra o marido, símbolo da prosperidade, e não hesitou em se batizar na igreja dos evangélicos. Ela que sempre acompanhava mamãe quando jovens seguiam para as missas. Mamãe nunca foi devota, mas gosta de ler a Bíblia. Papai nem isso. Ele continua católico por inércia social -- "Porque ainda não tivemos justiça social", ele diz. 


    Papai insiste que não conhece evangélicos de esquerda, que todos ficam aí comemorando a eleição do Agent Orange lá pra White House.


    -- Um cidadão que deveria estar preso! O que acontece nos States? O cara vira Presidente! 


    Aí titio Xavier vai lembrar que a culpa é das esquerdas, com esta doutrinação woke, e sem preocupar com os trabalhadores, só nessa de identitarismo e tal. Então o Lemos começou a fazer um discurso do atrasado das esquerdas ditas progressistas que nem entendem de redes sociais, o verdadeiro termômetro das campanhas políticas. 


    O Lemos falando até deixava o irmão Messias sem fôlego. Até parecia que fazia tudo isso mais para irritar o irmão do que para apoiar o tio Xavier. 


    Alguma treta aqueles irmãos tinham no armário. Mas a discussão não seguiu porque as mulheres chegaram com pratos e talheres. Tia Bruna trazia as saladas e um vinho. A Melissa correndo com as travessas de empadas e coxinhas. Mamãe seguia atrás com a panela de arroz temperado. 


    Eu olhava pra Melissa mas ela me ignorando. Novo corte de cabelo, batom brilhando, unhas com efeitos. Lembro que duas vezes puxei assunto. Sabia que ela estava nos ENEM da vida.... Psicologia ou nutrição, algo assim. Mas ela nem queria saber de estudos... É daquelas que só estudam pra passar. Acho que sou mesmo o único nerd da família. Só porque eu leio os diálogos do Platão....


    Mas se Melissa nem olhou pra mim, não disfarçava os olhares para o Lemos. Logo vi que a coisa ia desandar. O Lemos falava e falava para conquistar a confiança do tio Xavier, e nisso, mais cedo ou mais tarde, ele acabaria duelando com o próprio irmão. 


    O Messias até parece um messias daqueles de filme religioso. Tem barba e cabelo longo preso. É moreno e tem fala mansa. Mas não demora muito e o homem se exalta. Por exemplo, ele acha que religião é perda de tempo. Religião é esse lance de assistência e tal. 


    Dar esmolas? O povo continua aí pedindo esmola! Filantropos não mudam nada ... Cadê a justiça social? O povo precisa se organizar.... Deixar de viver das migalhas...


    O discurso leninista ali não seria aceito, logo se viu. A professora Luma, até então a mais calada, foi falar pro noivo pra ele não falar de política e tal. Messias perdeu a pose messiânica e fez cara feia para a noiva. Será que só eu percebi? 




    2



    A sorte foi que dona Vanda começou a arrumar as coisas na mesa e chamar o pessoal para se servir logo, antes que tudo esfriasse, ou chegasse mais chuva. "Não viram que choveu tanto aqui que a lagoa do Nado se rompeu e vazou toda?!"


    Aí começaram a falar de BH debaixo daquela água toda. Vilarinho inundada, carros e pessoas arrastados. Pânico geral. E daí a falar mal dos políticos de BH, que era uma vergonha a esquerda apoiar candidato continuísta de direita pra não votar em candidato de extrema direita. 


    "Por que não se uniram logo numa candidatura forte de esquerda?" Era o meu pai falando. Mas o tio Xavier entrou defendendo a 'mudança' que seria a eleição do candidato da direita, da verdadeira direita, que isso de 'extrema direita' era propaganda esquerdista...


    E Dona Vanda se preocupando em servir todo mundo, pois mamãe já ficava nervosa com tanta falação, aqui ali era uma reunião de família, mas parecia mais um barril de pólvora. 


    Para evitar discutir com o titio Xavier, papai logo foi virar a carne e cortar mais porções de churrasco. A fumaça tomou conta da varanda. "Parecia gelo seco em show de rock." O comentário foi da prima Melissa e gerou risada geral. 


    Todo mundo comendo e ouvindo Marisa Monte. Se via que o tio Xavier e a professora Luma preferiam um gospel. O Messias perguntou se podia tocar um Tom Zé. Papai se levantou e buscou o controle do som. 


    Eu pouco me ligava pra trilha sonora A ou B. Observava os olhares da Melissa para o Lemos. Vimos logo que o homem é dos veganos. Encheu o prato de salada. Comeu a farofa, mas nem mexeu na carne. A tia Bruna também fazia o tipo vegano e parece que a Melissa estava seguindo a dieta da titia. Quanto mais salada aparecia no prato do empresário Lemos, mais transbordava no prato da Melissa. Estranho fenômeno. 


    Tio Xavier fazia tudo para agradar ao Lemos e o Lemos fazia de tudo para ter a confiança do tio. Melissa, entre o pai e mamãe, correndo os olhos de um para o outro. 


    O Messias trocava amabilidades com papai, que servia mais carne. O personal trainer gosta de carne bem passada. Nisso era acompanhado pela noiva, a professora Luma. A colega de mamãe era a pessoa mais calma e serena ali. É de família de religiosos (testemunhas de Jeová, segundo me disse mamãe, depois) e seguia em tudo com muita fé e prudência. Algum dia poderia ser diretora da escola. Por enquanto é a professora de matemática. 


    Mamãe seguia outra carreira, cuidava das aulas de português e de redação e de inglês. Não tinha a cabeça de Exatas, cheia de números, aos moldes do marido engenheiro e da colega. 






    3



    Depois da farta ceia e de um início de discussão sobre se a República nasceu de um golpe militar, "o primeiro de muitos que vieram" , segundo o meu pai dizia,  a dona Vanda teve uma inspiração de pedir logo o sorvete de chocolate e flocos, antes do bolo de aniversário e do happy birthday for you... 


    "Democracia ainda não daria certo no Brasil porque aqui o povo não sabe votar", papai dizia, experimentando o sorvete, e olhando para o tio Xavier que já preparava a resposta, "O povo vai aprendendo, veja aí os protestos de 2013, o povo quer política decente e Estado mínimo...", e o Messias olhava perplexo o homem, que se dizia conservador, aplaudindo protestos populares.... "Era agora o pessoal de direita que apostava no vox populi.... O povo sabia votar? Votou num populista que virou genocida durante a terrível pandemia.... " 


    Ainda bem que a discussão não seguiu mais. A noiva tocou de leve no braço do noivo exaltado e fez leve carícia de "acalma os nervos, meu filho ", sei como é.


    Então o sorvete foi recolhido pela dona Vanda e pela Melissa enquanto os homens elogiavam o magnífico jantar. De barriga cheia o bom humor voltava a reinar. 


    Depois de tocar umas músicas da Adele, que foi pedido de Melissa, todo mundo se juntou na varanda em torno do bolo de aniversário. Dois andares e todo enfeitado de pétalas lilases. Duas velas rosa chock: 4 e 5… Pediram discurso e mamãe agradeceu e agradeceu. Que nossa família seguia unida ( mamãe abraçou a tia Bruna) apesar de toda política que assolava o país etc. E deu o primeiro pedaço de bolo para papai, que, surpreendido, quase engasgou. (Também eu pensei que o bolo seria para a tia Bruna....) 


    Papai ficou calmo depois da gentileza de mamãe. E a discussão foi ficando entre os irmãos Lemos, com o forte apoio do tio Xavier ao empresário Lemos. O personal trainer lançava olhares de socorro ao meu pai, mas ele agora só dava atenção para mamãe. 


    Todos viram que os irmãos estavam exaltados, mas ninguém imaginou que daria treta e soco na cara. Aliás ninguém viu a briga. Só percebemos, um tempo depois a calma professora Luma entrar na sala com os olhos chorosos, a pedir desculpas pelo noivo, e aquela confusão com o irmão. Eu não entendi. E onde estava Melissa? Depois do happy birthday e o bolo de dois andares, cadê a Melissa? 


    Lembro que fui ao banheiro, depois olhei mensagens no zap, depois mandei fotos nas redes sociais (é, realmente, preciso sair das redes sociais...) e só voltei a me materializar ali na hora que acabava a novela global das nove. 


    Pouco depois da vinheta do Globo Repórter, que falava de animais e vida silvestre, é que entrou a professora Luma a pedir desculpas, e morrendo de vergonha. Precisava ir embora. O noivo dela estava de treta ( ela não usou estes termos...) com o irmão. 


    Depois o tio Xavier entrou brigando com a Melissa, que nem olhou pra ninguém e foi buscar a bolsa dela lá no quarto dos hóspedes. 


    Aí foi a tia Bruna conversar com a professora Luma. As mulheres falavam baixo, por isso não entendi. E ninguém me explicou. O que explicava tudo era a cara borrada da Melissa, minha prima. 


    Os irmãos não tinham brigado por causa de política? Por causa do Trump? Por causa dos eleitores de BH? Por causa da injustiça social? Ou por culpa do globalismo? 


    Não tinha testemunha, era a palavra de um irmão contra a do outro. Parece que a gota d'água foi o Messias surpreender, lá na garagem, o empresário Lemos roubando um beijo da minha prima vestibulanda. E Melissa não confirma, nem nega.



Nov 24




LdeM


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG


.:


terça-feira, 12 de novembro de 2024

mais 4 sonetos [do fundo do baú] by LdeM

 




+ 4 sonetos by LdeM 


Sonetos 


Soneto da Potência cósmica 


Cosmos, eis a Dádiva da Potência 

Em volteios mil -- de engrenagem --

De Estrelas em fulgurante moagem 

Diante do assombro das Ciências.


Forjar infindo: Fluxos se sucedem, 

Brotando em Nébulas os novos Astros 

De pó etéreo deixando rastros -- 

As Esferas em órbitas se medem; 


Em rochosos Globos Vida semeiam:

No ar agitam-se viçosos enxames, 

Nos bicos pólen colhem de estames 


Sobre águas procelosas volteiam -- 

De lagos, os mares plenos de Vida 

A uma constante Busca convida.



Mar 03 


LdeM 








... 



Soneto para a Conquista de Si mesmo 


Ocupe o teu íntimo território!

Em conquistas viver na adversidade

Acima dos prazeres ilusórios 

Construindo teu ser e realidade.


Que seja tua morada tua coragem 

Para o sobreviver já compulsório, 

Merecendo, em vida, a homenagem 

Que sobreviva ao fenecer inglório.


Dos porcos as pérolas afastadas, 

Para os Eleitos as canções entoadas, 

Em paz com a tormenta interior, 


Onde o Audaz já transpassa os pesadelos 

E olhares frios não podem vencê-lo 

Quando a si mesmo é superior.



Nov 04 



LdeM 



...









Soneto para o Expresso noturno 


Arrastando os vagões dentro da noite 

Vem a locomotiva dentre a bruma, 

A névoa liquefeita tal espuma, 

Onde um clamor golpeia tal açoite.


Neblina, manto espesso após a chuva 

Distorcendo os faróis tão apressados, 

Nas ruas os semblantes estressados, 

Enquanto até o comboio se turva.


A sirene, o apitar tão clamoroso 

Rasga aflito um denso néon brumoso 

Na palidez dos arbustos cobertos; 


Assustando tais trêmulos passantes 

(Que aqui calados se perderam antes) 

Quando alguém se joga de braços abertos.


Abr 05 


LdeM 



...



Soneto do Ato final 



Para onde seguem os pobres atores 

Depois que a encenação aqui findou?

Para onde silenciam os oradores 

Depois que a conferência terminou?


Para onde vão os cruéis promotores 

Depois que este tribunal já fechou?

Para onde agora vão os remadores 

Depois que o navio da vida afundou?


Para onde vai afinal todo o drama 

Quando já se esvazia sem ensaios?

Para onde a açucarada e velha trama 

Quando é finda a cena do desmaio? 


Para onde vão os sonhos ao despertar 

Depois que à vida a morte apagar?



Dez 04


LdeM







.