quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Na Catredral mística e musical de Alphonsus de Guimaraens


 

 

  Sobre a poética de Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)
poeta místico e simbolista mineiro
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         Na Catedral mística e musical
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    Na dourada tradição da poesia mística, desde as obras do inglês William Blake (século 18), do alemão Novalis (século 18 e 19) e do francês Gerard de Nerval (século 19), nos quais a poesia é alçada às esferas da Iluminação, do Transcendental, da Arte alquímica, numa criação humana que busca alcançar o Além-do-humano, o Divino, o Paradisíaco, a Presença do Criador.

    Advindos das crenças cristãs, esotéricas, alquímicas, neopagãs, espiritualistas, os poetas expressam uma visão de mundo que revela a tensão entre o carnal e o místico, o real e o ideal, o corpo e o espírito. Tensão esta recuperada em obra ambígua de Charles Baudelaire, As Flores do Mal (1857), onde o poeta francês denuncia e abraça o Pecado e a Luxúria, no seio da vida urbana, meio aos prazeres que inebriam os sentidos, em promessas de diversões e consumo de artificialidades.


    Baudelaire marcou sua época de ‘auge do capitalismo’, segundo Walter Benjamin, pensador alemão, com seus testemunhos da vida efêmera e artificial nas grandes cidades, e com sua visão pessimista e decadentista da natureza humana, que se destaca por ser ‘hipócrita’, ao praticar tudo aquilo que condena publicamente. Neste redemoinho parisiense da modernidade eclodiram os chamados ‘poetas malditos’, Rimbaud, Lautréamont, Corbière, Mallarmé, Verlaine, que levaram a poesia a outro nível, entre sinestesias, musicalidade, simbologias, associações, neologismos, devaneios, insanidades, imagens grotescas, num estilo de época rotulado de ‘simbolismo’.

    O que foi moda artística na França das décadas de 1870 e 80, aqui, no Brasil, chegou em 1890, com as obras de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, que foram atentos leitores de E. A. Poe e Charles Baudelaire, mestres para toda uma geração. Estes poetas, americanos, franceses, brasileiros, todos irmanados num estilo de poesia não único, mas centrado no fazer poético, até o formalismo de um Mallarmé, celebrado por todos, que tem tal ponto em comum com os parnasianos, no alto das torres de marfim. Sonetos perfeitos, elegias, litanias, salmos incensados, réquiens, elogios tumulares.


    Na poesia simbolista, lá e cá, tensionam-se os polos do Ideal e do real, o que o poeta almeja e o que o poeta é obrigado a vivenciar. Há um olhar nas alturas, no Divino, e há um contato indesejado com o baixo, o demoníaco. E nesta distância entre o Alto e o Baixo surge o Desespero. O poeta é obrigado a conviver com o Carnal, o Pecado, a sentir Culpa e desprezo por si mesmo. É o que confessam em seus versos, uma Poética nascida de doloroso Desespero, “desespero torvo / destes versos que escrevo” (A Cabeça de Corvo), poema do mineiro Alphonsus de Guimaraens, profundamente católico e místico.   

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Às vezes, quando o eterno ideal me abrasa
O crânio, no cachimbo os olhos ponho:
Há também dentro dele fogo em brasa,
Sobe o fumo e desfaz-se como um sonho.

                                             (O cachimbo)
                                                            in: Kiriale / 1902

    O cristão torturado, em penitências, é uma alma em busca de Salvação, em momento de desespero e miséria terrena,
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O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó!

                                               (Náufrago)

    Numa permanente tensão entre a lua e as trevas, os anjos e os demônios, a Elevação do Cristianismo e a Decadência do Satanismo, que tem lugar na Alma humana, jogada num mundo de misérias,

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Se a tentação chegar, há de achar-me de joelhos,
(Miséria humana, humanidade miseranda…)

                                             (Santo Graal)
                                                             in: Kiriale / 1902

    Em busca da Comunhão, o poeta se dedica aos sacramentos da religião, busca um alívio no Além, na Benção divina, que pode libertar sua alma da Finitude, da morte ameaçadora,

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Vozes de além, pungentes de mistério,
Cantam: e os sinos dobram nas ermidas
Acompanhando o cantochão funéreo…

                                             ( Pulchra ut luna )
                                                             in:  Dona Mística
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    A dor e o sofrimento está presente na poética simbolista, como percebemos na obra de Cruz e Sousa, ser atormentado por uma Dor que busca justificação, que ele encontra na Fé, na Crença

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Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!

                                              (Crê!)
                             In: Últimos Sonetos, 1905, de Cruz e Sousa


 

    Enquanto construto religioso, o Cristianismo procura justificar a dor e o sofrimento, como uma forma de Iluminação espiritual e Penitência redentora, a mortificar o Corpo, centro dos impulsos efêmeros e lascivos,


Eu sei cantar o sofrimento: basta,
Para cantá-lo bem, já ter sofrido…

Mas canto a sempre-humana dor. A vasta
Dolência angelical, o almo gemido
Que vem pungir-vos a Alma pura e casta,

                                             ( Sexta Dor )
                  in: Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte / 1923

    A dor e a beatificação, desde a rememoração da Dor do Crucificado, está presente no estilo Barroco, com sua mescla de pecado e de devoção, do ser finito que olha para o Eterno, como em Cristo de Bronze, de Cruz e Sousa,


Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a luz retrata.

                                                           In: Broquéis / 1893

    O mesmo poeta Cruz e Sousa que eleva o olhar para as Esferas Celestes, desce ao desejo, numa idealização da Mulher, das Virgens puras, como num mecanismo de sublimação, como percebemos em Carnal e Místico, poema de Broquéis, onde vislumbra um “cortejo de virgens”, na “Essência das eternas virgindades! / Ó intensas quimeras do Desejo...”, numa poética tensionada.

    A tensão entre Devoção e Desejo, entre Alma e Corpo aumenta a ponto do místico desprezar a Carnalidade, que é vista como degradada, e destinada aos vermes, como podemos ler nos versos de A Carniça (Baudelaire), a anunciar que a amada bela e charmosa tornar-se-á um cadáver putrefacto, ou em  Ironia dos Vermes (Cruz e Sousa), que apresenta a nobreza da princesa é indiferente para os vermes, quando devoram nobres e plebeus.

    Também em Ossea Mea, Immaculata (Alphonsus) com ápice na poética grotesca e niilista de Augusto dos Anjos, que se nutriu do simbolismo mas o superou rumo a um cientificismo expressionista, em


Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

                                             (Psicologia de um vencido)


Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

                                             (O Deus-verme)

O Espaço – esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só ! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

                                              (As Cismas do Destino)


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    O dualismo corpo X alma em Baudelaire, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens é reposta por Dos Anjos nos termos de alma X instinto, numa luta interna da psiquê – mesmo conflito que Freud dispõe em termos de Ego e Id – e o Eu sofre com os instintos reprimidos,

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(…) a vaga dos instintos presos
(…)
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

                                             (A dança da psiquê)
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    O ápice da poesia de Alphonsus de Guimaraens está no poema A Catedral, obra de evocação, dualismo, sinestesias, uma peça poética de forte comoção, que vem a nossa mente quando ouvimos o nome do simbolista mineiro – assim como lembramos do Corvo do ‘nevermore’, ao ouvirmos a simples menção ao ultrarromântico Edgar Allan Poe – do “pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

    Na Catedral do poema simbolista os sinos cantam, clamam, choram, gemem, como num eco sinistro que lembra a Finitude humana – o mesmo ecoa no poema The Bells, Os Sinos, de Poe, com um construto mais sonoro, estruturado em repetições, aliterações, rimas internas, a esperar a exaltação, até a irritação dos sentidos,

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A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!

                                               (A Catedral)
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    São marcantes as sinestesias, com apelo aos sentidos, uma paisagem escura, um som tempestuoso, tudo se reúne para atingir o poeta em aflição,
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O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o resto meu.

                                              (A Catedral)
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    A atmosfera mística, religiosa, numa necessidade de elevação espiritual está igualmente presente nos versos de Cruz e Sousa, em evocações de odores e matizes, cânticos e névoas, como nos poemas de Broquéis, onde destacamos Incensos,

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Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
Por entre os sons dos órgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos…
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ou Ângelus,

É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
Ondulações e brumas do Mistério.
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e  Sinfonias do Ocaso,

Ah! por estes sinfônicos ocasos
A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

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    A capacidade de envolver o ouvinte, o leitor, faz a poesia simbolista, e principalmente a de Alphonsus de Guimaraens, ser marcante e memorável, agora que relemos suas antologia (lida há mais de vinte anos!) uma experiência de redescoberta de um mundo de sugestões, símbolos, evocações, cenas oníricas, terrores, espiritualidade, misticismo, associações, correspondências, e musicalidade, aquela mesma melopeia tão cara ao mestre Paul Verlaine, “Antes de qualquer coisa, música”.

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março/ maio/21
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por Leonardo de Magalhaens
escritor, crítico literário,
bacharel em Letras / FALE / UFMG



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Referências

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ANJOS, Augusto dos. Eu / Outra Poesia. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira.
Org. notas de Francisco Ricieri. São Paulo: Companhia Editora Nacional:
Lazuli, 2007.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira.
Rio de Janeiro: Saraiva, 2012.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
SOUSA, Cruz e. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Record, 1998.


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