segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Sobre Assédio das águas Obra poética de Luiz Walter Furtado

 

 


 

 

 Sobre Assédio das águas
(BH, Páginas Editora, 2017)
do poeta Luiz Walter Furtado (1957-)


Criação poética na tensão entre palavra e silêncio


    É o momento de nos debruçarmos sobre a expressão poética, o estilo que brota de uma Experiência, a atividade de criação e expressão que denominamos Poesia. Qual a importância do poema? Tal está ligada a sua extensão (do haicai às epopeias) ou sua métrica/ ritmo e rimas (e os versos livres? E os versos brancos?) Como avaliar a qualidade de um artigo poético?

    Defendemos que a riqueza de um poema está em seu uso da Linguagem, a capacidade de estar além do ‘estado de dicionário’ (como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade) Pois poesia é recriar o sentido das palavras e cada palavra tem um significado num contexto. Segundo o professor Alfredo Bosi (1936-2021) o poeta é doador de sentido, de modo que é expressa a sua capacidade de criar e recriar.

    Poesia é música antes de comunicação, é mais expressão que ensinamento. Poesia é a origem das línguas, segundo o italiano Giambattista Vico (1668-1744) em status de poemas as canções, os hinos religiosos, as peças teatrais. E assim até hoje,  “Estamos feitos de palavras”, como dizia Octavio Paz (autor de O Arco e a Lira, 1956), para quem a poesia de nosso tempo não escapa da solidão e da rebelião.


    Poesia não é propaganda, não é dominação, é expressão, desabafo, jogo com as palavras, sons, ideias, de modo que na Poesia se juntam visão e imaginação, e criação e subjetivismo, quando há uma necessidade de expressão, a partir de palavras coletivas, da gramática, do dicionário, um uso pessoal dos sentidos, a recombinar a gramática, num discurso novo.

    Possível como? Sendo o/a Poeta uma pessoa sensível por excelência. Se possível, um/a livre criador/a. Claro que o/a Poeta não é livre, está na sociedade, no trabalho e na venda, mas seu discurso é espaço possível de ‘ousar ser livre’.

    A linguagem não é apenas sinais, letras, códigos, semânticas, mas um quebra-cabeça que pode ser recombinado. Nesta recombinação pode entrar o exercício poético enquanto um jogo, um brincar com as palavras. Aliás vários aurores conseguem ver a Escrita como algo lúdico, onde o escritor arma um jogo para que o/a leitor/a faça um rearranjo, movendo as peças e fragmentos. É assim que atuavam os membros da OULIPO, na França dos anos 1960, que congregou, entre outros, Italo Calvino e George Perec, e influenciou escritores latino-americanos, como Julio Cortázar.


    Mas além do lúdico há uma idealização da figura do/a Poeta. Várias imagens já estão agregadas, anexadas mesmo, a caricatura do poeta.  Para Arthur Rimbaud, o precoce poeta francês, o poeta é um vidente. Para Ezra Pound (1885-1972), poeta estadunidense, o poeta é a antena da raça. Fernando Pessoa o poeta é um fingidor. Ele, ela necessita deste ‘fingimento’ do que ele realmente é. Mas o que é ‘ser realmente’? O quanto o poema expressa o Poeta?

    Poesia é expressão de vivência, de experiência – o que é o ser? O que é o mundo? Por que perguntamos sobre a existência? Qual é o drama da consciência? O poema seria um veículo de transmissão, de transporte, com imagens, sonos, ritmos, com deslocamentos e transferências de sentido, em analogias e associações, em suma, em metáforas e metonímias. Sempre atento ao fato de que do outro lado temos o/a leitor/a. Para quem o/a poeta fala / expressão / escreve. A imagem de um/a leitor/a, mas realmente não sabe a quem vai atingir, pois o/a leitor/a real pode ser diferente do leitor ideal. Pois é o leitor que refaz a Obra.


    Daí a atenção com o uso e o abuso da metáfora, a principal das figuras de linguagem ou de estilo. A Metáfora, entre ‘figura de linguagem’ e ‘técnica de ornato’, segundo podemos ler no artigo do professor Luiz Costa Lima, Metáfora: do ornato ao transtorno, onde podemos nos deparar com um direto “A metáfora ou é um luxo ou uma doença da linguagem” (p. 126) ou ofuscante “A metáfora é uma espécie de miragem” (p. 140).

    Como a metáfora nos atinge enquanto co-criadores, isto é, leitores. A vida é um rio. Faz sentido? A vida é igual a um rio. Por que? Porque a vida vai fluindo, ora mansa, ora acelerada, igual a correnteza de um rio.

    A linguagem se estende assim, se tensiona entre a denotação e a conotação, segundo Costa Lima, “A linguagem é um instrumento dúctil, capaz de se amoldar a um ou a outro serviço.” (p. 138) onde a recriação surge no meio da tensão, incessantemente renovada a cada uso de linguagem,  “Em vez de fantasmal, a metáfora se mostra como o que é : momento do incessante processo em que nos confundimos.” (p. 142) e o professor nos lembra que não temos as coisas – mas as palavras. Temos as ‘metáforas das coisas’ (Nietzsche, in Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral).


    Sabemos que a poesia é tentativa de se fazer ouvir. Para que? Para se entender? Para sentir junto? Ter com-paixão? É expressão, mais do que ensinamento, mas a boa poesia acaba por ensinar, ser pedagógica, mesmo não sendo este seu propósito. Afinal de contas o poeta não é um professor, é um colega de sala que é mais expressivo. Precisamos evitar a idealização do Poeta assim como o/a Autor/a precisa evitar a idealização do/a Leitora.

    Antes saber ler a Criação poética, a imagem poética. Assim adentremos agora a Obra em foco: Assédio das Águas, publicado em 2017 em Belo Horizonte, pela Páginas Editora. O autor é o poeta, médico por profissão, Luiz Walter Furtado, que tem nos surpreendido pela qualidade poética da sua escrita. Uma maturidade, um equilíbrio, uma elegância, um esprit de finesse, em suma, sabedoria e poesia de primeiro escalão.


    Vamos mergulhar numa obra que se aprofunda em alguns eixos temáticos, desde os elementos físicos, água, terra, ar, fogo; até os elementos do ser, identidade, memórias, tempo, palavra. Vários poemas se entrelaçam entre ramos do reino vegetal, entre árvores e florestas, ou enfrenta águas que correm impossíveis, percebendo o próprio corpo, o domínio do sexo, no império do ar, nas areias do deserto e do Tempo.

    No reino vegetal, temos floresta, raízes e troncos, o oculto e o manifesto, tudo num emaranhado de percepções e sinestesias,

 
no território das raízes,
a sombra incolor
da permanência

[…]
é seiva que nutre, sustenta
ou desampara.
                      (Floresta, p. 15)


Mastigar segredos
enterrados
no silêncio dos tubérculos
                       (Memória das raízes, p. 17)


Algumas raízes
espalhavam-se, invisíveis,
e meu tronco inteiro
secava
sem que ninguém percebesse
                                (Dafne, p.18)


    Em todos os domínios o Poeta precisa ligar e religar nuances de Sentido e para isso ele usa liames de metáforas e metonímias, e muita fluidez semântica.  A água é o elemento principal, somos feitos de água, o elemento mais abundante. Mas águas escorrem pelos dedos sem vasilhame que a abrigue. A obra poética precisa de um Sentido tanto quanto de uma Fluidez. 

 






    No reino animal o domínio do corpo / sexo, que se destaca meio aos tabus, crenças, fobias, carências, todas a atingirem o poeta em sua re-criação de linguagem, da qual ele tem consciência crítica,
.

Só na profundidade do corpo
algumas raízes
encontram
os habitantes do medo
e ossos
de crenças ancestrais
                   (Crenças ancestrais, p. 19)


Na tecitura da noite,
entre suores e febres,
cabe a mim
o labor
de recriar cada manhã.
                    (Forjas e teares, p. 27)


    Meio ao assédio das águas, ciente das Crenças ancestrais, o poeta precisa encontrar sua fala, sua luta com as palavras, em busca de uma identidade, não mais vegetal ou animal, mas ser-de-linguagem, e fazer germinar sua identidade, tecida de memórias e perdas. Que identidade : quem sou eu afinal? Em que contexto? Em que lugar? Suas experiências se sucedem, sem ligações, a cada percepção / observação de si mesmo,  Já não sou eu / quem ganha as ruas (Eu, p. 34)


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No corpo,
margeio
meus próprios riscos.
             (Claustrofobia, p. 13)

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a terra finge ceder
e entrega
pequena parte de si,
em grãos de areia,
ao assédio das águas
                       (Bordas, p.51)


os grãos de areia que estão no deserto e também dentro de uma Ampulheta, No abismo da ampulheta / há sempre um quê de eterno / no último grão de areia (p. 82) O Tempo passa e flui como um rio e o que sobra? A Memória a abrigar as águas passadas que não movem mais moinhos, as ruínas que são agora não-lugares, onde só o vento habita entre pedras e frestas,


.
lugares
também abandonam
memórias
                  (Ruína, p. 77)

.
O vento é um agitador
 de memórias
                   (Vento, p. 80)



    Os contrapontos ao elemento água são justamente o elemento areia, o lugar deserto, o obstáculo muralha, o não-lugar ruína, onde as únicas que aliviam a tensão polarizada são o oásis e a miragem. E acima da água e da terra estão os domínios do ar, onde rodopiam os ventos.  Lá está a figura alada do pássaro, e a figura desafiadora de Ícaro.


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Mas sabes:
tem plumas de cera,
o desejo

Tua dor não se repara
com asas nem palavras.
                             (Ícaro, p. 87)

    Aliás, as figuras da mitologia grega são importantes aqui para simbolizar. Os poetas recorrem às mitologias em busca de símbolos para os nossos dilemas cotidianos. Assim como Sigmund Freud se inspirava em mitologia e teatro grego clássico para patentear os complexos que ele descrevia, Édipo, Electra, etc.

    Aqui na poética de Luiz Walter Furtado, o Centauro aparece enquanto símbolo do eu híbrido;  o Labirinto enquanto a confusão, a perda do Eu; a Medusa, o desejo e o medo; o Ícaro a audácia e o fracasso;  o Narciso desejo por si mesmo e, finalmente, a Morte de Narciso o eu fracassa ao não alcançar o Outro.

    Assim como a muralha, a morte é símbolo de obstáculo, de não-fluidez, que encerra um ciclo, numa forca, num cemitério, nas ruínas que pouco refletem as glórias do passado. O poeta anda entre escombros e só encontra um alívio mínimo na própria fala, a qual também questiona, sem suspeitando.

    No embate entre a palavra e o silêncio, o poeta parece hesitar, ao saber que extrair poesia é tarefa árdua, de áspera rotina, notívaga labuta, ciente de que silenciar é não tomar parte, é não re-criar.  O que ouves: teu silêncio / a consertar frestas / da própria voz (Delírio, p. 80)



Das tardes de tosco garimpo
herdei a palavra bruta,
meus cacos de voz na bateia
                  (Heranças, p. 26)

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Mas
todo poema me brota,
canhoto e frágil,
da mão errada.
                 (O lado frágil, p. 38)


    O embate palavra X silêncio tensiona toda uma fibra da Obra, onde o poeta sente que é melhor se calar, mas lembra que onde há música há poesia, e sempre existiu poesia. Que há poesia até nos ecos do silêncio.

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Havia poesia em toda a extensão do vazio (Música, p.89)

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Apenas
 o eco
de quem se cala
retorna
em silêncio
                  (Ecos, p. 90)


     A poética de Luiz Walter Furtado é uma doce e amarga descoberta nestes tempos de pandemia e isolamento social, quando nos voltamos para nossas casas, famílias, vidas, feridas abertas cada vez mais abertas, desuniões e desabafos nos congregam uns distantes dos outros, cada uma em suas bolhas e celas acolchoadas do cotidiano que nos drena e nos deixa ainda mais sedentos, vulneráveis às enchentes e ventanias, nós, pobres Narcisos e audaciosos Ícaros.




Ago/21


Leonardo de Magalhaens

poeta, escritor, crítico

Bacharel em Letras / Fale / UFMG




Referências

 

FURTADO, Luiz Walter. Assédio das águas. Belo Horizonte: Páginas, 2017.

LIMA, Luiz Costa. A Aguarrás do Tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.



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3 comentários:

  1. Sem palavras... Você tem o olhar do poeta e só crítico... Sabe ler o amálgama da alma através dos tempos e pelos olhos de tantos outros e de si mesmo! Eu, simplesmente, surpreendo-me e delicio e tenho assombros com cada poema só poeta Luiz Walter Furtado, então, deve ser tudo isso que você escreveu!

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  2. Ele é um poeta maravilhoso e sua resenha captou a beleza do seu trabalho.

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  3. Sua resenha enaltece a alma apesar de desnuďá-la.
    Ficamos à mercê de seu despojar de corpos.
    Grande Vapinho.

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