Paulinho
Assunção
MEDICAMENTO
COMUM COM UM
CONTO
DENTRO
Indicação
terapêutica:
Estabelecer redes e campos magnéticos
em
áreas embotadas do cérebro e em locais da circulação
sanguínea
atacados por bombardeios de monólogos açucarados.
Uso
adulto, exclusivamente adulto.
Identificação
do medicamento:
Em folhas manuscritas que somam
48
linhas. Tinta azul. Irregularidade na grafia em louvor da sedução.
Uso:
Estritamente visual. Proibido o uso oral ou venoso.
Composição:
Quatro personagens visíveis, oito personagens
invisíveis.
Paisagem urbana. Ação principal na casa de número 87, da
Avenida
das Ninfas de Touca. Parágrafos curtos ao longo das 48 linhas.
O
que seria o último parágrafo deve ser visto apenas pela imaginação.
O
medicamento pode ser dobrado e colocado no bolso do paletó.
Advertências:
Não deve ser lido mais de sete vezes ao dia, pois
provocará
incontroláveis espirais de delírio. Se for lido em total
solidão,
aconselha-se, junto, o uso de bebidas alcoólicas, especia-
mente
destilados fortes.
Pessoas
que fazem oh:
Durante as sessões de leituras analisadas, não
foram
observados danos em pessoas que fazem oh.
Precauções:
A absorção visual é rápida, praticamente instantânea. Em
segundos,
a parte b do medicamento circulará pelos neurônios, e a parte a,
mais
potente, estará em trânsito por artérias e veias. Em determinados
casos,
há relatos de ereção e inundação vulvar.
Pessoas
que fazem ih:
Pessoas que fazem ih devem ler com as pernas
elevadas,
de preferência com os pés tocando a parede do quarto.
Viagem:
O medicamento pode ser transportado sem obstáculos em todos
os
países signatários do Tratado Geral de Combate aos Açúcares
Literários,
de
1922.
Aspecto
físico:
Em certas ruas de Paris, Toronto, Oslo e Copenhague, o medicamento
poderá adquirir tonalidade azulácea, mas sem perder
suas
propriedade terapêuticas.
Persistência
de uso:
Após a vigésima leitura, foram observadas excitações
paranoicas
em alguns leitores, que teriam descoberto dois assassinatos
na
Avenida das Ninfas de Touca. Os assassinatos não existiram.
Efeitos:
Em 99% dos casos, o efeito terapêutico começa a partir da frase
que
ilumina a face oculta dos neurônios roxos, na segunda ou terceira
leitura.
A
frase, com pequenas variações caso a caso, é esta: “O olhar de
Roland
Barthes
ainda está atrás da árvore”.
mineiro
de São Gotardo, é escritor e jornalista.
Foi
membro da Comissão de Redação do SLMG, em 1983
.
Tem
mais de dez livros publicados, entre poesia, ficção, biografia e
infantojuvenil.
In:
SLMG nº 1360 BH mai/jun 2015 nº 1360
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