sexta-feira, 6 de novembro de 2015

MEDICAMENTO COMUM COM UM CONTO DENTRO - Paulinho Assunção


 







Paulinho Assunção






MEDICAMENTO COMUM COM UM
CONTO DENTRO


Indicação terapêutica: Estabelecer redes e campos magnéticos
em áreas embotadas do cérebro e em locais da circulação
sanguínea atacados por bombardeios de monólogos açucarados.
Uso adulto, exclusivamente adulto.

Identificação do medicamento: Em folhas manuscritas que somam
48 linhas. Tinta azul. Irregularidade na grafia em louvor da sedução.

Uso: Estritamente visual. Proibido o uso oral ou venoso.

Composição: Quatro personagens visíveis, oito personagens
invisíveis. Paisagem urbana. Ação principal na casa de número 87, da
Avenida das Ninfas de Touca. Parágrafos curtos ao longo das 48 linhas.
O que seria o último parágrafo deve ser visto apenas pela imaginação.
O medicamento pode ser dobrado e colocado no bolso do paletó.

Advertências: Não deve ser lido mais de sete vezes ao dia, pois
provocará incontroláveis espirais de delírio. Se for lido em total
solidão, aconselha-se, junto, o uso de bebidas alcoólicas, especia-
mente destilados fortes.

Pessoas que fazem oh: Durante as sessões de leituras analisadas, não
foram observados danos em pessoas que fazem oh.

Precauções: A absorção visual é rápida, praticamente instantânea. Em
segundos, a parte b do medicamento circulará pelos neurônios, e a parte a,
mais potente, estará em trânsito por artérias e veias. Em determinados
casos, há relatos de ereção e inundação vulvar.

Pessoas que fazem ih: Pessoas que fazem ih devem ler com as pernas
elevadas, de preferência com os pés tocando a parede do quarto.

Viagem: O medicamento pode ser transportado sem obstáculos em todos
os países signatários do Tratado Geral de Combate aos Açúcares Literários,
de 1922.

Aspecto físico: Em certas ruas de Paris, Toronto, Oslo e Copenhague, o medicamento poderá adquirir tonalidade azulácea, mas sem perder
suas propriedade terapêuticas.

Persistência de uso: Após a vigésima leitura, foram observadas excitações
paranoicas em alguns leitores, que teriam descoberto dois assassinatos
na Avenida das Ninfas de Touca. Os assassinatos não existiram.

Efeitos: Em 99% dos casos, o efeito terapêutico começa a partir da frase
que ilumina a face oculta dos neurônios roxos, na segunda ou terceira leitura.
A frase, com pequenas variações caso a caso, é esta: “O olhar de Roland
Barthes ainda está atrás da árvore”.








mineiro de São Gotardo, é escritor e jornalista.


Foi membro da Comissão de Redação do SLMG, em 1983

.
Tem mais de dez livros publicados, entre poesia, ficção, biografia e infantojuvenil.






In: SLMG nº 1360 BH mai/jun 2015 nº 1360




 

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