sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Sobre os contos de Elo Cunha em Entre a Vida e a Morte

 

 


 

 

 Sobre Entre a Vida e a Morte : um flerte
contos do escritor Elo Cunha (1977-)
(BH: Páginas Editora, 2021)


      Narrativas labirínticas flertando com o desassossego


    O que é um conto? Depende dos contistas. São os escritores que criam e recriam o que denominamos, na teoria literária, de Conto. Uma narrativa curta (short story; se mais longa, é novela, novella; se muito longa, romance, novel) que tem um ou dois núcleos (mais do que isso temos novela ou romance) que constituem os fios do plot, ou enredo, ou trama.

    Para a teoria do conto é necessário certos elementos para que tenhamos um conto. Além do Enredo, as Personagens, o Espaço e o Tempo. O que acontece? Com quem acontece? Onde e quando acontece? Até aqui o texto. Nas entrelinhas pode estar a ‘segunda estória’, ou a solução geral. Como os núcleos se relacionam, como dependem um do outro, ou qual estória se destaca mais, e com que intensidade, então aí está a estilística do/a autor/a. E cada autor terá sua concepção do gênero conto.


    Quais autores se destacaram no reino dos Contos? Vejamos alguns, como preâmbulo, o alemão E. T. A. Hoffmann  (dos contos de terror gótico), o estadunidense  Edgar Allan Poe (para quem o conto é intenção e efeito, com grande coesão), o francês Guy de Maupassant (autor de O Horla), outro estadunidense, Jack London (das paisagens gélidas no Alaska), o russo Anton Tchecov (gênio do gênero), o irlandês James Joyce (que além de romancista, escreveu contos, em Dublinenses), o judeu tcheco Frank Kafka (atormentado pelo absurdo da existência), o italiano Italo Calvino (autor de Cidades Invisíveis) e mais um estadunidense Ernest Hemingway (aquele da ‘teoria do iceberg’, onde o texto é só uma pequena parte, o mais está implícito).

    No Brasil, na América latina, temos o gênio e a ironia de Machado de Assis, as audácias de Mário de Andrade (‘conto é aquilo que chamo de conto’), a secura estilística de Graciliano Ramos, os redemoinhos de Guimarães Rosa, as cenas do cotidiano de Fernando Sabino, as inquietações existenciais e epifanias de Clarice Lispector, o mundo fantástico de Lygia Fagundes Telles, o realismo mágico de Murilo Rubião,  o mundo-cão de Dalton Trevisan (ou o vampiro de Curitiba), os temores e os tremores de Luiz Vilela, o humor judaico de Moacyr Scliar e os crimes hediondos de Rubem Fonseca. O mestre argentino Jorge Luís Borges, com suas referências bibliográficas igualmente ficcionais, e o também argentino Julio Cortázar (segundo quem, no conto, todos elementos devem funcionar para o impacto final, um bom nocaute), o colombiano Gabriel Gárcia Márquez (autor de Doze Contos Peregrinos) e outro argentino, Ricardo Piglia (para quem o conto não precisa de final surpreendente).



    Lembramos dos autores, mas e a recepção do leitor? Quem lê os contos? O que espera um/a leitor/a de contos? Um espanto? Uma aventura? Um passatempo? Eu, enquanto leitor de contos, gosto de ser surpreendido, de receber um golpe literário. Como não pensei nisso antes?! Como me comportar diante do enredo? Primeiro com suspeitas, depois expectativas, entrando nos meandros e passagens, com ‘suspensão de descrença’, para aceitar um sinistro gato preto ou a metamorfose de um pobre caixeiro-viajante ou os truques de um ex-mágico, em busca da unidade (será uma coesão?) do texto.

    Falamos de um ‘pacto ficcional’ entre autor e leitor. O/a leitor/a tem a missão de interpretar, portanto completar a narrativa. O texto não expõe tudo, realmente o texto deixa lacunas que o/a leitor/a precisa preencher com suas experiências de vida e suas leituras.  Expectativas e possibilidades se mesclam, se enovelam. É como se estivessem num jogo, aquele caráter lúdico que os criadores da OULIPO francesa tanto sublimavam. O/a autor/a deixa pistas, marcas, indícios, e o/a leitor/a segue e investiga, e é o Sherlock ele/ela mesmo/a.   

 





    É preciso ser Auguste Dupin e Sherlock Holmes, e suspender muito a descrença, para adentrar os labirintos da Escrita do autor mineiro Elo Cunha, literato e médico, criador deste Entre a Vida e a Morte : um flerte (2021) com seu estilo intricado, filosófico, confessional, a gerar desconforto, um desassossego mesmo. Ele quer nos atingir existencialmente, não apenas narrar uma estória.

    Alguns contos aqui são verdadeiros poemas em prosa, com altos tons de alegoria, simbolismo, linguagem poética, mais do que uma narração, um enredo com personagens e desventuras. São contos-poemas em 1ª pessoa, confessionais e perturbadores. São personagens anônimas, um ele, ou ela, que podem ser qualquer um de nós, boquiabertos leitores.

    São contos, ou poemas em prosa, que desafiam a leitura, não por erudição ou vocabulário, mas pelas questões, pelas indagações mesmo. Quem fala? Quem confessa? O que é ter identidade? Um tom existencialista que encontramos em textos do francês argelino Albert Camus e na ucraniana brasileira Clarice Lispector. Seres em busca de identidade, de pertença no mundo. Quem eu sou? A que lugar eu pertenço?


    A identidade não aparece pronta. É um gradativo processo de vivência e observação. O que eu gosto? O que as pessoas esperam que eu goste? O que é disciplina? A quem devo obedecer? São questões dispostas diante das personagens (e de nós leitores) para que respondam sem subterfúgios.  


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Para envelhecer, no intuito de evoluir, como ser, é necessária a reconstrução consciente e contínua de nossa própria identidade. (p. 7, Sobre prisões imaginárias)

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Lembrança vaga e distorcida da concepção que construímos de nós mesmos. Saber disso é o que mais dói. O esforço da reconstrução diária e ininterrupta é um passo no vazio da lembrança, vaga por si e em si. (p. 10, Desconforto)


    Então o que é a Identidade? É uma narrativa elaborada e contínua que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos. É uma fábula que tecemos diante dos olhares familiares e diante do espelho. É a fábula do Eu, como dizem os budistas.


    O Ego é um claustro, uma prisão. Por que? Por ser o Ego uma ilusão. Somos maiores que o Ego, graças a nossa mente ampliada. Sem consciência disso vem a claustrofobia. Pois é “uma prisão em um círculo vicioso de falsa felicidade.” (p.14) O Eu é uma mansão com muros e grades, sistema de segurança – e dentro da qual nos descobrimos presos. Individualidade enquanto construção, um Eu em construção, sempre trocando as fachadas, as facetas, as máscaras.


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Nas veredas do percurso, o que nos marca são as ramificações. Aquele instante em que a estrada se bifurca é lá, na escolha, que se constrói a individualidade. Na lembrança do possível acordo, ou na eterna dúvida da escolha abandonada. (p.14, Trajetos e Trajetórias)



    Vida! O que é a Vida? Um fenômeno que ocorre entre o nascer e o morrer. Uma visão sem retoques, sem dramatismos, fria e científica. Não há escape para a condição humana. Somos mortais e não há técnica ou magia que nos deixa eternamente jovens. Somente as religiões prometem tal ‘vida eterna’ em paraísos celestiais.

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Porque o caminho é incerto e múltiplo, mas a chegada é uma só. Fatídica e esperada. Tal qual a certidão de nascimento, ao fim, nos aguarda a declaração de óbito. (p. 15, Trajetos e trajetórias)


    Enquanto a morte não vem as personagens vivem seus dramas. E suas leituras. Em Devaneios em Assis, temos um personagem mergulhado em referências aos contos de Machado de Assis, por exemplo, O Espelho e também Teoria do Medalhão, em Papeis Avulsos, obra de final do século 19 e que marcou um novo fôlego para o gênero na nossa literatura.

    Para ser um Medalhão, para ‘subir na vida’, é saber se portar socialmente, sempre simpático e nunca expor suas ideias, aliás é melhor nem ter ideias. É melhor seguir e se apropriar das ideias que circulam por aí. É saber se adequar ao discurso ao redor, se encaixar nas ‘rodas sociais’ e ser celebridade.

    Diante do espelho há uma imagem, uma identidade, e justamente aquela que é aparência, que está apresentada socialmente, o respeitado alferes com seu uniforme. Não há um eu interior que suporte a introspecção, a solidão, mas uma figura exterior sempre a esperar elogios e honras.


    Algumas questões sobre Eu, identidade, traumas da infância, estão em Machado de Assis bem como encontramos em trechos do médico austríaco Sigmund Freud, pai da psicanálise, da mesma época. Não eram autores que se correspondiam, eram ideias que estavam no Zeitgeist. É fato que Freud sistematizou em sua obra o que já se podia ler em Schopenhauer, Poe, Dostoiévski, e Nietzsche, tais como a divisão da psiquê, o inconsciente a pulsão de morte.



    No conto Quarto de espelhos (p.25), em 1ª pessoa, temos um tom meio de Edgar Allan Poe, de constante questionar, à beira da obsessão, na contínua recriação de nós mesmos, "Relembrar das coisas é o que curiosamente nos constrói, e esse pensamento é absolutamente trágico," (p. 25) As imagens que nos apresentam ou que construímos para nos apresentar – o quanto são espelhamentos? Espelhos que são símbolos em narrativas de Machado de Assis e Jorge Luís Borges.

    No conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, de Ficções,  Borges fala da maldição dos espelhos que, juntamente com a cópula, são abomináveis ao reproduzirem os homens. A mania que os espelhos têm de duplicar as coisas – confundir o real e o virtual, como quando vamos àqueles parques de diversões com amplas salas de espelhos, das mais diversas dimensões, e os risos que não seguramos quando vemos nossas imagens ora magras, ora obesas, ora esticadas, sempre disformes, sempre outra daquela com a qual estamos acostumados.

    O Eu deve muito de sua construção às memórias. Mas não só do indivíduo, mas de memórias coletivizadas. O que a família pensa sobre mim? O que as redes sociais pensam sobre mim?  “Toda memória é falsamente verdadeira, particular, sujeita à ação inconsciente do crivo individual de quem a vivencia.” (p. 26)


    Nossa identidade é edificada sobre um conjunto de memórias. Lembrei-me aqui do filme/animação Divertida Mente (Inside Out, 2015), onde as emoções, alegria, tristeza, raiva, nojo, medo, precisam lidar com as preciosas esferas de memória que constituem aquela narrativa que a personagem conta para si mesma e que seria sua personalidade. Onde ela viveu? Como é sua família? Quais experiências são marcantes? Carinho ou violência? Conforto ou miséria? Rotina ou mudanças?

    O conto Identidade (p.31) trata do drama das escolhas. Escolhemos realmente? Somos condenados a escolher, como dizia o existencialista Jean-Paul Sartre, e até quando não escolhemos é porque escolhemos não escolher. Em suma, temos mesmo livre arbítrio? Ou o que julgamos escolher já está escolhido? Ou nem sabemos porque escolhemos…

    Se estamos numa caverna, como dizia o grego clássico Platão, como poderemos sair de tal condição? A nossa caverna de Platão é a nossa Matrix, emaranhado de vida social e redes sociais e busca de status.  
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Uma decisão final, de libertação, uma fuga da caverna, pensava agora. Deveria existir algo além do arquétipo que habitava, se fazia necessário romper com a construção da realidade que forçosamente o cercava. (p. 32)



    A libertação – a morte. A morte, o destino: tudo (p.21), conto em 3ª pessoa, sobre o peso do Fado, a miséria entranhada, de vício e culpa. Também em Borderline (p. 29), com seu tom alegórico, personagem anônima,  na vertigem que é um fascínio, uma atração pelo abismo, pela queda final, a morte lá embaixo. A vontade de se libertar do corpo – mesmo que não se liberte do karma. “Encarnado e encarcerado momentaneamente se aproximam muito em seu longo vocabulário.” (p. 29)


    Em frente. No conto Água mole, pedra dura (p.33) a figura do eterno retorno do mesmo (segundo Friedrich Nietzsche), como uma condição cíclica, de espírito orientalista, esta roda de samsara da qual temos que nos libertar ao seguir o dharma, o caminho budista. “Um eterno ciclo? Um retorno ao retorno seria um grande desperdício de energia e imaginação” (p. 33)

    Em Paralelos (p.49), conto indefinido, em 1ª pessoa, onde questiona-se: são as várias mortes? As reencarnações no ciclo do Samsara para pagar os karmas de vidas passadas? Um tom religioso, mas desesperançado, de quem perdeu a fé, mas ciente da condição de eterna repetição,


A grande verdade é que nunca se morre (p.49)
 
E você… quantas vezes já morreu? (p.50)


    A condição humana ainda é tema para outro conto em tons alegóricos, Cárcere (p. 69), em 3ª pessoa, sobre como lidamos com a solidão. É uma prisão. O Eu consigo mesmo pode ser claustrofóbico. E o Absurdo: a cela está aberta.


    E quando o Eu procura o Outro, o objeto de desejo amoroso? No conto O toque declara (p.35) temos os desencontros amorosos, o que Ela quer, o que Ele expressa. Ele demonstra que ama, Ela quer declarações. Ambos  juntos e separados. Os corpos se compreendem, mas as almas não. Podemos  comparar com Sobre certa noite (p. 39), de como o homem vê a mulher, e também comparar com Do genérico ao universal (p. 65) aqui o homem se declara para a mulher.


    A mulher, a figura erótica e amorosa também apresentada em Memória da água (p.41) a presença feminina numa reconstrução pela memória, assim como em Certo emotion (p.47) lembranças do antigo amor, que animam um saudoso anônimo.

    Em Fagia (p.51)  narrativa que parece um conto erótico, mas não é …. é algo terrível. Sem palavras.






    Outros contos passam longe da temática amorosa. Et devorabit omnia (p. 37) com um tom alegórico, no vazio existencial de um canibal. Um Hannibal Lecter? Memorável no filme O Silêncio dos Inocentes (1991) com Anthony Hopkins. Aquele homem fino, elegante, carismático, mas também perverso, psicopata, canibal. Aqui o destino trágico do ‘último antropófago’.

    Será que a ‘antropofagia nos une’, como dizia o poeta modernista Oswald de Andrade? Para os povos nativos o canibalismo é assimilar o Outro no que tem de força e coragem. Vemos isso em poemas de Gonçalves Dias, I-Juca Pirama. Os nativos não devoram os fracos e os covardes.


    Em Secreto glaucoma (p. 43) mais tom alegórico  com a  observação e imaginação, na passagem da infância à vida adulta, a morte da infância (childhood’s end). Mas os traumas da infância continuam.  É o que lemos em Reminiscências (p. 67), em 1ª pessoa, onde a lembrança de infância está materializada numa moeda, dada por uma... aparição.


    Em O Buscador (p.45), em 3ª pessoa,  um Ele anônimo, que pode ser qualquer um de nós, diante do exercício da espiritualidade enquanto uma ‘busca infinita’, uma contínua peregrinação, seja em Santiago de Compostela, ou no Tibete, seja em terreiros de candomblé. A personagem pensou só no espírito, no outro mundo e não viveu este daqui, então no final sobreveio a velhice, a doença, a morte num leito de hospital.


    Impossível se libertar? O texto de Impossibilidade (p. 53) um tanto enigmático. Quem fala? Que seres são estes? É uma reunião? Um ritual? Uma profecia? Lembrei-me de algo de Borges, Calvino, Cortázar…Também o tom enigmático em Entre isto (p. 55) com uma transição da 1ª pessoa para a 3ª pessoa. Quem narra? Um sonhador? Um monge? Trata-se de um ser isolado, excluído, só no final é que sabemos quem é… triste fado.

    Há Poro (p. 59) ver Áporo, poema de Carlos Drummond de Andrade, onde “um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape.” numa condição de insistência e perseverança mesmo que inútil. Lembrei-me da marmota (realmente uma marmota?) na novela A Construção, de Kafka, que nos causa perplexidade. Nada podemos fazer para mudar – igual Dédalo preso em seu labirinto. (Vejam que autores modernos adoram referências aos mitos gregos. Por que será?)


    No magistral a Parábola Borgeana (p. 61), em 1ª pessoa, o narrador, o Eu reconstrói a identidade, fragmento por fragmento. O Ego cria um golem, um boneco, um quê de Frankenstein, “Novo ser criado, golem de mim”. Um golem, figura de um conto judaico, um robô (?) orgânico criado por magia. E o golem, por sua vez, cria um homúnculo, aquele que Fausto cria na parte II da peça de Goethe, com artes de magia esotérica.

    Caleidoscópio (p. 63), em 1ª pessoa, temos as várias facetas da mesma paisagem. Há uma praia, lazer, GIRA, há miséria, exploração, GIRA casais, GIRA, boêmia, assim de modo que prazer de uns, miséria de outros, assim um lucra, os outros trabalham. A sociedade em suas várias camadas, na divisão social do trabalho, a exploração do homem pelo homem a qual damos o nome de ordem social.

    As Veias da sorte (p. 71) temos o vício do jogo. Lembro de O Jogador, novela meio autobiográfica do russo Feódor Dostoiévski, que perdeu muito dinheiro e sono nas mesas de jogatinas.  E outro conto sobre vício é Vício (p. 89) 1ª pessoa sobre sedução… vampírica! A ânsia dos convertidos…


    Dois outros contos merecem atenção. Agonia e Êxtase (p.79), em 3ª pessoa, e o longo Diário de um sedutor (p. 91), que me fazem lembrar certas influências de Rubem Fonseca (1925-2020), o grande autor brasileiro, que tratava dos crimes, da sociopatia de personagens na cidade grande, solitárias meio às multidões.


    No primeiro, o passo a passo para um crime bárbaro, sem justificativas, puro fetiche homicida. No segundo, mais denso e confessional, para o narrador sedutor, a sedução é como um hobby, um passatempo, ou uma afirmação do Eu masculino. “A necessidade de autoafirmação é algo que compreendo bem” (p. 92) Ele tem uma voz que reflete e até confessa. Quer a nossa atenção e até cumplicidade. Ele é um indivíduo assim como nos julgamos indivíduos, “Saber que a individualidade é necessária” (p.92)


    Meio as suas confissões de seduções, ele tece alguma referência a Borges, o homem sozinho é um microcosmo no macrocosmo, com alguma erudição (que o autor empresta a personagem) enquanto o sedutor não se envergonha de confessar que “se um homem é composto pela soma de suas experiências e pela projeção de seus anseios, eu era só gandaia.” (p. 97)


    Estas questões levantadas pelo autor Elo Cunha nesta surpreendente coletânea de contos, Entre a Vida e a Morte: um flerte, são aquelas que perpassam várias obras, ao longo dos séculos, pelo menos desde os séculos 16 e 17, de Montaigne, de Descartes e de Espinoza, de identidade, autorreflexão, sentido da existência, emoção X razão, metalinguagem, aqui atualizadas para os leitores do século 21, que sobrevivem em mundos virtuais, em redes sociais, onde as identidades são fluidas e corroídas por expectativas e frustrações, numa imensa Matrix que passa despercebida.



ago/21



Leonardo de Magalhaens

poeta, escritor, crítico

bacharel em Letras / Fale / UFMG






Referências


ASSIS, Machado de. 50 contos. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

_________________ . Papéis Avulsos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

CUNHA, Elo. Entre a Vida e a Morte: um flerte. Belo Horizonte: Páginas Editora, 2021.

FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

_________________ . Histórias de Amor. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Editora Ática, 1990.

LAFETÁ, João Luis. A Dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades / Ed. 34, 2004.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.  São Paulo: Vozes de Bolso, 2014.

 

 

 

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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Sobre Assédio das águas Obra poética de Luiz Walter Furtado

 

 


 

 

 Sobre Assédio das águas
(BH, Páginas Editora, 2017)
do poeta Luiz Walter Furtado (1957-)


Criação poética na tensão entre palavra e silêncio


    É o momento de nos debruçarmos sobre a expressão poética, o estilo que brota de uma Experiência, a atividade de criação e expressão que denominamos Poesia. Qual a importância do poema? Tal está ligada a sua extensão (do haicai às epopeias) ou sua métrica/ ritmo e rimas (e os versos livres? E os versos brancos?) Como avaliar a qualidade de um artigo poético?

    Defendemos que a riqueza de um poema está em seu uso da Linguagem, a capacidade de estar além do ‘estado de dicionário’ (como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade) Pois poesia é recriar o sentido das palavras e cada palavra tem um significado num contexto. Segundo o professor Alfredo Bosi (1936-2021) o poeta é doador de sentido, de modo que é expressa a sua capacidade de criar e recriar.

    Poesia é música antes de comunicação, é mais expressão que ensinamento. Poesia é a origem das línguas, segundo o italiano Giambattista Vico (1668-1744) em status de poemas as canções, os hinos religiosos, as peças teatrais. E assim até hoje,  “Estamos feitos de palavras”, como dizia Octavio Paz (autor de O Arco e a Lira, 1956), para quem a poesia de nosso tempo não escapa da solidão e da rebelião.


    Poesia não é propaganda, não é dominação, é expressão, desabafo, jogo com as palavras, sons, ideias, de modo que na Poesia se juntam visão e imaginação, e criação e subjetivismo, quando há uma necessidade de expressão, a partir de palavras coletivas, da gramática, do dicionário, um uso pessoal dos sentidos, a recombinar a gramática, num discurso novo.

    Possível como? Sendo o/a Poeta uma pessoa sensível por excelência. Se possível, um/a livre criador/a. Claro que o/a Poeta não é livre, está na sociedade, no trabalho e na venda, mas seu discurso é espaço possível de ‘ousar ser livre’.

    A linguagem não é apenas sinais, letras, códigos, semânticas, mas um quebra-cabeça que pode ser recombinado. Nesta recombinação pode entrar o exercício poético enquanto um jogo, um brincar com as palavras. Aliás vários aurores conseguem ver a Escrita como algo lúdico, onde o escritor arma um jogo para que o/a leitor/a faça um rearranjo, movendo as peças e fragmentos. É assim que atuavam os membros da OULIPO, na França dos anos 1960, que congregou, entre outros, Italo Calvino e George Perec, e influenciou escritores latino-americanos, como Julio Cortázar.


    Mas além do lúdico há uma idealização da figura do/a Poeta. Várias imagens já estão agregadas, anexadas mesmo, a caricatura do poeta.  Para Arthur Rimbaud, o precoce poeta francês, o poeta é um vidente. Para Ezra Pound (1885-1972), poeta estadunidense, o poeta é a antena da raça. Fernando Pessoa o poeta é um fingidor. Ele, ela necessita deste ‘fingimento’ do que ele realmente é. Mas o que é ‘ser realmente’? O quanto o poema expressa o Poeta?

    Poesia é expressão de vivência, de experiência – o que é o ser? O que é o mundo? Por que perguntamos sobre a existência? Qual é o drama da consciência? O poema seria um veículo de transmissão, de transporte, com imagens, sonos, ritmos, com deslocamentos e transferências de sentido, em analogias e associações, em suma, em metáforas e metonímias. Sempre atento ao fato de que do outro lado temos o/a leitor/a. Para quem o/a poeta fala / expressão / escreve. A imagem de um/a leitor/a, mas realmente não sabe a quem vai atingir, pois o/a leitor/a real pode ser diferente do leitor ideal. Pois é o leitor que refaz a Obra.


    Daí a atenção com o uso e o abuso da metáfora, a principal das figuras de linguagem ou de estilo. A Metáfora, entre ‘figura de linguagem’ e ‘técnica de ornato’, segundo podemos ler no artigo do professor Luiz Costa Lima, Metáfora: do ornato ao transtorno, onde podemos nos deparar com um direto “A metáfora ou é um luxo ou uma doença da linguagem” (p. 126) ou ofuscante “A metáfora é uma espécie de miragem” (p. 140).

    Como a metáfora nos atinge enquanto co-criadores, isto é, leitores. A vida é um rio. Faz sentido? A vida é igual a um rio. Por que? Porque a vida vai fluindo, ora mansa, ora acelerada, igual a correnteza de um rio.

    A linguagem se estende assim, se tensiona entre a denotação e a conotação, segundo Costa Lima, “A linguagem é um instrumento dúctil, capaz de se amoldar a um ou a outro serviço.” (p. 138) onde a recriação surge no meio da tensão, incessantemente renovada a cada uso de linguagem,  “Em vez de fantasmal, a metáfora se mostra como o que é : momento do incessante processo em que nos confundimos.” (p. 142) e o professor nos lembra que não temos as coisas – mas as palavras. Temos as ‘metáforas das coisas’ (Nietzsche, in Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral).


    Sabemos que a poesia é tentativa de se fazer ouvir. Para que? Para se entender? Para sentir junto? Ter com-paixão? É expressão, mais do que ensinamento, mas a boa poesia acaba por ensinar, ser pedagógica, mesmo não sendo este seu propósito. Afinal de contas o poeta não é um professor, é um colega de sala que é mais expressivo. Precisamos evitar a idealização do Poeta assim como o/a Autor/a precisa evitar a idealização do/a Leitora.

    Antes saber ler a Criação poética, a imagem poética. Assim adentremos agora a Obra em foco: Assédio das Águas, publicado em 2017 em Belo Horizonte, pela Páginas Editora. O autor é o poeta, médico por profissão, Luiz Walter Furtado, que tem nos surpreendido pela qualidade poética da sua escrita. Uma maturidade, um equilíbrio, uma elegância, um esprit de finesse, em suma, sabedoria e poesia de primeiro escalão.


    Vamos mergulhar numa obra que se aprofunda em alguns eixos temáticos, desde os elementos físicos, água, terra, ar, fogo; até os elementos do ser, identidade, memórias, tempo, palavra. Vários poemas se entrelaçam entre ramos do reino vegetal, entre árvores e florestas, ou enfrenta águas que correm impossíveis, percebendo o próprio corpo, o domínio do sexo, no império do ar, nas areias do deserto e do Tempo.

    No reino vegetal, temos floresta, raízes e troncos, o oculto e o manifesto, tudo num emaranhado de percepções e sinestesias,

 
no território das raízes,
a sombra incolor
da permanência

[…]
é seiva que nutre, sustenta
ou desampara.
                      (Floresta, p. 15)


Mastigar segredos
enterrados
no silêncio dos tubérculos
                       (Memória das raízes, p. 17)


Algumas raízes
espalhavam-se, invisíveis,
e meu tronco inteiro
secava
sem que ninguém percebesse
                                (Dafne, p.18)


    Em todos os domínios o Poeta precisa ligar e religar nuances de Sentido e para isso ele usa liames de metáforas e metonímias, e muita fluidez semântica.  A água é o elemento principal, somos feitos de água, o elemento mais abundante. Mas águas escorrem pelos dedos sem vasilhame que a abrigue. A obra poética precisa de um Sentido tanto quanto de uma Fluidez. 

 






    No reino animal o domínio do corpo / sexo, que se destaca meio aos tabus, crenças, fobias, carências, todas a atingirem o poeta em sua re-criação de linguagem, da qual ele tem consciência crítica,
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Só na profundidade do corpo
algumas raízes
encontram
os habitantes do medo
e ossos
de crenças ancestrais
                   (Crenças ancestrais, p. 19)


Na tecitura da noite,
entre suores e febres,
cabe a mim
o labor
de recriar cada manhã.
                    (Forjas e teares, p. 27)


    Meio ao assédio das águas, ciente das Crenças ancestrais, o poeta precisa encontrar sua fala, sua luta com as palavras, em busca de uma identidade, não mais vegetal ou animal, mas ser-de-linguagem, e fazer germinar sua identidade, tecida de memórias e perdas. Que identidade : quem sou eu afinal? Em que contexto? Em que lugar? Suas experiências se sucedem, sem ligações, a cada percepção / observação de si mesmo,  Já não sou eu / quem ganha as ruas (Eu, p. 34)


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No corpo,
margeio
meus próprios riscos.
             (Claustrofobia, p. 13)

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a terra finge ceder
e entrega
pequena parte de si,
em grãos de areia,
ao assédio das águas
                       (Bordas, p.51)


os grãos de areia que estão no deserto e também dentro de uma Ampulheta, No abismo da ampulheta / há sempre um quê de eterno / no último grão de areia (p. 82) O Tempo passa e flui como um rio e o que sobra? A Memória a abrigar as águas passadas que não movem mais moinhos, as ruínas que são agora não-lugares, onde só o vento habita entre pedras e frestas,


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lugares
também abandonam
memórias
                  (Ruína, p. 77)

.
O vento é um agitador
 de memórias
                   (Vento, p. 80)



    Os contrapontos ao elemento água são justamente o elemento areia, o lugar deserto, o obstáculo muralha, o não-lugar ruína, onde as únicas que aliviam a tensão polarizada são o oásis e a miragem. E acima da água e da terra estão os domínios do ar, onde rodopiam os ventos.  Lá está a figura alada do pássaro, e a figura desafiadora de Ícaro.


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Mas sabes:
tem plumas de cera,
o desejo

Tua dor não se repara
com asas nem palavras.
                             (Ícaro, p. 87)

    Aliás, as figuras da mitologia grega são importantes aqui para simbolizar. Os poetas recorrem às mitologias em busca de símbolos para os nossos dilemas cotidianos. Assim como Sigmund Freud se inspirava em mitologia e teatro grego clássico para patentear os complexos que ele descrevia, Édipo, Electra, etc.

    Aqui na poética de Luiz Walter Furtado, o Centauro aparece enquanto símbolo do eu híbrido;  o Labirinto enquanto a confusão, a perda do Eu; a Medusa, o desejo e o medo; o Ícaro a audácia e o fracasso;  o Narciso desejo por si mesmo e, finalmente, a Morte de Narciso o eu fracassa ao não alcançar o Outro.

    Assim como a muralha, a morte é símbolo de obstáculo, de não-fluidez, que encerra um ciclo, numa forca, num cemitério, nas ruínas que pouco refletem as glórias do passado. O poeta anda entre escombros e só encontra um alívio mínimo na própria fala, a qual também questiona, sem suspeitando.

    No embate entre a palavra e o silêncio, o poeta parece hesitar, ao saber que extrair poesia é tarefa árdua, de áspera rotina, notívaga labuta, ciente de que silenciar é não tomar parte, é não re-criar.  O que ouves: teu silêncio / a consertar frestas / da própria voz (Delírio, p. 80)



Das tardes de tosco garimpo
herdei a palavra bruta,
meus cacos de voz na bateia
                  (Heranças, p. 26)

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Mas
todo poema me brota,
canhoto e frágil,
da mão errada.
                 (O lado frágil, p. 38)


    O embate palavra X silêncio tensiona toda uma fibra da Obra, onde o poeta sente que é melhor se calar, mas lembra que onde há música há poesia, e sempre existiu poesia. Que há poesia até nos ecos do silêncio.

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Havia poesia em toda a extensão do vazio (Música, p.89)

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Apenas
 o eco
de quem se cala
retorna
em silêncio
                  (Ecos, p. 90)


     A poética de Luiz Walter Furtado é uma doce e amarga descoberta nestes tempos de pandemia e isolamento social, quando nos voltamos para nossas casas, famílias, vidas, feridas abertas cada vez mais abertas, desuniões e desabafos nos congregam uns distantes dos outros, cada uma em suas bolhas e celas acolchoadas do cotidiano que nos drena e nos deixa ainda mais sedentos, vulneráveis às enchentes e ventanias, nós, pobres Narcisos e audaciosos Ícaros.




Ago/21


Leonardo de Magalhaens

poeta, escritor, crítico

Bacharel em Letras / Fale / UFMG




Referências

 

FURTADO, Luiz Walter. Assédio das águas. Belo Horizonte: Páginas, 2017.

LIMA, Luiz Costa. A Aguarrás do Tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.



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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Na Catredral mística e musical de Alphonsus de Guimaraens


 

 

  Sobre a poética de Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)
poeta místico e simbolista mineiro
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         Na Catedral mística e musical
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    Na dourada tradição da poesia mística, desde as obras do inglês William Blake (século 18), do alemão Novalis (século 18 e 19) e do francês Gerard de Nerval (século 19), nos quais a poesia é alçada às esferas da Iluminação, do Transcendental, da Arte alquímica, numa criação humana que busca alcançar o Além-do-humano, o Divino, o Paradisíaco, a Presença do Criador.

    Advindos das crenças cristãs, esotéricas, alquímicas, neopagãs, espiritualistas, os poetas expressam uma visão de mundo que revela a tensão entre o carnal e o místico, o real e o ideal, o corpo e o espírito. Tensão esta recuperada em obra ambígua de Charles Baudelaire, As Flores do Mal (1857), onde o poeta francês denuncia e abraça o Pecado e a Luxúria, no seio da vida urbana, meio aos prazeres que inebriam os sentidos, em promessas de diversões e consumo de artificialidades.


    Baudelaire marcou sua época de ‘auge do capitalismo’, segundo Walter Benjamin, pensador alemão, com seus testemunhos da vida efêmera e artificial nas grandes cidades, e com sua visão pessimista e decadentista da natureza humana, que se destaca por ser ‘hipócrita’, ao praticar tudo aquilo que condena publicamente. Neste redemoinho parisiense da modernidade eclodiram os chamados ‘poetas malditos’, Rimbaud, Lautréamont, Corbière, Mallarmé, Verlaine, que levaram a poesia a outro nível, entre sinestesias, musicalidade, simbologias, associações, neologismos, devaneios, insanidades, imagens grotescas, num estilo de época rotulado de ‘simbolismo’.

    O que foi moda artística na França das décadas de 1870 e 80, aqui, no Brasil, chegou em 1890, com as obras de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, que foram atentos leitores de E. A. Poe e Charles Baudelaire, mestres para toda uma geração. Estes poetas, americanos, franceses, brasileiros, todos irmanados num estilo de poesia não único, mas centrado no fazer poético, até o formalismo de um Mallarmé, celebrado por todos, que tem tal ponto em comum com os parnasianos, no alto das torres de marfim. Sonetos perfeitos, elegias, litanias, salmos incensados, réquiens, elogios tumulares.


    Na poesia simbolista, lá e cá, tensionam-se os polos do Ideal e do real, o que o poeta almeja e o que o poeta é obrigado a vivenciar. Há um olhar nas alturas, no Divino, e há um contato indesejado com o baixo, o demoníaco. E nesta distância entre o Alto e o Baixo surge o Desespero. O poeta é obrigado a conviver com o Carnal, o Pecado, a sentir Culpa e desprezo por si mesmo. É o que confessam em seus versos, uma Poética nascida de doloroso Desespero, “desespero torvo / destes versos que escrevo” (A Cabeça de Corvo), poema do mineiro Alphonsus de Guimaraens, profundamente católico e místico.   

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Às vezes, quando o eterno ideal me abrasa
O crânio, no cachimbo os olhos ponho:
Há também dentro dele fogo em brasa,
Sobe o fumo e desfaz-se como um sonho.

                                             (O cachimbo)
                                                            in: Kiriale / 1902

    O cristão torturado, em penitências, é uma alma em busca de Salvação, em momento de desespero e miséria terrena,
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O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó!

                                               (Náufrago)

    Numa permanente tensão entre a lua e as trevas, os anjos e os demônios, a Elevação do Cristianismo e a Decadência do Satanismo, que tem lugar na Alma humana, jogada num mundo de misérias,

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Se a tentação chegar, há de achar-me de joelhos,
(Miséria humana, humanidade miseranda…)

                                             (Santo Graal)
                                                             in: Kiriale / 1902

    Em busca da Comunhão, o poeta se dedica aos sacramentos da religião, busca um alívio no Além, na Benção divina, que pode libertar sua alma da Finitude, da morte ameaçadora,

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Vozes de além, pungentes de mistério,
Cantam: e os sinos dobram nas ermidas
Acompanhando o cantochão funéreo…

                                             ( Pulchra ut luna )
                                                             in:  Dona Mística
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    A dor e o sofrimento está presente na poética simbolista, como percebemos na obra de Cruz e Sousa, ser atormentado por uma Dor que busca justificação, que ele encontra na Fé, na Crença

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Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!

                                              (Crê!)
                             In: Últimos Sonetos, 1905, de Cruz e Sousa


 

    Enquanto construto religioso, o Cristianismo procura justificar a dor e o sofrimento, como uma forma de Iluminação espiritual e Penitência redentora, a mortificar o Corpo, centro dos impulsos efêmeros e lascivos,


Eu sei cantar o sofrimento: basta,
Para cantá-lo bem, já ter sofrido…

Mas canto a sempre-humana dor. A vasta
Dolência angelical, o almo gemido
Que vem pungir-vos a Alma pura e casta,

                                             ( Sexta Dor )
                  in: Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte / 1923

    A dor e a beatificação, desde a rememoração da Dor do Crucificado, está presente no estilo Barroco, com sua mescla de pecado e de devoção, do ser finito que olha para o Eterno, como em Cristo de Bronze, de Cruz e Sousa,


Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a luz retrata.

                                                           In: Broquéis / 1893

    O mesmo poeta Cruz e Sousa que eleva o olhar para as Esferas Celestes, desce ao desejo, numa idealização da Mulher, das Virgens puras, como num mecanismo de sublimação, como percebemos em Carnal e Místico, poema de Broquéis, onde vislumbra um “cortejo de virgens”, na “Essência das eternas virgindades! / Ó intensas quimeras do Desejo...”, numa poética tensionada.

    A tensão entre Devoção e Desejo, entre Alma e Corpo aumenta a ponto do místico desprezar a Carnalidade, que é vista como degradada, e destinada aos vermes, como podemos ler nos versos de A Carniça (Baudelaire), a anunciar que a amada bela e charmosa tornar-se-á um cadáver putrefacto, ou em  Ironia dos Vermes (Cruz e Sousa), que apresenta a nobreza da princesa é indiferente para os vermes, quando devoram nobres e plebeus.

    Também em Ossea Mea, Immaculata (Alphonsus) com ápice na poética grotesca e niilista de Augusto dos Anjos, que se nutriu do simbolismo mas o superou rumo a um cientificismo expressionista, em


Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

                                             (Psicologia de um vencido)


Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

                                             (O Deus-verme)

O Espaço – esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só ! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

                                              (As Cismas do Destino)


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    O dualismo corpo X alma em Baudelaire, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens é reposta por Dos Anjos nos termos de alma X instinto, numa luta interna da psiquê – mesmo conflito que Freud dispõe em termos de Ego e Id – e o Eu sofre com os instintos reprimidos,

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(…) a vaga dos instintos presos
(…)
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

                                             (A dança da psiquê)
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    O ápice da poesia de Alphonsus de Guimaraens está no poema A Catedral, obra de evocação, dualismo, sinestesias, uma peça poética de forte comoção, que vem a nossa mente quando ouvimos o nome do simbolista mineiro – assim como lembramos do Corvo do ‘nevermore’, ao ouvirmos a simples menção ao ultrarromântico Edgar Allan Poe – do “pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

    Na Catedral do poema simbolista os sinos cantam, clamam, choram, gemem, como num eco sinistro que lembra a Finitude humana – o mesmo ecoa no poema The Bells, Os Sinos, de Poe, com um construto mais sonoro, estruturado em repetições, aliterações, rimas internas, a esperar a exaltação, até a irritação dos sentidos,

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A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!

                                               (A Catedral)
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    São marcantes as sinestesias, com apelo aos sentidos, uma paisagem escura, um som tempestuoso, tudo se reúne para atingir o poeta em aflição,
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O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o resto meu.

                                              (A Catedral)
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    A atmosfera mística, religiosa, numa necessidade de elevação espiritual está igualmente presente nos versos de Cruz e Sousa, em evocações de odores e matizes, cânticos e névoas, como nos poemas de Broquéis, onde destacamos Incensos,

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Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
Por entre os sons dos órgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos…
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ou Ângelus,

É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
Ondulações e brumas do Mistério.
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e  Sinfonias do Ocaso,

Ah! por estes sinfônicos ocasos
A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

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    A capacidade de envolver o ouvinte, o leitor, faz a poesia simbolista, e principalmente a de Alphonsus de Guimaraens, ser marcante e memorável, agora que relemos suas antologia (lida há mais de vinte anos!) uma experiência de redescoberta de um mundo de sugestões, símbolos, evocações, cenas oníricas, terrores, espiritualidade, misticismo, associações, correspondências, e musicalidade, aquela mesma melopeia tão cara ao mestre Paul Verlaine, “Antes de qualquer coisa, música”.

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março/ maio/21
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por Leonardo de Magalhaens
escritor, crítico literário,
bacharel em Letras / FALE / UFMG



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Referências

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ANJOS, Augusto dos. Eu / Outra Poesia. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira.
Org. notas de Francisco Ricieri. São Paulo: Companhia Editora Nacional:
Lazuli, 2007.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira.
Rio de Janeiro: Saraiva, 2012.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
SOUSA, Cruz e. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Record, 1998.