sexta-feira, 1 de abril de 2016

3 poemas de THIAGO DE MELLO






THIAGO DE MELLO



O TEMPO DENTRO DO ESPELHO

[…]

§.
Para cumprir-se, o tempo necessita
de tudo o que já fiz e se aproveita
da moça adormecida na campina
perante a minha dor adolescente;
dos cabelos da minha mãe tão moça,
tão valente na proa da canoa;
da lágrima no olhar do meu amigo
me dizendo "que pena, eu vou morrer";
do meu primeiro filho perguntando
"para onde vai o mar quando é de noite?",
da tua mão na minha dentro da água;
do medo que eu senti na cordilheira,
dos cavalos correndo no vulcão
assustando as estátuas solitárias
com seus olhos de pedra me espreitando;
da pele do meu peito que murchou;
do espelho sempre intacto em que se esconde
o pretérito mais do que imperfeito
da minha vida.
O tempo é a minha sina
aderida a meu sonho além da aurora,
a frágua do meu cântico futuro.

§.

O tempo é a sombra e a luz do pensamento.
Mas sobretudo é o que te faz pensar.
Por isso ele não passa e não se perde.
O tempo dura inteiro a teu dispor:
pele imóvel de mar em movimento,
feito de imagens, nuvens, flores, flamas
e cinzas — tudo coisas que te falam
na voz, que não se cala, dos silêncios.


§.

Tempo, te dou memória de ti mesmo
pela mão do meu ser. Eu te dou tempo,
esta a tua verdade, eu que te invento
e te permito doer – e tu me mordes
e degradas o sol das minhas pálpebras
e me instigas feiuras escondidas
e esgarças a espessura do meu sono,
mais me vingo de ti, e quase te amo
porque nunca me gastas a esperança.



[1986]








O ALFANJE DO TEMPO


O tempo é o grande milagre
da vida do homem no mundo.
Não tem começo nem fim.
Mas está vivo, animal
respirando imenso em tudo
que a gente quer, sonha e faz.

O tempo que já passou
te conta como vai ser
o tempo que vai chegar.
Tudo leva a sua marca,
de pétala ou de ferrão.

Tudo traz o seu condão:
a criança correndo, o rio
passando, a rosa se abrindo,
a lágrima da alegria,
o silêncio da amargura,
a luz mansa da ternura,
o sol negro da pobreza.

O tempo é o nada que é nada.
O tempo é o tudo que é tudo,
o tudo que vira nada,
o nada virando amor.
O amor inventando estrelas,
a mais linda se apagou
na fronte da moça amada.

O tempo está no teu peito
clamando nas coronárias,
mas se esconde nas funduras
dos neurônios quando sonhas.
Está no fogo e no orvalho,
fermenta o pão que não chega,
arde o forno da esperança.

Alma do tempo é a mudança
que come o que vai mudando
e depois dorme sonhando
disfarçado de memória.

Nada perdura na vida,
a não ser o próprio tempo,
finge que passa, mas fica.
Imutável, modifica.

O tempo é o sol do milagre.
Cuidado, ele está chegando
na claridão da manhã.

A noite inteira ficou
no seu passo, te esperando,
de espreita em teu próprio sono.

Vem vindo para comer
na palma da tua mão.
Trata bem dele, aproveita,
enquanto há tempo, o que o tempo
permite ao teu coração.

Quem sabe ele vem trazendo
um alfanje? Ninguém sabe.
Pode ser uma canção.


[1998]













O OFÍCIO DE ESCREVER

Lendo é que fico sabendo:
O que escrevi já caiu
na vida. Não me pertence.
Leio e me assombro: as palavras
que arrumei com paciência,
severo de inteligência,
cuidando bem da cadência,
perseverante, escolhendo
não escondo, as mais sonoras,
e as que gostam mais de mim,
dando a cada uma o lugar
merecido no meu verso
(e que desta ciência os segredos
me deu o tempo de ofício,
um exercício de anos)
pois as palavras começam
a dizer coisas que nunca
ousei pensar nem sonhar,
pássaros desconhecidos
pousando no meu pomar.

§.

É quando descubro a rosa
— rosa em carne de palavra,
não é rosa da roseira —
Que chamei para o meu poema,
Rosa linda, venha cá,
Venha enfeitar o meu canto,
Se transmuda, mal a leio,
Num sonho que vai se abrir,
No espinho que vai ferir.


Só nesse instante descubro
que a rosa, para ser rosa,
no esplendor da identidade
com qualquer rosa do mundo
precisa ser inventada
pelo milagre do verbo.




[1998]




In: Melhores Poemas. Seleção : Marcos Fredrico Krüger / 2009






seleção by LdeM



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Um comentário:

  1. Que ótimo a leitura desses três poemas, nesse momento. O tempo, marcando o ritmo da construção, ou não... De qualquer forma, atravessando feita espada, vil metal imortal!

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